quarta-feira, 23 de agosto de 2023

O BRICS DIANTE DE SEU MAIOR DESAFIO

Bloco reúne PIB maior que o do G7 e tornou-se referência para possível ordem pós-eurocêntrica. Mas aceitará abrir-se ao Sul Global? Enfrentará a ditadura do dólar e do FMI? Às vésperas da Cúpula de Joanesburgo, esperam-se decisões cruciais

Vijay Prashad, no Tricontinental | em Outras Palavras | # Publicado em português do Brasil

Em 2003, altos funcionários do Brasil, da Índia e da África do Sul reuniram-se no México para discutir seus interesses mútuos no comércio de medicamentos. A Índia era e é um dos maiores produtores mundiais de vários medicamentos, incluindo aqueles usados para tratar o HIV-Aids; o Brasil e a África do Sul precisavam de medicamentos a preços acessíveis para pacientes com HIV, bem como para uma série de outras doenças tratáveis. No entanto, esses três países foram impedidos de negociar livremente entre si devido às rígidas leis de propriedade intelectual estabelecidas pela Organização Mundial do Comércio. Apenas alguns meses antes da reunião, os três países formaram um grupo, conhecido como IBAS, para discutir e esclarecer questões de propriedade intelectual e comércio, mas também para confrontar os países do Norte Global por sua exigência assimétrica de que as nações mais pobres acabem com seus subsídios agrícolas. A noção de cooperação Sul-Sul deu um contorno a essas discussões.

O interesse na cooperação Sul-Sul remonta à década de 1940, quando o Conselho Econômico e Social das Nações Unidas estabeleceu seu primeiro programa de assistência técnica para auxiliar o comércio entre os novos Estados pós-coloniais na África, Ásia e América Latina. Seis décadas depois, tal como na formação do IBAS, esse espírito foi comemorado pelo Dia das Nações Unidas para a Cooperação Sul-Sul em 19 de dezembro de 2004. Nessa época, a ONU também criou a Unidade Especial para a Cooperação Sul-Sul (dez anos depois, em 2013, essa instituição foi renomeada como Escritório das Nações Unidas para a Cooperação Sul-Sul), que se baseou no acordo sobre o Sistema Global de Preferências Comerciais entre Países em Desenvolvimento. Em 2023, esse pacto inclui 42 Estados-membros da África, Ásia e América Latina, que abrigam coletivamente quatro bilhões de pessoas e têm um mercado combinado de 16 trilhões de dólares (cerca de 20% das importações globais de mercadorias). É importante registrar que essa agenda de longa data para aumentar o comércio entre os países do Sul forma a pré-história do Brics, criado em 2009 e atualmente composto por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.

Todo o projeto do Brics está centrado na questão de saber se os países que estão na extremidade inferior do sistema neocolonial podem sair dele por meio de comércio e cooperação mútuos ou se os países maiores (inclusive os do Brics) inevitavelmente desfrutarão de assimetrias de poder e escala contra os países menores e, portanto, reproduzirão as desigualdades em vez de transcendê-las. Nosso mais recente dossiê sobre a teoria da dependência marxista questiona qualquer projeto capitalista no Sul que acredite que possa, de alguma forma, libertar-se do sistema neocolonial importando dívidas e exportando commodities baratas. Apesar das limitações do projeto Brics, está claro que o aumento do comércio Sul-Sul e o desdobramento de instituições do Sul (para o financiamento do desenvolvimento, por exemplo) desafiam o sistema neocolonial, mesmo que não o transcenda imediatamente. No Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, temos acompanhado de perto os desenvolvimentos e as contradições do projeto Brics desde o seu início e continuamos a fazê-lo.

No final deste mês, a 15ª cúpula do Brics será realizada em Joanesburgo, África do Sul, de 22 a 24 de agosto. Essa reunião ocorre no momento em que dois dos membros do grupo, a Rússia e a China, estão enfrentando uma Nova Guerra Fria com os Estados Unidos e seus aliados, enquanto os outros membros enfrentam imensa pressão para serem arrastados para esse conflito. […]

A 15ª Cúpula do BRICS (22 a 24 de agosto) em Joanesburgo, África do Sul, tem o potencial de fazer história. Os chefes de Estado do Brasil, da Rússia, da Índia, da China e da África do Sul se reunirão para seu primeiro encontro cara a cara desde a cúpula de 2019 em Brasília, Brasil. A reunião ocorre dezoito meses após o início do conflito militar na Ucrânia, que não apenas elevou as tensões entre as potências ocidentais lideradas pelos EUA e a Rússia a um nível nunca visto desde a Guerra Fria, mas também acentuou as diferenças entre o Norte e o Sul Global.

Há rachaduras crescentes na ordem internacional unipolar imposta por Washington e Bruxelas ao resto do mundo por meio da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), do sistema financeiro internacional, do controle dos fluxos de informação (tanto nas redes tradicionais quanto nas redes sociais) e do uso indiscriminado de sanções unilaterais contra um número cada vez maior de países. Como recentemente afirmou o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, “o período pós-Guerra Fria chegou ao fim. Está em andamento uma transição para uma nova ordem global”.

Nesse contexto global, três dos debates mais importantes a serem monitorados na cúpula de Joanesburgo são: (1) a possível expansão do número de membros do Brics, (2) a expansão do número de membros de seu Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) e (3) o papel do NDB na criação de alternativas ao uso do dólar americano. De acordo com Anil Sooklal, embaixador da África do Sul no Brics, 22 países já solicitaram formalmente o desejo de se somar ao bloco (incluindo Arábia Saudita, Argentina, Argélia, México e Indonésia) e mais duas dúzias manifestaram interesse. Mesmo com inúmeros desafios a serem superados, os Brics agora são vistos como uma importante força motriz da economia mundial e, em particular, dos desenvolvimentos econômicos em todo o Sul Global.

O SENHOR FEIJÓO E O SENHOR CONTENTE

Pedro Cordeiro, editor da secção internacional | Expresso (curto)

Nota prévia: Marcelo Rebelo de Sousa chegou hoje a Kiev, estava este Expresso Curto a ser escrito. Leia em primeira mão o relato dos jornalistas Ana França e Rui Duarte Silva, enviados do Expresso, que contam que o Presidente da República considera que “Tudo o que é fundamental na vida da Ucrânia, neste momento, é fundamental na vida de Portugal”. Trar-lhe-emos toda a atualidade desta importante visita ao longo do dia.

Olhando agora para o país vizinho, o rei de Espanha propôs ontem Alberto Núñez Feijóo para candidato a primeiro-ministro. Filipe VI anunciou indigitação do chefe do Partido Popular (PP, centro-direita) à presidente do Congresso dos Deputados, Francina Armengol, depois de ter recebido sete dos onze partidos políticos representados na câmara baixa das Cortes Gerais. Quatro deles apoiam Feijóo — além do seu, o Vox (extrema-direita) e os regionais Coligação Canária e União do Povo Navarro. Totalizam 172 deputados num total de 350, o que não será suficiente para Feijóo governar. É que para ser empossado precisa de 176 votos numa primeira ronda (maioria absoluta) ou, numa segunda ronda, mais votos a favor do que contra. Ora, os 178 deputados que faltam estão todos contra um Executivo presidido pelo líder popular.

A eleição da socialista Armengol para presidir ao Congresso contou com esses 178 votos, que o primeiro-ministro, Pedro Sánchez quer mobilizar para ser reconduzido. O chefe do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE, centro-esquerda) disse ao monarca que está em condições de tentar a investidura. Já lhe declararam apoio a frente de esquerda radical Somar, de Yolanda Díaz (parte da coligação de Governo cessante); o Bloco Nacionalista Galego; e o Unir o País Basco (Euskal Herria Bildu, sucessor do braço político dos terroristas da ETA). Dispostos a dialogar, mas não de forma incondicional, estão o Partido Nacionalista Basco (PNV, moderado) e os independentistas Esquerda Republicana da Catalunha (ERC) e Juntos pela Catalunha (JxC). Este é chefiado a partir de Waterloo, Bélgica, pelo ex-presidente regional Carles Puigdemont.

Este foragido, que é eurodeputado e que seria preso se entrasse em Espanha, está acusado de delitos de rebelião, desvio de fundos públicos e desobediência, no quadro do processo pela intentona separatista de 2017, quando estava no poder. Amnistia para os envolvidos é uma das exigências do JxC e da ERC, depois de nove políticos catalães terem sido condenados e cumprido parte das suas penas de prisão (até serem indultados pelo Governo de Sánchez) e havendo centenas que ainda se habilitam à cadeia. É quase assente que a haver novo Executivo socialista, alguma forma jurídica surgirá para pôr fim às agruras judiciais dos de Puigdemont. Mais bicudo, porque a Constituição espanhola não o permite, é o pedido de um referendo de autodeterminação autorizado por Madrid (ao contrário do que houve em 2017).

Filipe VI terá querido manter a tradição de dar hipótese, primeiro, ao partido mais votado nas legislativas, no caso, as de 23 de julho. “No procedimento de consultas levado a cabo por Sua Majestade, o Rei, não se constatou, por agora, a existência de uma maioria suficiente para a investidura que, a dar-se o caso, fizesse decair este costume”, reza o comunicado da Casa Real. Cabe a Armengol marcar a sessão de investidura, que de momento parece fadada ao insucesso. Não há um prazo para esse debate e votação, que a presidente do Congresso fez saber que agendará após falar com Feijóo. Se os números falharem a este último, o processo de indigitação pode repetir-se. Importante ressalvar que a partir da primeira tentativa começa a contar o prazo de dois meses para formar Governo, findo o qual se marcam novas eleições.

Para evitar hipotéticas eleições no Natal ou no Ano Novo, Armengol terá de marcar a sessão de investidura até 31 de agosto ou a partir de 20 de setembro. Todas as forças políticas têm expressado a vontade de evitar voltar a convocar os espanhóis às urnas, um embaraço por que o país passou das últimas duas vezes que celebrou legislativas, em 2015 e 2019, e que seria mais inconveniente com Espanha a deter a presidência rotativa da União Europeia. Os próximos dias serão de frenesi de negociações em que Sánchez leva a dianteira. Pondo de lado a consulta popular sobre independência, a chave pode residir na supracitada amnistia (com este ou outro nome), no sistema de financiamento regional e em símbolos como os estatutos de autonomia e as línguas co-oficiais, cuja admissão no Parlamento já permitiu eleger Armengol.

Fecho esta parte da newsletter sugerindo a leitura da prosa do nosso correspondente em Madrid, Ángel Luis de la Calle, e a audição do mais recente episódio do podcast O Mundo a Seus Pés, da secção internacional do Expresso. Nele conversei com a investigadora Ana Isabel Xavier sobre a situação política espanhola. Foi gravado antes da decisão de Filipe VI, mas as premissas não mudaram.

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