quarta-feira, 23 de agosto de 2023

O SENHOR FEIJÓO E O SENHOR CONTENTE

Pedro Cordeiro, editor da secção internacional | Expresso (curto)

Nota prévia: Marcelo Rebelo de Sousa chegou hoje a Kiev, estava este Expresso Curto a ser escrito. Leia em primeira mão o relato dos jornalistas Ana França e Rui Duarte Silva, enviados do Expresso, que contam que o Presidente da República considera que “Tudo o que é fundamental na vida da Ucrânia, neste momento, é fundamental na vida de Portugal”. Trar-lhe-emos toda a atualidade desta importante visita ao longo do dia.

Olhando agora para o país vizinho, o rei de Espanha propôs ontem Alberto Núñez Feijóo para candidato a primeiro-ministro. Filipe VI anunciou indigitação do chefe do Partido Popular (PP, centro-direita) à presidente do Congresso dos Deputados, Francina Armengol, depois de ter recebido sete dos onze partidos políticos representados na câmara baixa das Cortes Gerais. Quatro deles apoiam Feijóo — além do seu, o Vox (extrema-direita) e os regionais Coligação Canária e União do Povo Navarro. Totalizam 172 deputados num total de 350, o que não será suficiente para Feijóo governar. É que para ser empossado precisa de 176 votos numa primeira ronda (maioria absoluta) ou, numa segunda ronda, mais votos a favor do que contra. Ora, os 178 deputados que faltam estão todos contra um Executivo presidido pelo líder popular.

A eleição da socialista Armengol para presidir ao Congresso contou com esses 178 votos, que o primeiro-ministro, Pedro Sánchez quer mobilizar para ser reconduzido. O chefe do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE, centro-esquerda) disse ao monarca que está em condições de tentar a investidura. Já lhe declararam apoio a frente de esquerda radical Somar, de Yolanda Díaz (parte da coligação de Governo cessante); o Bloco Nacionalista Galego; e o Unir o País Basco (Euskal Herria Bildu, sucessor do braço político dos terroristas da ETA). Dispostos a dialogar, mas não de forma incondicional, estão o Partido Nacionalista Basco (PNV, moderado) e os independentistas Esquerda Republicana da Catalunha (ERC) e Juntos pela Catalunha (JxC). Este é chefiado a partir de Waterloo, Bélgica, pelo ex-presidente regional Carles Puigdemont.

Este foragido, que é eurodeputado e que seria preso se entrasse em Espanha, está acusado de delitos de rebelião, desvio de fundos públicos e desobediência, no quadro do processo pela intentona separatista de 2017, quando estava no poder. Amnistia para os envolvidos é uma das exigências do JxC e da ERC, depois de nove políticos catalães terem sido condenados e cumprido parte das suas penas de prisão (até serem indultados pelo Governo de Sánchez) e havendo centenas que ainda se habilitam à cadeia. É quase assente que a haver novo Executivo socialista, alguma forma jurídica surgirá para pôr fim às agruras judiciais dos de Puigdemont. Mais bicudo, porque a Constituição espanhola não o permite, é o pedido de um referendo de autodeterminação autorizado por Madrid (ao contrário do que houve em 2017).

Filipe VI terá querido manter a tradição de dar hipótese, primeiro, ao partido mais votado nas legislativas, no caso, as de 23 de julho. “No procedimento de consultas levado a cabo por Sua Majestade, o Rei, não se constatou, por agora, a existência de uma maioria suficiente para a investidura que, a dar-se o caso, fizesse decair este costume”, reza o comunicado da Casa Real. Cabe a Armengol marcar a sessão de investidura, que de momento parece fadada ao insucesso. Não há um prazo para esse debate e votação, que a presidente do Congresso fez saber que agendará após falar com Feijóo. Se os números falharem a este último, o processo de indigitação pode repetir-se. Importante ressalvar que a partir da primeira tentativa começa a contar o prazo de dois meses para formar Governo, findo o qual se marcam novas eleições.

Para evitar hipotéticas eleições no Natal ou no Ano Novo, Armengol terá de marcar a sessão de investidura até 31 de agosto ou a partir de 20 de setembro. Todas as forças políticas têm expressado a vontade de evitar voltar a convocar os espanhóis às urnas, um embaraço por que o país passou das últimas duas vezes que celebrou legislativas, em 2015 e 2019, e que seria mais inconveniente com Espanha a deter a presidência rotativa da União Europeia. Os próximos dias serão de frenesi de negociações em que Sánchez leva a dianteira. Pondo de lado a consulta popular sobre independência, a chave pode residir na supracitada amnistia (com este ou outro nome), no sistema de financiamento regional e em símbolos como os estatutos de autonomia e as línguas co-oficiais, cuja admissão no Parlamento já permitiu eleger Armengol.

Fecho esta parte da newsletter sugerindo a leitura da prosa do nosso correspondente em Madrid, Ángel Luis de la Calle, e a audição do mais recente episódio do podcast O Mundo a Seus Pés, da secção internacional do Expresso. Nele conversei com a investigadora Ana Isabel Xavier sobre a situação política espanhola. Foi gravado antes da decisão de Filipe VI, mas as premissas não mudaram.

Outras notícias

OITO MENOS UM Decorre na próxima madrugada o primeiro debate das eleições primárias do Partido Republicano para escolher o seu candidato a Presidente dos Estados Unidos da América em 2024. A Salomé Fernandes explica o que está em causa, quem são os oito participantes e porque não se inclui nesse lote o antigo Presidente Donald Trump, que encabeça todas as sondagens. Yours truly falou sobre esse assunto com Paulo Baldaia no podcast Expresso da Manhã, acabado de lançar.

ONZE MAIS DUAS Confirma-se que as eleições regionais na Madeira, a 24 de setembro, serão disputadas por onze partidos e duas coligações. Um Tribunal do Funchal aceitou a lista do Chega àquele ato eleitoral, que esteve em dúvida por causa da queixa apresentada por um militante do partido de extrema-direita. Um dos processos prende-se com a última convenção do partido, em janeiro deste ano, que o Tribunal Constitucional considerou ter sido ilegal.

QUATRO MAIS UMA Num agosto marcado por novos picos de calor em Portugal, a Carla Tomás explica tudo sobre o aumento das temperaturas, eventuais recordes de calor e os riscos associados aos mesmos. Podemos estar na quinta vaga de calor do ano, e hoje pode haver termómetros a marcar 45ºC nalgumas zonas do interior norte e centro do país. Além dos perigos para a saúde, aumenta, é claro, risco de incêndio.

CINQUENTA MENOS TANTAS O regresso dos talibãs ao poder encurralou as afegãs em casa, em particular as estudantes universitárias. Meia centena delas reavivará o sonho em Portugal, onde têm garantidas bolsas de estudo para frequentar instituições do ensino superior. Houve 1424 candidaturas de raparigas, como explica a Margarida Mota, que falou com Ana Santos Pinto, responsável da Nexus 3.0, a organização não-governamental que está na origem do projeto.

CINCO MENOS UM O Presidente chinês fez disparar rumores ao não discursar na cimeira dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul), que se realiza em Joanesburgo. Segundo o jornal britânico “The Guardian”, Xi Jinping chegou na segunda-feira e deveria ter intervindo no dia seguinte, mas o seu discurso foi lido pelo ministro do Comércio chinês, Wang Wentao. Xi esteve no jantar oficial desse dia, mas não houve explicação para a alteração.

QUATRO MAIS MUITO Começa hoje o festival de Vilar de Mouros, que, conta a Blitz, é o decano dos festivais de música em Portugal e este ano conta com concertos de Limp Bizkit, The Prodigy ou James, Xutos & Pontapés, Within Temptation, Ornatos Violeta e Guano Apes, terminando na madrugada do próximo domingo. Pode encontrar neste artigo toda a informação útil, dos horários dos espetáculos aos transportes.

VINTE E TRÊS MAIS CEM A Tribuna conta a história de Sha’Carri Richardson, que era uma das favoritas a figura nos Jogos Olímpicos de Tóquio. Uma polémica suspensão por consumo de canábis, contestada por outros atletas e até políticos, deixou-a de fora dos 100 metros. O êxito da possível sucessora de Usain Bolt, na forma de correr e no carisma, chegou nos Mundiais de Budapeste. Aos 23 anos, está a um ano de ir aos Jogos de Paris.

Frases

“Matei-os de propósito porque não sou suficientemente boa.”
Lucy Letby, enfermeira britânica condenada a prisão perpétua por ter assassinado sete bebés e tentado matar outros seis

“Isto vem diretamente de mim. Melhorará grandemente a estética”
Elon Musk, dono da rede social X (antigo Twitter), ao anunciar que esta deixará de mostrar os títulos dos artigos partilhados

Podcasts a não perder

Alterações Climáticas? Vamos todos morrer! Digam:‌ “Todos, todos, todos…”. Devido aos gastos excessivos com a Jornada Mundial da Juventude, só vai haver dinheiro para salvar umas 3 pessoas. Uma tragédia! O painel da Má Língua debate soluções para este grave flagelo.

“Como é possível a gestante ficar com a criança e os pais biológicos não?”, alerta a presidente do Conselho de Ética para as Ciências da Vida. A Lei da Morte Medicamente Assistida já foi promulgada, mas não escapa à análise crítica de Maria do Céu Patrão Neves que considera que o texto final é uma manta de retalhos. Ouça o novo episódio do podcast Futuro do Futuro .

O novo episódio de O CEO é o Limite é sobre o caminho para a empatia e para o foco nas relações humanas. Daniela Simões, CEO da startup de mobilidade Miio, é a convidada de Cátia Mateus para mais uma conversa sobre liderança e carreiras.

O que ando a ler e ouvir

Fechemos este café solo com sugestões espanholas, como o seu início. Acresce que ambas me parecem pertinentes hoje, Dia Internacional de Recordação do Tráfico de Escravos e da sua Abolição e Dia Europeu da Memória das Vítimas de todos os Regimes Totalitários.

Los surcos del azar (editora Astiberri), que na versão portuguesa em dois tomos (Levoir) se chama Os trilhos do acaso, é (mais) uma brilhante novela gráfica de Paco Roca, de quem já tenho falado em newsletters anteriores. Exímio a explorar os caminhos minados da memória, desta vez atira-se à história dos combatentes republicanos que, após derrota na guerra civil espanhola, foram lutar ao lado dos aliados na II Guerra Mundial. Alicerçada nas recordações de Miguel Ruiz, republicano exilado em França, Roca recupera o percurso da companhia La Nueve, formada sobretudo por espanhóis com menos de 20 anos que não suspeitavam que desfilariam pelos Campos Elísios durante os festejos da reconquista de Paris. Obra premiadíssima lançada há dez anos, teve edição ampliada em 2019, com entrevista ao autor e depoimentos do historiador hispanista americano Robert Coale, que o ajudou a rever aspetos da narrativa, além de textos das então presidentes da Câmara de Paris e Madrid, Anne Hidalgo e Manuela Carmena, respetivamente, esquiços, fotos, novas páginas e até uma carta de um dos protagonistas.

Passando à música, e enquanto vou desfolhando os Proms da BBC e aguardando pelos Blur no Kalorama, abro um intervalo para o mais novo lançamento do mestre Jordi Savall. Oriente Lux foi gravado ao vivo e, com o subtítulo “Diálogo das Almas”, traz música tradicional curda, sefardita, bengali, síria, árabe, libanesa, magrebina e mediterrânica, num disco duplo gravado ao vivo em 2019 na Filarmonia de Paris. Insere-se num projeto em que o músico catalão junta esforços com os colegas sírios Waed Bouhassoun e Moslem Rahal para apoiar músicos refugiados e migrantes na Europa, dando voz a uma diversidade que corria o risco de se perder à mercê de guerras e colonialismo, já que muita da memória que carregam não se encontra escrita. Savall dedica o álbum às vítimas da esquecidíssima guerra da Síria, que está prestes a fazer doze anos e meio. Em dezembro poderemos ouvi-lo na Fundação Gulbenkian com empreitada de geografias não muito distantes: Istambul 1700.

Continue a seguir toda a atualidade com o Expresso. Contamos-lhe no site tudo o que se passa no país e no mundo, enquanto preparamos a próxima edição semanal, que sai na sexta-feira. Até lá, até breve e até sempre!

LER O EXPRESSO

Sem comentários:

Mais lidas da semana