Redação Outras Palavras | # Publicado em português do Brasil
Um Jesus palestino, envolto na kaffiyeh, ocupa o centro de um presépio incomum, montado há poucos dias numa igreja de Belém, na Cisjordânia ocupada. O menino não repousa na manjedoura. Está ladeado por detritos iguais aos que sepultaram cerca de 10 mil crianças em Gaza, sob os bombardeios de Israel – que persistem. Os destroços mantêm afastados os demais personagens tradicionais à cena: Maria e José, os pastores, os reis magos, a vaca e o jumento. À distância, todos miram o recém-nascido. Ele vive.
Poucas metáforas poderiam expressar tão bem o sentimento que marca a entrada de 2024. Além da tragédia em si mesma, o massacre de Gaza significa a naturalização da violência no Ocidente. Repare: as imagens das vítimas já desapareceram das manchetes e noticiários – talvez por terem deflagrado, por semanas, uma onda global de solidariedade aos palestinos. Além disso, o ressurgimento do fascismo ameaça espalhar a brutalidade pelo mundo. Mas a chama da esperança e da indignação está acesa. Ela impulsionou, por exemplo, os milhares de argentinos que colocaram o governo de Javier Milei em crise precoce há dias, quando se atreveram a cercar, de madrugada, o edifício do Congresso, para protestar contra um decretazo de ultracapitalismo.
Esperança requer informação. Ao longo do ano, Outras Palavras empenhou-se por difundir o que o jornalismo comercial e a onda interminável de futilidades e fake-news ocultam – apesar de disputarem nossa atenção permanentemente. A riqueza concentra-se tão rápido – mostramos – que três megafundos de investimento do mundo já possuem, juntos, mais ativos que o PIB dos Estados Unidos. A desigualdade anda de braços dados com a devastação do planeta, mas espalham-se embriões de novas formas de produção e distribuição. A difusão da Inteligência Artificial (que marcou 2023, e acompanhamos em detalhe traz implícitos enormes riscos civilizatórios, mas uma iniciativa latinoamericana já luta para colocá-la sob controle das sociedades. A fragmentação do Trabalho destroi laços de solidariedade e alimenta a formação de uma subjetividade ultraindividualista. No entanto, emergem éticas e estéticas da insubmissão que buscam, nas lógicas do Comum e do Cuidado, caminhos para um possível pós-capitalismo. Diante da crise do eurocentrismo e da ordem internacional imposta pelos EUA, esboça-se no Sul Global, e em particular na China, uma alternativa. No Brasil, o Estado imprime, a partir do nada, R$ 660 bilhões ao ano para os rentistas – mas poderá, em novo cenário político, fazer o mesmo em favor dos serviços públicos, da transformação da infraestrutura e da geração de ocupações dignas.
Outras Palavras encerra 2023 com sua Retrospectiva: uma seleção do que produzimos de melhor ao longo do ano, dividida em 15 temas provocadores. Esperamos alimentar a reflexão os leitores num período de descanso, balanços e busca de novas perspectivas. Lembramos: nosso jornalismo de profundidade é sem catracas – mas existe graças ao apoio ativo dos leitores. Sugerimos que você considere a hipótese de contribuir com Outros Quinhentos, nosso programa de sustentação colaborativa.
Voltaremos em 10 de janeiro de 2024 – esperando manter a lâmina afiada da crítica e a chama acesa da esperança.
Forte abraço, ótimas festas
A redação de Outras Palavras
Sem comentários:
Enviar um comentário