À véspera das urnas,
EUA parecem mais divididos do que nunca. Mas por trás da polarização, há
identidade. Nem Kamala, nem Trump querem enfrentar desigualdade, rentismo ou
guerra – três marcas cruciais de um império decadente
Maurizio Lazzarato* | em Outras Palavras | Tradução Antonio Martins | Imagem: Nicole Eisenman, O Triunfo da pobreza (2009) | # Traduzido em português do Brasil
Um duplo processo político e econômico, contraditório e
complementar, está em andamento: o Estado e a política (norte-americana)
afirmam energicamente sua soberania por meio da guerra (inclusive guerra civil)
e do genocídio. Enquanto isso, ao mesmo tempo, mostram sua total subordinação
ao novo rosto que o poder econômico adquiriu após a dramática crise financeira
de 2008, promovendo uma financeirização sem precedentes, tão ilusória e
perigosa quanto a que produziu a crise das hipotecas subprime. A
causa do desastre que nos levou à guerra tornou-se um novo remédio para sair da
crise: uma situação que só pode ser um presságio de outras catástrofes e
guerras. A análise do que ocorre nos Estados Unidos, o coração do poder
capitalista, é crucial, pois é precisamente de seu seio, de sua economia e de
sua estratégia de poder, que partiram todas as crises e todas as guerras que
assolaram e assolam o mundo neste século.
O núcleo do
problema reside no fracasso do modelo econômico e político dos Estados Unidos,
que o conduz necessariamente à guerra, ao genocídio e à guerra civil interna –
por ora apenas latente, mas que já se materializou uma primeira vez no
Capitólio, ao final da presidência de Donald Trump. A economia norte-americana
já deveria ter sido declarada em falência há tempos, se fossem aplicadas as
regras impostas a outros países. No final de abril de
Se há uma
nação que vive às custas do mundo inteiro, são os Estados Unidos. O resto do
mundo paga as dívidas que eles geram (com os gastos desmesurados do “american
way of life” — do qual, evidentemente, apenas uma parte dos norte-americanos se
beneficia — e seu enorme aparato militar) de duas formas principais. Através do
dólar, a mercadoria mais negociada do mundo, os Estados Unidos exercem uma
senhoriagem sobre todo o planeta, pois sua moeda nacional funciona como moeda
do comércio internacional, o que lhes permite endividar-se como nenhum outro
país. Após a crise de 2008, os EUA encontraram outra forma de transferir os
custos de sua dívida para outros, por meio de uma reorganização das finanças.
Capitais (principalmente de aliados e, entre eles, especialmente
da Europa) são transferidos para os Estados Unidos para pagar as crescentes
taxas de juros da dívida norte-americana, graças aos fundos de investimento.
Após a crise financeira, estabeleceu-se uma concentração de capital, graças a
quinze anos de quantitative easing (emissão de
dinheiro a custo zero) operado pelos bancos centrais. Surgiu um oligopólio em
escala que o capitalismo nunca havia conhecido. Com a ajuda política dos
governos de Obama e Biden, um grupo muito reduzido de fundos de investimento
norte-americanos possui ativos (ou seja, captação e gestão de poupança) entre
44 e 46 trilhões de dólares. Para ter uma ideia do que significa essa
centralização monopolística, pode-se comparar com o PIB do Brasil – 2,3
trilhões de dólares – ou de toda a União Europeia – 18 trilhões de dólares. Os
“Big Three”, como são conhecidos os três maiores fundos de investimento
(Vanguard, Black Rock e State Street), constituem, de fato, uma única entidade,
pois a propriedade dos fundos é cruzada e difícil de atribuir.
As fortunas
desse “hipermonopólio” foram construídas sobre a destruição do Estado Social.
Para as aposentadorias, a saúde, a educação ou qualquer outro serviço social,
os norte-americanos são obrigados a contratar seguros de todo tipo. Agora, cabe
aos europeus e ao resto do mundo ocidental (mas também à América Latina)
colocarem-se nas mãos dos fundos de investimento, ao ritmo ditado pelo
desmantelamento dos serviços sociais (o salário indireto garantido pelo Estado
de Bem-estar social transforma-se em uma carga, um custo e uma despesa com que
cada um deve arcar, para garantir sua própria reprodução). Os Estados Unidos
têm um duplo interesse em continuar e intensificar o desmantelamento do welfare
state em todo o mundo: econômico, porque induz a investir nos
títulos dos fundos de investimento (que, por sua vez, servem para comprar
títulos do Tesouro, obrigações e ações de empresas americanas) e político,
porque a privatização dos serviços significa individualismo e financeirização
do indivíduo, que se transforma de trabalhador ou cidadão em pequeno operador
financeiro (e não “empreendedor de si mesmo”, como prega a ideologia
dominante). As políticas fiscais também convergem para o projeto de anular o
Estado Social. Nem os ricos nem as empresas pagam impostos, e a progressividade
dos mesmos é reduzida a zero; portanto. Não há mais recursos para os gastos
sociais e, em consequência, incentiva-se a compra de serviços privados que
acabam nos fundos de investimento. O projeto de destruir tudo o que foi
conquistado graças a duzentos anos de lutas está, finalmente, se concretizando.
A poupança
norte-americana já não é suficiente para alimentar o circuito de renda, de modo
que os fundos de investimento estão à espreita da poupança europeia. Por
exemplo, os 35 trilhões de dólares que o ex-primeiro ministro italiano Enrico
Letta gostaria de destinar a um grande fundo de investimento europeu
funcionariam segundo os mesmos princípios: produzir e distribuir renta, gerando
as mesmas enormes diferenças de classe encontradas nos Estados Unidos. A razão
para o rápido e incrível empobrecimento da Europa pode ser rastreada na
estratégia econômica conduzida pelo aliado norte-americano. O diferencial
negativo em relação aos Estados Unidos passou de 15% em 2002 para os atuais
30%. Quanto mais a Europa se deixa roubar, mais suas classes políticas e
midiáticas se tornam atlantistas, belicistas, submissas àqueles que as estão
marginalizando de forma dramática, empurrando-as para a guerra contra a Rússia
(guerra que, aliás, nem sequer são capazes de sustentar). Os Estados europeus
substituíram a China e o Leste Asiático na compra de títulos do Tesouro
norte-americano e, ao manterem a demolição do Estado Social, obrigam a
população a contratar apólices de seguro que acabam nas contas dos fundos de investimento.
Dessa forma, o euro se converte em dólar, salvando assim a dolarização da
ameaça representada pela recusa do Sul em submeter-se ao domínio da moeda
americana.
Essa
transferência de riqueza também afeta a América Latina, onde Milei é a
vanguarda da nova financeirização que visa privatizar tudo. O neofascismo de
Milei é um laboratório para adaptar as técnicas de saque americanas adotadas
pela Europa, Japão e Austrália às economias mais fracas. Milei não encarna o
fascismo clássico; ele representa o novo fascismo “libertário” da renda e dos
fundos de investimento, uma cópia ideológica desajeitada do fascismo do Vale do
Silício, nascido de suas empresas “inovadoras”.
A política
econômica de Biden, de repatriação de indústrias que haviam sido
deslocalizadas, empobrece ainda mais o restante do mundo e, sobretudo, a
Europa, que vê empresas estabelecidas em seu território tentarem cruzar o
Atlântico. As grandes facilidades fiscais necessárias são financiadas com
dívida, assim como com dívida são financiadas as bombas (de bilhões de dólares)
que os Estados Unidos continuam a enviar para a Ucrânia e Israel. Portanto,
ironicamente, a Europa paga por uma política projetada para reduzir ainda mais
sua capacidade produtiva, assim como paga duas vezes pela guerra e pelo
genocídio: uma vez com a compra de títulos do tesouro norte-americanos e com as
apólices de seguro que permitem aos Estados Unidos se endividarem; e outra vez
com a imposição de construir uma economia de guerra (aceita e acelerada por
classes políticas inclinadas ao suicídio).
Como dizia
Kissinger: “Ser inimigo dos Estados Unidos pode ser perigoso, mas ser amigo é
fatal”. Essa enorme liquidez permitiu que os fundos comprassem, em média, 22%
de todo o índice Standard & Poor’s, que contém as 500 principais empresas
listadas na bolsa de Nova York. Os fundos de investimento já estão presentes
nas empresas e bancos mais importantes da Europa (principalmente na Itália, onde
estão sendo vendidos em ritmo acelerado), e suas especulações praticamente
decidem o destino da economia, determinando as decisões dos “empreendedores”.
Alguém delirava sobre a autonomia do proletariado cognitivo, sobre a independência da nova composição de classe. Nada mais distante da realidade. Quem decide onde, quando, como e com qual força de trabalho produzir (assalariada, precária, servil, escravizada, feminina, etc.) é, mais uma vez, quem possui os capitais necessários, quem tem a liquidez e o poder para isso (hoje em dia, sem dúvida, os “Big Three”). Com certeza, não é o proletariado mais fraco dos últimos dois séculos. Esqueçam autonomia e independência; a realidade de classe é a subordinação, a submissão e a sujeição, como nunca antes na história do capitalismo. Ser “trabalho vivo” é uma desgraça, pois é sempre um trabalho comandado, como o do meu pai e do meu avô. O trabalho não produz “o” mundo, mas o “mundo do capital”, que, até prova em contrário, é algo muito diferente, pois é um mundo de merda. O trabalho vivo só pode conquistar autonomia e independência na recusa, na ruptura, na revolta e na revolução. Sem isso, trata-se de uma impotência assegurada!
As lutas intestinas do capital financeiro norte-americano
Em um
artigo na Dinamopress, Luca Celada cita Robert Reich, qualificando-o de
“progressista” porque, como ministro do governo de Bill Clinton e bom
democrata, ele intensificou a financeirização (e a consequente destruição do welfare state)
e cavou abismos de desigualdade de classe, estabelecendo bases sólidas para o
desastre de 2008, origem das guerras atuais. A ação de Musk e Thiel,
empresários do Vale do Silício e aliados de Trump, é vista como a ameaça de um
novo monopólio, enquanto a centralização inédita de poder dos fundos de
investimento, que há quinze anos fazem o que querem com a ativa cumplicidade
dos democratas, criando juntos as condições para a próxima catástrofe
financeira, não é considerada seriamente.
“Talvez não
seja totalmente coincidência que a ‘entrada na política’ dos magnatas do Vale
do Silício tenha coincidido com os primeiros indícios de uma ação regulatória
mais vigorosa por parte do governo Biden-Kamala, incluindo as primeiras
verdadeiras ações antitruste contra gigantes como Google, Amazon e Apple,
apresentadas pela presidente da Comissão Federal de Comércio, Lina Khan (cuja
tese de graduação foi dedicada ao monopólio da Amazon), e pelo igualmente
combativo assistente do ministro da Justiça, Jonathan Kanter. Não é
surpreendente, então, que alguns barões do Vale do Silício estejam apostando no
candidato mais disposto a lhes renovar um cheque
Kamala Harris
está atada de pés e mãos à vontade dos fundos de investimento, porque os
acionistas de referência de todas (absolutamente todas) as empresas que Celada
menciona são precisamente os fundos. Não vejo como a candidata poderia se opor
ao seu monopólio, do qual depende a salvação dos Estados Unidos e de seu
partido (os “democratas pelo genocídio”…). A justificativa para a cegueira em
relação aos “progressistas” deve ser buscada no neofascismo de Trump. Se ele
for eleito, passaremos da frigideira para o fogo; mas não devemos esquecer que,
com a eleição de Biden, já caímos da frigideira para o fogo da guerra e do
genocídio. Garantiram-nos que a violência nazista era apenas um parêntese, mas
os democratas nos lembraram que o genocídio é, de fato, uma das ferramentas com
as quais o capitalismo age desde seus primórdios. A democracia norteamericana
está fundada sobre o genocídio e a escravidão. O racismo, a segregação e o
apartheid são outro componente estrutural. A cumplicidade com Israel tem
profundas raízes na história da “mais política” das democracias, segundo Hannah
Arendt.
Os pequenos
monopolistas, como Musk, mobilizaram-se porque o grande monopólio não os deixa
respirar, mas estão completamente subordinados à sua lógica. Na verdade, é um
conflito interno ao capital financeiro norte-americano: os pequenos
monopolistas gostariam de representar os “espíritos animais” do capitalismo,
contidos, segundo eles, pela aliança dos democratas com os grandes fundos de
investimento. Enquanto promovem um fascismo futurista (novamente, nada
realmente novo se pensarmos no fascismo histórico, onde o futurismo da
velocidade, da guerra e das máquinas harmonizava-se sem problemas com a
violência anti-proletária e anti-bolchevique), um transumanismo e um delírio
ainda mais oligárquico e racista do que o das finanças dos fundos. Esses
pequenos monopolistas, na verdade, estão de acordo com os grandes monopolistas
na questão crucial: a propriedade privada, ou seja, o alfa e o ômega da
estratégia do capital.
Seu
programa comum é financeirizar tudo, o que significa privatizar tudo. Os
problemas surgem na hora de dividir esse enorme bolo. Para compreender os
limites da análise progressista, devemos aprofundar rapidamente o funcionamento
da financeirização monopolística conduzida pelos fundos de investimento após
Financeirização
da reprodução: fala-se muito sobre a centralidade da reprodução nos movimentos
sociais, mas eles estão em um atraso abismal em relação à ação dos fundos de
investimento, cuja precondição é a destruição do welfare state.
Os democratas abandonaram qualquer pretensão de um novo Estado de Bem-estar
social e apostam tudo na privatização de cada serviço social. Eles teorizaram
isso abertamente: a democratização das finanças deve resultar na
financeirização da classe média. Os fundos, facilitados de todas as maneiras
possíveis pelos democratas, assegurariam um investimento financeiro seguro, de
modo que os norte-americanos que compram os títulos produzidos por esses fundos
deveriam obter, por meio deles, a renda e os serviços que o trabalho já não
lhes garante (aqueles que podem arcar, pois os pobres, as mulheres solteiras e
a grande maioria dos trabalhadores são excluídos: em uma pesquisa recente,
revelou-se que 44% das famílias norte-americanas não conseguem cobrir uma
despesa inesperada de 1.000 dólares).
Para Kamala
Harris, a classe média chega apenas até aos que ganham pelo menos 400 mil
dólares por ano. Um dado significativo para entender a composição social que os
democratas têm como referência. O trabalho e os trabalhadores desapareceram
completamente do horizonte dos democratas, assim como da “esquerda”
A
financeirização transforma as empresas em agentes financeiros. E afeta também
as empresas que geram lucros reais, que demitem pessoal e cujos enormes
dividendos não são reinvestidos, mas, em grande parte, distribuídos aos
acionistas ou utilizados para comprar suas próprias ações e aumentar seu valor,
incrementando sua capitalização (que já não tem nenhuma relação com o que
realmente produzem e vendem). Tudo isso anda de mãos dadas com a
financeirização dos preços: não é o mercado (a relação entre oferta e demanda
de bens) que estabelece os preços, mas as apostas dos operadores (por meio de
derivativos), que não têm nenhuma relação com a produção ou o comércio real. Os
preços são determinados por empresas financeirizadas que controlam os setores
de energia, alimentos, matérias-primas, indústria farmacêutica, etc., a partir
de uma posição de monopólio ou oligopólio absoluto (os principais acionistas
dessas empresas são sempre os grandes fundos de investimento). A inflação que
surgiu recentemente é resultado da especulação sobre os preços e não depende de
maneira alguma do aumento dos salários ou dos gastos sociais. O conjunto dessas
financeirizações que afetam a “vida” (embora o termo seja ambíguo) faz explodir
as diferenças de renda e, sobretudo, de patrimônio, das quais são vítimas os
trabalhadores e toda a população que não pode se permitir comprar os títulos.
O fracasso da
governança neoliberal e a guerra
Essa
afirmação do monopólio sanciona o fim do neoliberalismo e da ideologia de
mercado, o que merece algumas observações. Falamos de ideologia quando nos
referimos à competição, pois o processo de verticalização econômica continuou
imperturbável pelo menos desde o final do século XIX. De fato, ele explodiu
durante o neoliberalismo.
Primeira
observação. Os fundos de investimento, como mencionado anteriormente, são hoje
fundamentais para a centralidade do poder norte-americano, mais do que qualquer
outra instituição. E os fundos precisam das políticas fiscais do governo (não
taxar as finanças; sobrecarregar o trabalho com impostos), das regulamentações
e das facilidades generosamente concedidas por Obama (presidente negro, mas em
perfeita continuidade com o branco que o precedeu e o que o seguiu) e, de forma
ainda mais decisiva, por Biden. Aqui surge um problema teórico e político: as
finanças, que deveriam representar a modalidade mais abstrata do valor e a
forma cosmopolita perfeitamente realizada do capitalismo, no Ocidente são
comandadas e geridas por dispositivos que carregam a bandeira das estrelas e
listras. Os fundos norte-americanos atuam em conjunto com os governos dos
Estados Unidos, perseguindo seus interesses em detrimento do resto do mundo.
A moeda
encontra-se na mesma situação. Não existe uma moeda supranacional; a moeda é
sempre nacional, pois está estreitamente vinculada, especialmente o dólar, às
políticas decididas pelo Estado que a emite. Pode-se dizer que a moeda e as
finanças representam a tendência de sair dos limites territoriais dos Estados
e, ao mesmo tempo, sua incapacidade de fazê-lo. A relação entre os Estados
Unidos e os fundos de investimento organiza uma ação global que favorece poucos
norte-americanos e suas oligarquias.
A segunda
observação refere-se à leitura que costuma ser feita do neoliberalismo, que
ainda é considerado vigente, quando, na verdade, está morto: assassinado pelos
fascismos, pelas guerras e pelo genocídio. Seu ilustre predecessor, o
liberalismo, sofreu o mesmo destino. Embora pretendesse evitar os pequenos
inconvenientes que causara (as duas guerras mundiais e o nazismo…), terminou
necessariamente por reproduzi-los. Grande parte dessa análise se deve à teoria
da biopolítica de Michel Foucault, que exerceu uma influência nefasta no
pensamento crítico. Foucault entende o neoliberalismo como uma teoria da
empresa e sua subjetivação como um tornar-se “empreendedor de si mesmo”. Ele
nunca menciona, nem mesmo de passagem, o crédito, a moeda e as finanças sobre
os quais a estratégia capitalista foi construída desde o final dos anos 1960.
O principal
instrumento da contrarrevolução é o “grande endividamento do Estado, das
famílias e das empresas”, como diria Paul Sweezy, e não a produção. A empresa é
uma ideologia e uma ideia ordoliberal que pertence ao Ocidente industrial, aos
anos 1930 e ao pós-guerra: um mundo definitivamente morto. O ordoliberalismo vê
na economia aquilo que causa a morte do “soberano” quando as finanças realizam
um imenso monopólio (o soberano econômico). Mas, no contexto do capitalismo, o
soberano econômico precisa se constituir por meio do “soberano” político (o
Estado). A cabeça do soberano não foi cortada pela economia, mas desdobrada,
fazendo da centralização do poder do capital e do Estado uma estratégia que
teve enorme sucesso.
Foucault
simplesmente confundiu uma época, assim como seus discípulos – como Dardot e
Laval, entre outros – que reproduziram os erros de seu mestre. O mercado nunca
funcionou como acreditavam Foucault e os ordoliberais, isto é, com base na
concorrência. Ao contrário, sua verdade está representada pelo funcionamento
das finanças, que estabelecem os preços a partir de um monopólio especulativo
que nada tem a ver com a oferta e a demanda de bens reais (recentemente, o
preço da energia aumentou dez vezes, mas sem nenhuma relação com sua
disponibilidade real; o mesmo ocorre com os cereais, etc.). A subjetivação não
está representada pelo empresário, mas pela ilusória transformação dos
indivíduos (não de todos, como dissemos) em agentes financeiros. Para as
finanças, a “população” e o mundo são compostos por credores, devedores e
investidores em títulos, ações e bônus. A financeirização da classe média,
promovida pelo acordo entre os democratas e os fundos de investimento, é a
última quimera destinada a desaparecer no vazio no próximo colapso.
A guerra inevitável
dos Estados Unidos
Hoje, o
processo que nem mesmo foi vislumbrado pela biopolítica atinge seu apogeu. O
crescimento, no Ocidente, é unicamente financeiro (enquanto no Sul global é
real). Sua produção (o dinheiro que produz dinheiro, como dizia Marx, “a
pereira que produz peras”) é uma ficção, uma fabricação de papel sem valor que,
no entanto, tem efeitos reais. Os fundos elevam os preços das ações das
empresas das quais são acionistas, com o objetivo de cobrar os dividendos que
são distribuídos entre os acionistas. Não se trata de nova riqueza, mas apenas
de apropriação, captura e roubo de um valor que já existe e que simplesmente se
transfere do restante do mundo para os Estados Unidos. De uma perspectiva de
classe, pode-se dizer que do trabalho ao capital especulativo. Se esse “roubo”
da riqueza produzida no resto do mundo for interrompido, todo o sistema entrará
em colapso.
O
verdadeiro nome desse processo é renta. Seu circuito está garantido e
assegurado pela dolarização, e é por isso que os Estados Unidos nunca poderão
aceitar um mundo multipolar. Estão necessariamente obrigados ao unilateralismo,
forçados a saquear seus aliados, porque o Sul global já não quer continuar
funcionando como colônia (papel assumido completamente pela Europa, Japão e
Austrália). As oligarquias que governam o Ocidente são fruto da financeirização
e funcionam exatamente como a aristocracia do “Antigo Regime”. Hoje, portanto,
é necessária uma nova noite de 4 de agosto de 1789, quando foram abolidos os
privilégios da aristocracia feudal.
Os Estados
Unidos estão em um beco sem saída: são obrigados a aumentar as taxas de juros
para atrair capitais de todo o mundo; caso contrário, o sistema financeiro
entra
Os Estados
Unidos são incapazes de sair do círculo vicioso da renda, por isso a guerra é a
única solução, pelo menos desde 2008, quando ficou claro que a economia
norte-americana se baseava na produção e distribuição de rentas financeiras.
Daí a vontade de perseguir e expandir a guerra, de continuar financiando e
legitimando o genocídio, de fazer com que os novos fascismos assumam o poder em
todos os lugares. O futuro próximo parece ser esse, como confirma um documento
de julho deste ano da Comissão de Estratégia de Defesa Nacional do Congresso
norte-americano, onde se afirma sem rodeios que os Estados Unidos devem se
preparar para a “grande guerra” contra o Sul global, com Rússia e China no
centro. Nos próximos anos, será necessário mobilizar cada setor da sociedade,
seguindo como modelo o que foi feito antes e durante a Segunda Guerra Mundial,
para eliminar a ameaça à sua existência, que nunca foi tão grave desde 1945.
O escritor
alemão Ernst Jünger diria que estão preparando a “mobilização total”. No
entanto, têm um pequeno problema, já que a economia e a riqueza que impuseram
são para poucos, enquanto muitos foram empobrecidos, marginalizados,
precarizados, culpabilizados por sua condição. Agora, parecem perceber que
precisam dos muitos, que é necessária uma força de trabalho “forte e preparada”
para defender a nação e o espírito nacional… a economia e a propriedade dos
pouquíssimos. Com um país mais dividido do que nunca, não podemos senão desejar
boa sorte às oligarquias que promovem a mobilização total para a guerra que
querem travar contra três quartos da humanidade e que, certamente, perderão –
como estão perdendo no Oriente Médio e na Europa Oriental. É apenas uma questão
de tempo.
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