Artur Queiroz*, Luanda
Na chitaca da Kapopa o Velho Tuma era pastor do gado e meu professor. Ensinou-me tudo o que é preciso para sobreviver sem pedir licença a ninguém. A lição de base era diária e no sumário só existia um tema, os caminhos. Uns foram abertos por nós, na repetição dos passos atrás das cabras, que embirravam com as árvores de frutos e queriam devorá-las. Xé! Xé! Xé! E os bichos trocavam os ramos pelo capim.
Outros caminhos eram trilhos dos cães. Tinham o cuidado de passar sempre pelo mesmo sítio até ficar desenhado um carreiro estreito no meio do mato. Depois havia a picada que levava ao Catumbo, Cangundo e Dambi. Estrada larga, bordejada por muanzas frondosas e sepulturas dos notáveis: Regedores, sobas e sobetas.
O Velho Tuma andava com uma machadinha do lado direito da cintura, uma enxadinha do lado esquerdo, um pau tão alto como ele na mão e quatro cães: Rubi, Piloto, Asiática e a Negrita. Soltava sons guturais que eram ordens imperativas às cabras. E elas obedeciam. Eu seguia-o com dificuldade e ia fazendo perguntas. Nas clareiras sentávamo-nos numa pedra, eu no seu colo, e começavam as lições. Temos de limpar bem os caminhos. Nem pedras nem capim. Quando os nossos trilhos forem invadidos pelos pedregulhos e os capinzais é porque o mundo acabou.
Para evitar tão trágico fim íamos cortando ou arrancando o capim. Cortando os arbustos que invadiam os trilhos. As pedras eram atiradas para o mato. Tudo bem limpo. Para o mundo não acabar. Sem caminhos não há nada.
As crianças crescem e depois vão para a escola. Mas na nossa aldeia o ensino acabava à quarta classe. Tive que mudar para o Uíge, a grande cidade. A luz nas ruas não deixava lugar à noite. Casas com casas em cima, afamadas de prédios. Primeiro andar ou mais. No chão, as ruas principais tinham uma coisa bem dura, chamada alcatrão. Lá o capim não crescia. Ninguém tropeçava nas pedras. Ali nunca chegaria o fim do mundo. Fui arrancado da cidade a tiro. Perseguido pela morte. Donde vem o cheiro a mortos, meu amor?
E nunca mais voltei aos meus caminhos da infância. Nunca mais aprendi nada com o Velho Tuma. As Mamãs do Cangundo que me alimentaram, que me embalaram ao colo, que me adormeceram, nunca mais me chamaram filho. Ainda hoje tenho na memória o seu perfume inebriante. Foram assassinadas pelas milícias dos colonos em 1961.
Num bar de Havana conheci a Pianista. A meio de um mojito perguntou se eu andava por ali perdido. Sim perdi, perdi todos os meus caminhos. Para mim já chegou o fim do mundo. Fomos bebendo e conversando até que ela encontrou a solução: Tu és filho de Eleguá! Encontrei um filho de Eleguá!
Dali fomos para o palácio do capitão-general. No imenso salão existia um piano de cauda e magotes de turistas. A Pianista sentou-se, máxima concentração e começou a tocar Rachmaninoff. Os turistas ficaram incrédulos. E eu comovido. Pianista, toca para mim Adios Nonino, de Astor Piazzola. E ela tocou. Na época ele era pouco conhecido. Os turistas saíram em debandada.
Toca Pianista! Talvez a tua arte
ressuscite o homem morto que mora
Nessa noite não sei se em sonho ou acordado, falei com Eleguá. Quem és tu, meu pai? E ele respondeu: Sou o deus que abre todos os caminhos.
Então devolve-me os meus caminhos da Kapopa, do Cangundo, do Catumbo, do Dambi. As Mudanças do Bindo. Devolve-me o canto do catuituí e o voo em impulsos das viuvinhas com rabo de junco. Leva-me às farras de sábado à noite no Kandombe.
Deus falou num trovão: Não recupero caminhos. Eu abro e tu andas. Mas para abrir os caminhos tenho que matar os sonhos. Queres seguir sem sonhos?
Fui saber de Eleguá. É representado por um menino negro, de fraque e cartola. Na mão direita tem um papagaio de papel e na outra, um palito com uma bela mariposa espetada pela cabeça. Sou filho de um deus dilaéctico. Para abrir os caminhos mata os sonhos.
Aceitei seguir por todos os caminhos sem sonhos, ainda que o mundo sem eles nunca seja dia nem noite, tarde ou cedo. Apenas um cinzento que mata a vontade de lutar. Vamos fazer mais como? Decidi que a partir desse dia só me movia se fosse para me perder. E assim ando.
Eleguá escondeu-me que os caminhos estão juncados de mortos. Os meus passos são travados por derrocadas de cadáveres em decomposição mas falam, comem, bebem, aplaudem os tiranos. Servem os senhores. Sem sonhos e com o cheiro a morte, perdi a vontade de andar para me perder.
Pianista toca a oração ao fogo e ao mar!
E ela inundou a casa com música contemporânea. Que os martelos acordem os mortos de todos os caminhos e eles prossigam a jornada nem que seja para se perderem.
Nenhum morto acordou.
E se a Mamã Pátria estiver a morrer em cada um e todos os seus caminhos? Não. A Mamã Angola é eterna.
Eu sou filho de Eleguá. Hoje deixo-vos este queixume. Amanhã pode ser o fim do mundo. Se sobreviver, ainda vos escrevo cartas de amor.
* Jornalista
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