quarta-feira, 20 de setembro de 2023

Portugal | COMO ESCONDER 20 MILHÕES DE EUROS DAS MÃOS SUJAS DO ESTADO

Diogo Augusto* | Setenta e Quatro

O Estado Social depende da capacidade de arrecadar receita. Os mais ricos deviam compensar pelos que nada ou menos têm, mas não é o que acontece ao usarem artimanhas de fuga aos impostos a que só eles têm acesso. Eis como o fazem a partir do exemplo da família Champalimaud.

Imagina que tens uma fortuna de vários milhões, ou até mesmo alguns milhares de milhões de euros. Imagina, se for necessário, que tens filhos, netos, bisnetos. Tendo por eles um compreensível carinho, queres deixar-lhes a tua fortuna e não deixar que o Estado vá buscar uma percentagem da tua riqueza. Afinal de contas, as escolas e os hospitais que esse dinheiro constrói e mantém não são locais que tu ou a tua família alguma vez corram o risco de vir a frequentar.

Não encares esta tentação como fuga aos impostos. O dinheiro é teu e, aliás, há toda uma indústria de serviços financeiros pronta para te oferecer “segurança”, “proteção de bens” e até formas de acautelar o futuro daqueles que amas. Basta estares disposto a pagar (e bem) por esses serviços.

Faz outro exercício: antes de saberes o que está disponível, pensa em como seria, do teu ponto de vista de multimilionário, o instrumento perfeito para isto. Que tipo de funcionalidades deveria ter? Lembra-te de que pedir não custa, e mesmo que custe, não há-de ser nada que não consigas pagar.

Eu ajudo. Vamos precisar de duas coisas: não pagar impostos e não sermos descobertos. A discrição é essencial. Há por aí muita gente com mal de inveja e pouca vontade de trabalhar que, do seu Peugeot 206 com 20 anos, não consegue deixar de cobiçar a tua riqueza. Felizmente, o que não falta por aí são gestores de grandes fortunas que sabem exatamente como lidar com uma situação delicada como esta. E uma das soluções que muito possivelmente te darão fica no Panamá.

O pequeno país da América Central é conhecido por três coisas: o canal que une o Pacífico ao Atlântico, os chapéus de gosto duvidoso e os instrumentos que disponibiliza aos ricos para que possam “otimizar” a sua situação fiscal. 

O Panamá é pouco mais pequeno que Portugal. Ganhou a sua independência quando os Estados Unidos, em 1903, decidiram que era o melhor para a região e, por coincidência, construíram e ficaram a explorar o canal. O General Manuel Antonio Noriega, ditador que, com ajuda de Washington, liderou os destinos do país, fez dele um centro mundial de lavagem de dinheiro.

Quando Noriega escapou ao controlo dos EUA em 1989, o presidente Bush pai decidiu fazer o que os Estados Unidos fazem melhor: invadir o país. Já no início do século XX, o Panamá decidiu aproveitar essa tradição e transformar-se num centro financeiro mundial onde os mais ricos têm ao seu dispôr toda uma panóplia de instrumentos de proteção do seu dinheiro.

Era lá que estava sediada a Mossack Fonseca, a famosa empresa que fornecia serviços financeiros offshore e que esteve na origem dos Panama Papers (vejam, a esse propósito, o filme The Laundromat, de Steven Soderbergh, no Netflix). A Mossack Fonseca não resistiu ao escândalo que pôs a descoberto presidentes, primeiro-ministros e, acima de tudo, gente com muito dinheiro que usou o sistema opaco do Panamá e outros offshore para desviar dinheiro, fugir aos impostos, branquear capitais, financiar terrorismo ou “otimizar a sua situação fiscal”.

No entanto, outra empresa de serviços offshore do Panamá, a Alcogal, continua em atividade. É nos documentos que ficaram conhecidos como Pandora Papers (outra enorme fuga de informação que permitiu pôr a descoberto uma parte importante deste submundo) que podemos encontrar documentos relativos a um destes instrumento que a Alcogal pôs ao dispor de uma família portuguesa que precisava de distribuir dinheiro de uma considerável herança: os Champalimaud.

A fortuna de António Champalimaud foi construída à conta de heranças, casamentos com outras famílias oligarcas e proteção do Estado Novo. O negócio do cimento, que herdou de um tio, serviu-lhe de rampa de lançamento tanto em Portugal como nos territórios colonizados em África. Já depois da Revolução de Abril, houve uma tentativa de devolver ao país o império comercial criado e mantido à conta de uma ditadura favorável e, de facto, muitas das empresas de Champalimaud foram nacionalizadas - tinha a oitava maior fortuna da Europa em 1975. Uma coisa era uma democracia liberal, onde os negócios pudessem continuar como de costume, pensava Champalimaud, outra era uma sociedade em que a minoria abastada não mandasse no futuro do país. O “perigo vermelho” estava à espreita.

Mas, prevendo o que aconteceria, o milionário protegeu os seus bens que estavam fora do país, isto antes de o abandonar. De fora do país, em Espanha, envolveu-se com a rede terrorista de extrema-direita Movimento Democrático de Libertação de Portugal (MDLP), de António de Spínola, antes de regressar a Portugal para refazer o seu império com o beneplácito do PS e do PSD. Mas antes de regressar a Portugal ainda passou uma temporada no Brasil, viajando para o Chile, onde se encontrou com o ditador Augusto Pinochet, que dois anos antes tinha tomado o poder num golpe de Estado que assassinou o presidente democraticamente eleito Salvador Allende.

Os descendentes daquele que foi em tempos o homem mais rico de Portugal e da Europa criaram pelo menos um fundo fiduciário (trust) no Panamá no valor de 20 milhões de euros. No caso, o fundo era gerido por uma empresa chamada Gertrust Limited, nome que poderá não fazer soar campainhas de imediato, mas essa empresa, do Grupo Espírito Santo, geria um outro fundo que era propriedade de Hélder Bataglia, um dos arguidos do Processo Marquês. Esse fundo controlava a Escom Investments Group Ltd, uma das principais peças da rede offshore do Grupo Espírito Santo liderado pelo banqueiro Ricardo Salgado.

Assim, sempre que era preciso, eram transferidas tranches de entre meio milhão e milhão e meio de euros (uma delas perto dos 13 milhões à então esposa de António Champalimaud) para os herdeiros sob o mais absoluto sigilo sem, repito, a chatice de terem de pagar impostos.

Mas um fundo destas dimensões precisava de uma conta num local de confiança, que guardasse estes 19.3 milhões de euros de forma sigilosa e segura. Encontrar uma instituição bancária de confiança pode ser difícil mas, no caso dos Champalimaud, porque não manter também este aspecto dentro do grupo Espírito Santo? O fundo do Panamá criou, então, uma conta bancária na Compagnie Bancaire Espírito Santo (CBES), na Suíça. Terá sido também pela CBES que passaram os mais de três mil milhões do “saco azul” do GES.

Isto pode ser potencialmente problemático. Ter riqueza escondida pode ter as suas vantagens em termos de otimização de performance fiscal (a novilíngua de fuga fiscal), mas, se algum membro da família tiver um negócio, pode precisar de mostrar ao banco com quem trabalha que tem capacidade financeira para cobrir os investimentos na hipótese de virem a falhar. 

Também neste caso podemos seguir o benchmark Champalimaud. A Sociedade Agrícola do Ameixial, uma empresa da família Champalimaud, por exemplo, quando precisou de garantias bancárias, teve este fundo do Panamá com conta no Espírito Santo Suíça a passar uma garantia bancária de 2,5 milhões de euros ao BES. É o espírito do empreendedorismo com as costas quentes. 

Eu sei que tudo isto parece demasiado fácil, principalmente quando se tem determinado apelido. E talvez esteja a pintar uma imagem um pouco distorcida da realidade. Na verdade, há aqui alguns inconvenientes que devem ser abordados. Por exemplo, um fundo fiduciário deste género pode trazer muitos benefícios, mas não é mais do que um instrumento para guardar e distribuir riqueza evitando a maçada dos impostos.

Para quem queira usar parte da sua riqueza para investir, não é solução que dê particular jeito sendo que, para isso, uma empresa seria mais útil. Felizmente, e porque nem tudo são más notícias para aqueles que tiveram o azar de ser bem afortunados, no Panamá, como na maioria dos países caribenhos e noutras geografias, há quem se preocupe e tenha criado empresas especificamente pensadas para servir estes propósitos.

É verdade que, quando em dezembro de 2004 os Champalimaud o fizeram, tinham a vida facilitada. Além do fundo, o Muriers Settlement Trust, criaram também no Panamá uma empresa com o imaginativo nome Muriers Settlement S.A. Acontece que na altura países como o Panamá permitiam que fossem criadas empresas com ações ao portador. O que quer isto dizer? Que aquela empresa era propriedade de quem quer que tivesse na sua posse física o respetivo certificado de ações. 

A consequência disto é que não há, em lugar algum, um registo oficial de quem é realmente dono daquela empresa que pode ter milhões em bens. Mesmo que tenha de haver registos de diretores da empresa (pessoas que possam tomar decisões, movimentar contas, etc.), é suficientemente fácil contratar alguém para ser um diretor de fachada, cujo nome aparecerá em toda a papelada. Aliás, fornecer os serviços deste tipo de pessoas é o modelo de negócios de muitas empresas espalhadas pelo mundo.

Isto tem um pequeno inconveniente: criar absoluta opacidade sobre estas estruturas e, por isso, ser um convite para a criminalidade organizada. É por isso que, à conta de meia dúzia de cartéis de droga e redes de crime organizado usarem as ações ao portador para lavar dinheiro, é cada vez mais difícil encontrar um país no mundo que ainda as autorize. 

Por isso, quando em 2015 o Panamá restringiu seriamente o uso de ações ao portador, foi preciso arranjar uma solução, e depressa. Havia muita gente com muito dinheiro a precisar de resolver este problema e, portanto, uma oportunidade de negócio. Então, de repente, todas estas empresas começaram a mudar oficialmente de mãos, e as ações ao portador foram canceladas. O que a indústria percebeu foi que podia criar novas empresas que seriam as acionistas de fachada das já existentes e pronto, problema resolvido.

Recapitulemos. Imagine que tinhas contratado os serviços de uma empresa Suíça, a, digamos, Empresa Suíça SA para te tratar destes assuntos. A Empresa Suíça contratou a Empresa Panamenha que, por sua vez, criou a Empresa Que Ninguém Pode Saber Que É Minha). Quando as ações ao portador deixaram de poder existir, a Empresa Panamenha criou a Empresa Que Vai Ser Dona De Outras. Então, a Empresa Que Vai Ser Dona De Outras passou a ser a dona oficial da Empresa Que Ninguém Pode Saber Que É Minha e ninguém chegou a descobrir que a Empresa Que Ninguém Pode Saber Que É Minha é, de facto, tua.

Nada disto é ilegal. É só o resultado de uma globalização descontrolada que pôs os países todos a competir uns com os outros. Alguns oferecem mão de obra barata, outros conhecimento especializado, outros matérias primas, e outros tantos oferecem opacidade financeira e benefícios fiscais. O resultado é o depauperamento do Estado Social, uma fuga de capitais por quem pode, deixando o peso da carga fiscal em cima dos que, com menos recursos, não conseguem fugir.

O resultado foi a instauração de uma constante ameaça que raptou as nossas democracias: ou baixas os impostos ou o dinheiro vai-se. O que acontece de uma forma ou de outra é que é sobre os trabalhadores que recai o peso de sustentar o Estado Social, mesmo com o desinvestimento crónico de que padece. E a solução apontada (principalmente por quem julga nunca vir a precisar dele) é pôr fim às redes de segurança que, como sociedades, fomos construindo para amparar aqueles que mais precisam quando mais precisam: o Estado Social

As contas feitas pela organização internacional Tax Justice Network estimam que Portugal perde todos os anos mais de mil milhões de euros em receita fiscal por causa destas manobras financeiras. É mais do dobro do gasto anual estimado pelo governo para o programa Mais Habitação e quase o dobro do que investiu em habitação em 2022. São 400€ anuais que desaparecem do bolso de cada um dos residentes em Portugal que paga IRS.

Os debates em torno dos paraísos fiscais são sempre marcados por quem diz que a larga maioria dos que os usam, o fazem de forma legal. E isto é matéria de facto, irrefutável, principalmente tendo em conta a quantidade inimaginável de empresas criadas nessas jurisdições. Mas o debate político (e moral) devia ser outro, um que não se centrasse na legalidade, mas que debatesse se, enquanto sociedades que se querem justas, solidárias e livres, queremos continuar a permitir que os mais poderosos se apoderem da riqueza e não contribuam para o bem comum. É que Portugal ganhou 31 mil novos milionários em dois anos, mas a vida de quem trabalha está pior. 

*Diogo Augusto - Jornalista freelancer, formador em investigações financeiras para o Centre for Investigative Journalism. Sociólogo de formação.

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