Luís Monteiro | Setenta e Quatro
A Câmara Municipal de Santa Comba Dão decidiu avançar com o Centro Interpretativo e Museu do Estado Novo, instalado na antiga Escola-Cantina Salazar, no Vimieiro, de onde é natural o ditador António de Oliveira Salazar. A ideia não é nova. Por várias vezes foi tornada pública a intenção do município em criar um equipamento que, nas palavras do atual presidente da autarquia, Leonel Gouveia, é “absolutamente necessário” para “interpretar factos” e compreender “virtudes da democracia”. O autarca quer que o museu seja inaugurado no “final de maio”.
No auge do quadro das comemorações do 25 de Abril, os debates em torno das políticas da memória provam, mais uma vez, que são uma arena de um combate político sobre projetos coletivos de futuro.
ARQUEOLOGIA DE UMA INSISTÊNCIA
Não é necessário recuar muitos anos. Foi em 2019, nas comemorações dos quarenta e cinco anos da Revolução dos Cravos, que surgiu a primeira notícia sobre o projeto. O debate público estava montado e os argumentos dos sectores mais à direita acompanharam a ideia da autarquia: não precisamos de falar das histórias das resistências para melhor compreender o Estado Novo. Ele explica-se a si mesmo, se tivermos a capacidade de apresentar tão somente os factos (já iremos ao problema dos “factos”).
O projeto inicial não deixava margem para dúvidas. Estava enquadrado numa Rota das Figuras Históricas, promovido pela Associação de Desenvolvimento Local ADICES. A ideia sempre teve como base a homenagem ao ditador, o discurso público é que foi se moldando à medida que a pressão do debate político a isso obrigou. O próprio universo académico, em concreto o Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX (CEIS20) da Universidade de Coimbra, acabou por desistir da parceria com o município, depois de as críticas se avolumarem. Chegados a 2019, é o município de Santa Comba Dão quem procura financiamento para a ideia que, apesar de isolado, parece não se demover de homenagear a figura de Salazar.
Reafirmar a democracia não passa por um revivalismo pretensiosamente inocente que recupera antigas salas de aula do fascismo ou cantinas sociais onde a pobreza se fazia sentir.
O município e os sectores mais à direita tentaram justificar o projeto com os argumentos mais estapafúrdios, mas existiu sempre uma pergunta à qual nunca se obteve resposta. Porquê ali? Porquê na terra natal do Ditador? Qual a importância histórica particular de Santa Comba Dão para o período do Fascismo em Portugal? O silêncio em torno da pergunta não esconde a verdadeira intenção: uma homenagem a quem ali nasceu.
A Assembleia da República condenou em boa hora a ideia, apesar das abstenções do PSD e do CDS na iniciativa apresentada na altura pelo PCP. As reações a esse chumbo político nas intenções do município fizeram ressurgir os argumentos do costume: o projeto é “absolutamente necessário” para “interpretar factos” e compreender “virtudes da democracia”, explicava de novo o presidente da autarquia, eleito pelo Partido Socialista. Subentende-se, destas palavras, que, por exemplo, o Museu do Aljube – Resistência e Liberdade, ou ainda o projeto já conhecido para a instalação de um Museu Nacional sobre o tema na fortaleza de Peniche, não cumprem esses requisitos. O pensamento hegemónico está sempre a ensinar-nos: isenção é quando reproduzimos o senso comum, tudo o que seja dar voz às margens e aos subterrâneos é panfleto e comício político.