Carvalho da Silva* | Jornal de Notícias | opinião
Tivemos uma semana de exposição de contradições do projeto político União Europeia (UE) e de negação do significado da palavra união. A presidente da Comissão Europeia, no discurso sobre o estado da União, tratou da retórica política e das narrativas que alimentam a relevância falaciosa de um eurocentrismo decadente. O BCE, fazendo política, impõe medidas promotoras da extrema-direita, agrava as condições de vida das pessoas e de muitas empresas, avança no caminho para mais desemprego. O BCE está a cavar bloqueios económicos (até à Alemanha) e sociais, a desunião entre países, povos e camadas das populações.
O que vimos, entretanto, no discurso de Ursula von der Leyen? i) um amontoado de desejos a partir de pressupostos errados; ii) ausência de um olhar sério sobre os obstáculos com que a UE, os estados-membros e os cidadãos se deparam e sobre como arrumar a casa; iii) uma visão sobre o futuro da UE sem espaço e objetivos próprios exequíveis no quadro das mudanças em curso no Mundo; iv) realce ao compromisso de alargamento a Leste, justificado no discurso apenas pelo belicismo em que estamos enredados.
Não vêm dali respostas aos problemas dos cidadãos, mas este discurso ajuda na submissão dos povos e facilita a entrada da extrema-direita no “projeto europeu”. Imperou a invocação da suspeita superioridade moral dos europeus, a sobrevalorização bacoca das capacidades e da “liderança” da UE nas políticas ambientais, na supercomputação, no digital e na inteligência artificial, quando se sabe que a “Europa” vem acumulando enormes atrasos no plano científico e tecnológico.
A pandemia de covid 19, em 2020, mostrou com toda a crueza muito trabalho brutalmente desvalorizado e ainda os perigos da precariedade laboral. As afirmações bondosas de que era preciso responder a essas injustiças evaporaram-se num ápice. A espiral inflacionista, que aí começou e se ampliou com a guerra na Ucrânia, resultou da escabrosa exploração que alguns setores e grandes companhias fizeram, mas o coro a culpabilizar os salários pela inflação foi forte. Os trabalhadores, os sindicatos e setores progressistas travaram essa cabala e reforçaram a reivindicação de melhoria dos salários, mas logo outro cutelo os ameaça.
A extensão das cadeias de produção à escala global contribuiu para um longo período de baixa inflação. Essas cadeias estilhaçaram. O desafio agora é a construção de cadeias novas assentes em maior proximidade e menor risco de ruturas, com maior atenção dos estados aos interesses e potencialidades específicas e a novos alinhamentos em função de mudanças vindas da geopolítica. Esta opção traz alguma inflação, o que impõe melhoria de salários como fator de equilíbrio na formação e distribuição da riqueza e como elemento impulsionador das economias. As decisões do BCE opõem-se a esta nova realidade, em benefício da economia dominante no Ocidente e da imposição de políticas monetárias neoliberais.
O neoliberalismo (o BCE é uma das suas expressões) tem utilizado os impactos de cada crise para amedrontar e submeter as pessoas. Agora, trabalha na indução de uma crise permanente, para manietar os trabalhadores, os sindicatos, atores sociais e até governos. Quer tornar inacessíveis sociedades democráticas e mais justas, com direitos universais e solidários.
A besta tem de ser afrontada, mesmo por muitos dos que contribuíram para a sua criação. Todavia, não basta dizer-lhe que estão a criar-nos “dores de cabeça”, ou ganidos de governantes. É preciso morder-lhe a sério.
*Investigador e professor universitário
Imagem: David Pugliese, Argentina | Cartoon Movement
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