O principal problema da política em Portugal não é André Ventura, nem a normalização, decorrente dos resultados do último ato eleitoral, do discurso sedimentado na difamação das instituições democráticas, no preconceito racial, no negacionismo ambiental e na tentativa de reabilitação do fascismo português que vários militantes e dirigentes do Chega abertamente defendem ou defenderam até há muito pouco tempo.
Na verdade, o Chega não está sozinho nisso. Era até agora um ideário envergonhado entre as elites políticas e mediáticas, circulava pelos meios de difusão com pezinhos de lã, mas, como temos visto através de vozes do centro e centro-direita que apresentam argumentos para um entendimento entre PSD e Chega para a governação, muita gente do “sistema” revela-se, afinal, adepto de algumas destas ideias.
É evidente que temos de respeitar democraticamente um milhão e 109 mil votos que o partido de André Ventura recebeu, mas também devemos respeitar o facto de mais de 8 milhões de portugueses não terem votado nas ideias dele.
Aceitar sem combate político vigoroso, intenso, sim, mas correto, decente e esclarecedor o crescimento das ideias do Chega mais perniciosas para o justo equilíbrio democrático português é desrespeitar a maioria dos portugueses - e, portanto, ceder às reivindicações do Chega mais corruptoras da arquitetura do Portugal constitucional é trair a vontade de 8 em cada 9 portugueses com capacidade eleitoral, é desrespeitar uma imensa maioria que não manifestou apoio a um partido que já prometeu “acabar com o regime”.
O Chega deve ter todo o acesso ao poder político que a Constituição lhe dá e que a Justiça lhe permite - a grande votação que conquistou dá-lhe esse direito, mas não deve ter nem mais um milímetro para além desse espaço, e qualquer cedência para além disso, qualquer ato que amplifique, para lá do necessário e legítimo, a sua influência é, simplesmente, uma traição à maioria dos portugueses.
Se Luís Montenegro o fizer não
atraiçoa apenas uma promessa eleitoral, falseia o sentido de voto dos
portugueses que o fizeram na AD, dos outros que votaram em todos os outros
partidos menos no Chega, dos que votaram em branco ou dos abstencionistas:
nenhum desses portugueses, 88% do universo eleitoral, manifestou-se no sentido
de mudar o regime saído do 25 de Abril, ao contrário dos 12% de portugueses
eleitores que votaram
O principal problema da política em Portugal não é, portanto, André Ventura, é a ineficácia do combate às suas ideias e às suas táticas políticas, é a cedência ao seu projeto - e aí a responsabilidade não é dele.
Quem quer realmente combater o Chega e defender o regime que há 50 anos o 25 de Abril começou a criar, deve respeitar escrupulosamente as normas institucionais, as regras da nossa democracia que a Constituição de 1976 lançou, mesmo se o Chega beneficiar delas - o contrário daria, com razão, uma força incomensurável à argumentação antirregime de André Ventura.
Simultaneamente tem de prevalecer uma pujança no discurso e uma assertividade na prática política antiChega que seja diária, permanente, sem tréguas em todas as instituições, nas ruas, nas associações, nos clubes, nos empregos, nas escolas, nas Administrações Pública e Local, nas polícias, na Justiça, nos media - só assim será possível inverter a tendência de crescimento desse partido.
O principal problema político de Portugal não é André Ventura e o seu milhão e tal de votos. O principal problema político de Portugal é os restantes 8 milhões de portugueses que não votaram no partido que ele lidera não estarem convencidos de que o combate democrático ao Chega é uma questão vital, de sobrevivência, de viabilização de uma “República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”...
Reconheceram a frase anterior? Sim, citei o artigo 1.º da Constituição Portuguesa, que se arrisca a ser apagado ou alterado caso PSD e Chega, de compromisso em compromisso, de negociação em negociação, viessem, em nome da estabilidade política, a entender-se... É esse o caminho que queremos começar a abrir? Foi para isso que os portugueses votaram?
* Jornalista
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