Marco Serronha
Com as guerras na Ucrânia e no Médio Oriente em curso, com praticamente todo o foco ocidental aí colocado, há desenvolvimentos em África, nomeadamente no Sahel e África Ocidental, onde incluímos o Golfo da Guiné (GdG), que têm de ser estrategicamente monitorizadas e que vão exigir respostas rápidas. Isto porque o fenómeno jihadista radical se tem implantado e desenvolvido de forma brutal na região. África sofre com a presença ativa de grupos jihadistas salafistas em todas as sub-regiões que compõem o continente.
A Al Qaeda (AQ) e o Estado Islâmico (EI), os dois principais atores que lideram o jihadismo global atualmente, estão presentes na região, competindo entre si, mas ao mesmo tempo reforçando sua presença e o seu modelo de atuação, onde constituem ameaças sérias aos Estados, e às várias organizações sub-regionais, que continuam a tentar desenhar respostas a esta ameaça, cada vez mais perigosa e letal, mas sem grande sucesso no terreno. Contudo, a situação mais descontrolada é mesmo o Sahel e alguns países do Golfo da Guiné, tais como o Benim, o Togo e a Nigéria.
Existem, na região, quatro grandes grupos terroristas jihadistas. A Jama’at Nusrat al-Islam wa al-Muslimeen (JNIM), que significa “o grupo de apoio ao Islão e aos muçulmanos”, é uma organização chapéu de vários grupos alinhados com a Al-Qaeda e está presente no Mali, no Níger e no Burkina Faso. O Estado Islâmico no Grande Sara (ISGS) é o braço regional do EI, que começou a surgir em 2015-2016. Tem estado ativo no Níger, no norte do Mali, bem como no Burkina Faso e tem uma relação de tensão/competição com a JNIM. O Estado Islâmico da Província da África Ocidental (ISWAP), originalmente um derivado da organização nigeriana Boko Haram, está ativo principalmente na Região do Lago Chade. Semelhante ao ISGS, constitui uma província oficial do EI, embora a hierarquia entre o ISGS e o ISWAP não seja clara. O ISWAP, ao contrário do Boko Haram, é conhecido pela sua capacidade de substituir o Estado na prestação de serviços públicos básicos, administra e cobra impostos, de forma muito sistemática, sobre os territórios que controla. E, por fim, o nosso conhecido Hezbollah que é, simultaneamente, um partido político xiita libanês e uma organização terrorista, com uma estrutura paramilitar bem equipada e muito ativa no Médio Oriente. Está presente na África Ocidental através de diásporas libanesas e outras diásporas economicamente poderosas. O Hezbollah, como organização terrorista, é muito menos ativo na África Ocidental do que no Médio Oriente, mas mantém redes de financiamento e lavagem de dinheiro conectadas ao comércio de ouro, drogas e diamantes na região, em países como Guiné, Costa do Marfim ou Serra Leoa.
As relações entre as redes terroristas e de crime organizado transnacional, na África Ocidental, no Sahel e no GdG, apresentam um dos desafios de segurança mais significativos na atualidade. Estas redes comprometem a governação e o Estado de Direito e cooperam, a vários níveis, numa complexa rede de interesses mutuamente benéficos, altamente disruptiva da segurança e estabilidade da região. A estas redes junta-se a pirataria marítima no GdG, com sério impacto na segurança marítima na região e onde os proveitos desta atividade ilícita contribuem para o crime organizado e para financiar o terrorismo.
Por conseguinte, o combate a esta tríade, relacional e operacional, deve envolver a recuperação do controlo territorial dos grupos terroristas pelos Estados, garantir as capacidades para assegurar a segurança marítima do GdG, bem como o reforço das estruturas de governança dos Estados e das organizações regionais e sub-regionais. Estes objetivos devem ser atingidos de forma coerente e integrada, com o apoio dos Estados Unidos, da UE e dos países europeus e outros, em mecanismos de cooperação multidimensional, bilateral ou multilateral, com os países e as organizações da região.
Outra questão, que tem comprometido seriamente a luta contra o terrorismo, tem sido a competição geopolítica global, com impacto em África, nomeadamente a que envolve a Rússia contra o Ocidente, em especial contra a França, e mais recentemente, os EUA. A dinâmica da geopolítica russa referente à África subsariana tem conduzido a acordos bilaterais com diversos países, que têm levado à rotura das relações bilaterais entre quase todos os países da África da francofonia e a França, país que assegurava muito do combate contra o movimento jihadista radical, nomeadamente através do G5 - Sahel e das Operações Barkane e Takuba, sendo estas últimas operações contraterroristas lideradas pela França, sendo a Takuba multinacional e envolvendo países europeus, entre os quais Portugal. Em simultâneo, há serias preocupações com a sequência de golpes de Estado em diversos países do Sahel e da África Ocidental, com suspeitas, fundadas, de que a Rússia tenha patrocinado estas mudanças de poder. E este modus operandi russo tem sido especialmente assertivo no Sahel, nomeadamente no Mali, no Níger e no Burkina Faso, onde os golpes de Estado levaram à saída das forças francesas e algumas internacionais, dando espaço à progressão do terrorismo. As operações contraterroristas levadas a efeito pelos países do Sahel e pela Rússia, fruto de provocarem elevadas baixas entre as populações civis, têm contribuído mais para dar força aos terroristas do que para contê-los.
O ISGS começou a ressurgir na área da tripla fronteira do Burkina Faso, Mali e Níger, após a retirada das forças francesas em 2021, tendo duplicado as suas áreas de atuação entre 2022 e 2023. Existem informações que poderá estar para ser criado um califado na região, com o controlo duma extensa área e das suas populações, estabelecendo-se como um centro de treino para combatentes estrangeiros do norte da África e da Europa, o que aumenta exponencialmente o risco de ameaça transnacional deste grupo.
O Sahel, a África Ocidental e o Golfo da Guiné, apesar de terem tido uma importância geoestratégica secundária para a União Europeia, tem estado a cair na órbita da Rússia, o que deverá constituir uma preocupação estratégica fundamental na contenção global deste país, como ameaça à segurança e estabilidade do continente europeu. Os riscos da criação dum Califado no Sahel, como centro exportador de terrorismo transnacional para a Europa, a que se aliam os riscos dum incremento das migrações ilegais para o nosso continente, fruto duma disrupção da capacidade de as populações locais sobreviverem numa zona de elevada conflitualidade, mais a insegurança marítima no GdG, centro de gravidade estratégico da construção duma maior autonomia energética da Europa, tem de levar os europeus a verem esta situação como muito séria.
O risco de termos, no nosso flanco sul próximo, uma situação pior que a da Síria/Iraque ou do Afeganistão no passado, em termos de terrorismo e fluxos migratórios, é deveras preocupante, mas real. Está bem mais perto de Portugal e virá, com certeza, a exigir uma partilha, de forma adequada, do trabalho estratégico europeu e aliado, entre os flancos Leste e o Sul, para se garantir a segurança desta nossa Europa e das suas áreas contíguas.
* Tenente-general
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