segunda-feira, 4 de março de 2024

Angola | Estado de Direito Bateu no Fundo -- Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

O Procurador-Geral da República, Hélder Pita Grós, aproveitou a abertura do ano Judicial para revelar aos jornalistas que Angola não é um Estado de Direito e afundou. Se fosse um vigarista vulgar a dizer isto, tínhamos dúvidas. De fosse um trafulha, até podíamos encarar a declaração com um sorriso indulgente. Se fosse um mentiroso, dávamos-lhe um desconto como damos a Adalberto da Costa Júnior. 

A questão nem devia ser colocada no condicional porque o Presidente João Lourenço, ungido pela vontade do altíssimo deus, nunca escolheria para o cargo um aldrabão, um vigarista vulgar e um trafulha. Portanto, Hélder Pita Grós teve a coragem de pôr o dedo na ferida publicamente, dando a cara abertamente. Até aqui ele e a sua gente deitavam abaixo o Supremo Tribunal e seu presidente, Joel Leonardo, mas servindo-se dos “jornalistas” e outros artistas. Pita Grós afirmou que o empresário Carlos São Vicente foi detido, presente a um agente do Ministério Público e ele decretou a sua prisão preventiva! 

O Ministério Público é um órgão auxiliar da Justiça. Os seus agentes não são juízes. Nos Tribunais, onde se faz Justiça em nome do Povo, são apenas uma parte. Até no Zaire de Mobutu só os magistrados judiciais podiam decretar prisão preventiva. A Liberdade é um bem precioso. Sem ela a vida não tem sentido. Hélder Pita Grós disse, sem gaguejar e mastigando as palavras, que um promotor de justiça, auxiliar da Justiça, decidiu a prisão preventiva do empresário Carlos São Vicente. É a medida de coacção mais gravosa que existe no sistema. 

Isto é gravíssimo. A secretária particular do Procurador-Geral da República não pode decretar a prisão preventiva de Carlos São Vicente. Ou o seu motorista. Ou um agente regulador de trânsito. Ou o Man Gena. Só um Juiz de Direito pode tomar tão grave medida. 

Hélder Pita Grós, na sua patética confissão, diz que um agente do Ministério Público decretou a prisão preventiva de Carlos São Vicente porque na época não existiam juízes de garantia. Eu chamo-lhes Juízes das Liberdades mas no mobutismo reinante em Angola, a palavra Liberdade é maldita! O Procurador-Geral da República sabe que na época existiam juízes de Direito, fossem de “garantias” ou não. Existiam Tribunais fora dos gabinetes do Palácio da Cidade Alta.

O Ministério Público é um inestimável e indispensável órgão auxiliar da Justiça. Mas se ao mesmo tempo também julga, decide sobre a liberdade dos cidadãos, então não há Estado de Direito. Ninguém imagina um advogado de defesa a ser ao mesmo tempo juiz da causa. Um arguido não pode ser ao mesmo tempo juiz de si próprio. Pôr um agente do Ministério Público a julgar a causa em que fez a acusação, é igual.

E se existia uma Lei que permitia aos agentes do Ministério Público decretar prisões preventivas, como denunciou corajosamente Hélder Pita Grós, então a situação é ainda mais grave. Os operadores da Justiça não podiam aceitar semelhante anomalia. Magistrados judiciais, agentes do Ministério Público e advogados não podiam colaborar com esta gravíssima iniquidade. Todos ajudaram a falsificar o Estado de Direito. Todos colaboraram numa mentira que pôs em causa um pilar do regime democrático.

Pita Grós não mente. Quando muito anda distraído. Também não é incompetente. Viu-se a sua competência quando soltou Rafael Marques e Carlos Alberto, agentes do chefe Miala, aos calcanhares do Procurador-Geral Adjunto Mota Liz, para abrir caminho a um mandato perpétuo quando já está a cair de podre. Os abusos da Procuradoria-Geral da República e do Ministério Público não lhe dão dores de cabeça. Quando muito sente algum incómodo com as protuberâncias testais mas isso toca a todos, sobretudo a quem tem muitas mulheres. Mas está mal informado.

Sobre o parecer do Conselho de Direitos Humanos da ONU que declara arbitrária a prisão de Carlos São Vicente e o seu julgamento repleto de ilegalidades, Pita Grós, retorcendo a boca (roído pelos remorsos?) disse que “não foi uma agência da ONU. Foi um grupo de trabalho. É um parecer, não é nenhuma deliberação”. O Procurador-Geral da República garantiu que o parecer “é extemporâneo. Isso foi quando ele (Carlos São Vicente) esteve preso preventivamente”. 

Pita Grós, provavelmente incomodado com as protuberâncias testais, neste ponto faltou à verdade. O parecer abrange a prisão preventiva, as ilegalidades no julgamento, a condenação e a situação actual que é de prisão arbitrária. Também não pode ver tudo, tem muitas gorduras em cima dos olhos. E não pode dizer tudo certinho, entorta muito a boca e há palavras que traem o seu pensamento. 

O Procurador-Geral da República, que fala pela boca de João Lourenço, está um tanto equivocado quando diz: “ A detenção não foi feita por um juiz por isso era ilegal. Mas naquele tempo ainda não tínhamos juízes de garantia”. Os magistrados judiciais não detêm ninguém! Emitem mandados de detenção para o detido ser presente a um Juiz de Direito. Os órgãos auxiliares da Justiça cumprem. Para compensar os dislates, teve a coragem de denunciar: “Naquele tempo era o Ministério Público que aplicava a medida de prisão preventiva. Não podíamos fazer diferente”. 

Uma enormidade. Um tiro no coração do regime democrático. Nem o Savimbi fazia pior. Auxiliares da Justiça ordenam prisões preventivas! Quem recolhe provas para acusar também julga e condena! Nem Idi Amin, Bokassa ou Mobutu consentiam tão graves atropelos ao Estado de Direito. 

Pita Grós diz que “o Governo de Angola ainda não foi notificado do parecer. Não fomos notificados, não vamos responder”. Espantoso! O Procurador-Geral da República a responder pela Estado Angolano. O principal responsável pelas ilegalidades e arbitrariedades julga em causa própria. Não foi um erro. Eles pensam assim.

A prova mais evidente está no discurso do Presidente João Lourenço na abertura do ano judicial. Saudou os “bons e inequívocos resultados no combate à corrupção”. E destacou que “os confiscos permitiram boas instalações aos serviços da Justiça”. As políticas de “combate à corrupção” causaram graves danos à unidade no seio do MPLA. E na sociedade angolana. Gravíssimas perdas de riqueza e postos de trabalho. Soltaram um populismo desenfreado que ameaça pôr em causa o regime democrático.

Um parecer do Conselho dos Direitos Humanos da ONU demoliu essas políticas por serem ilegais, arbitrárias e abusivas. Só toca a alguns! Mas o Soba Grande está contente! Por fim caiu em si e foi dizendo que defende “o combate à corrupção com justiça!”. A dele!

A abertura do ano judicial mostrou um bastonário da Ordem dos Advogados amorfo. Nem sequer foi capaz de saudar a declaração de inconstitucionalidade do decreto presidencial que dava dez por cento de comissões aos juízes e agentes do Ministério Público por cada “sucesso” nos confiscos. Tão grave quanto mais foi uma vitória da instituição que ele representa e prestigiou o Tribunal Constitucional. 

O mal-amado da Justiça, venerando presidente do Tribunal Supremo, Joel Leonardo, foi mesmo corajoso. Reclamou ante tudo e todos a autonomia e independência dos Tribunais. Uma declaração normal, nos tempos que correm é motivo de destaque! Algo está podre no Estado de Direito.

Os “bons e inequívocos resultados no combate à corrupção” deram números alarmantes na execução do Orçamento-Geral do Estado em 2023. Só quatro províncias apresentaram contas! As outras 14 não querem saber disso para nada. As Embaixadas de Angola no mundo também ajudaram ao descalabro. Apenas 23 apresentaram contas correctamente. Outras 36 fizeram contas mas foram detectadas graves irregularidades. E 29 Embaixadas nem se dignaram apresentar contas. Nos municípios foi o descalabro total. E a este nível, a não prestação de contas tem graves consequências na vida das populações.

Hoje é o Dia da Mulher Angolana. As nossas Mamãs são o melhor que temos. Nesta data permitam-me que preste uma homenagem sentida a Maria Mambo Café, a nossa grande dirigente política. E saúde Mamã Maria Eugénia Neto. Sem ela, o Fundador da Nação Angolana não tinha ido tão longe como foi e nos levou. Um abraço especial às minhas amigas que não sendo muitas, são angolanas excepcionais. Guerreiras Angolanas mandem-me um pouco da vossa força!

* Jornalista

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