Artur Queiroz*, Luanda
O Presidente João Lourenço, num gesto inaudito que só tem paralelo com os nazis de Telavive, qualificou como ingerência o parecer da ONU sobre a prisão e julgamento do empresário Carlos São Vicente. Netanyahu repete, vezes sem conta, que a ONU apoia o terrorismo. A ONU é conivente com o HAMAS. A ONU é antissemita. A ONU é inimiga de Israel. Os seus ministros de extrema-direita, pelo menos um deles, condenado por terrorismo, fazem as mesmas acusações. Iguais, sem tirar nem pôr, às que faziam os fascistas e colonialistas de Lisboa durante os genocídios da Guerra Colonial, em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique. Exactamente os mesmos argumentos dos racistas de Pretória.
Um parecer do Conselho de Direitos Humanos da ONU não é uma ingerência. Pelo contrário. É uma ajuda. Um abanão para despertar consciências. Um contributo para a necessária mudança de rumo que está a ser seguido em Angola e vai dar ao abismo.
O Presidente João Lourenço sabe,
seguramente, que foi muito difícil colocar Angola no palco internacional. Foi
necessário lutar muito para que a República Popular de Angola fosse admitida na
ONU em Dezembro de 1976, mais de um ano após a Proclamação da Independência Nacional.
Graças à excelência da Diplomacia Angolana e particularmente do ministro das
Relações Exteriores da época, José Eduardo dos Santos. Foi na sua presença que
a Bandeira Nacional subiu no mastro da sede da ONU
Em 2024, o Chefe de Estado acusa a ONU de ingerência, porque o Conselho de Direitos Humanos, apreciado o processo de Carlos São Vicente, considerou que a sua prisão é arbitrária e o seu julgamento está inquinado de graves ilegalidades. A mesma ONU cujo Conselho de Segurança, em Dezembro de 1976, recomendou à Assembleia Geral, através da Resolução 397/76, com votos favoráveis da maioria dos membros permanentes do Conselho de Segurança, a admissão da República Popular de Angola. EUA votaram contra.
Angola foi eleita para o Conselho de Direitos Humanos da ONU no biénio 2018-2020. Em 2024, como emitiu um parecer que desagrada ao chefe, fez uma ingerência! Angola já esteve no Conselho de Segurança por duas vezes. A primeira, entre 2003-2004, presidiu ao órgão. Voltou em 2015-2016 como membro não permanente. Também foi ingerência, Presidente João Lourenço?
O Tribunal Constitucional, a pedido da Ordem dos Advogados de Angola, apreciou o Decreto Presidencial que dava comissões de dez por cento por cada acusação, sentença condenatória e recuperação de activos. O diploma foi considerado inconstitucional. Ilegal. Foi uma ingerência?A Ordem dos Advogados de Angola qualificou assim o Decreto Presidencial: “Ao atribuir aos Tribunais o direito à comparticipação pelos ativos financeiros e não financeiros, por si recuperados, ficam, desde logo, maculados os princípios da isenção e da independência dos juízes e dos Tribunais, bem como o direito fundamental a julgamento justo e conforme à Lei". Senhor Presidente da República, esta posição é uma ingerência?
O Departamento de Estado doa EUA publicou um relatório onde se afirma: “De Angola há relatos credíveis de assassinatos arbitrários ou ilegais, tratamento ou punição cruel, desumana ou degradante por parte do Governo, condições prisionais duras e com vida em risco, prisões ou detenções arbitrárias, problemas graves com a independência do Poder Judicial, presos ou detidos políticos e restrições graves à liberdade de expressão e à liberdade dos meios de comunicação social”.
Os amigos do Presidente João Lourenço denunciam, oficialmente, que há em Angola “prisões ou detenções arbitrárias”. Uma ingerência? No mesmo relatório é denunciado que “em Angola há problemas graves com a independência do Poder Judicial”. A Orem dos Advogados deve ter inspirado esta denúncia, porque considerou assim o Decreto Presidencial que apoia a recuperação de activos: “São maculados os princípios da isenção e da independência dos juízes e dos Tribunais, bem como o direito fundamental a julgamento justo e conforme à Lei". Mais uma ingerência?
Não. Apenas uma constatação que afecta gravemente o Estado de Direito. Um Decreto Presidencial num regime presidencialista, Lança a desconfiança sobre a isenção e independência dos juízes. Espezinha o direito a um julgamento justo e conforme a Lei.
Sim, há uma ingerência do Poder Político no Poder Judicial. Ingerência que atirou por terra todos os casos, julgados ou em julgamento, no combate à corrupção. No Estado de Direito, na Democracia, não vale tudo. O combate à corrupção só faz sentido se forem usados meios lícitos, se for respeitada a Constituição da República e a Lei.
Hoje, os advogados do empresário Carlos São Vicente emitiram um comunicado onde este tema é tratado. Abre assim: “A campanha de descredibilização de Angola contra Carlos Manuel de São Vicente deve cessar e a sua libertação deve ser imediatamente ordenada, como insta a ONU”.
E prossegue: “Nas últimas duas semanas, as autoridades angolanas envolveram-se numa verdadeira campanha de inverdades e menosprezo contra Carlos de São Vicente, ao mesmo tempo que descredibilizaram abertamente a decisão da ONU que condenou a sua detenção arbitrária, classificando-a como uma ‘ingerência’. Este comportamento inaceitável, que testemunha a determinação de Angola em fazer de Carlos de São Vicente um troféu no combate à corrupção, confirma a natureza altamente política do caso”.
Leiam o resto: “Isso aconteceu apesar do apelo claro do Grupo de Trabalho das Nações Unidas sobre Detenção Arbitrária, emitido em 14 de novembro de 2023, para libertá-lo imediatamente após considerar a sua detenção arbitrária, por violar gravemente o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e a Declaração Universal dos Direitos do Homem, ambos ratificados por Angola.
A avaliação das Nações Unidas indicava também que o Dr. São Vicente tinha sido condenado na sequência de um processo ilegal, por autoridades judiciais sem independência. Como resultado, os pedidos de cooperação internacional enviados a países estrangeiros foram também contaminados pela ilegalidade, e não devem ser executados.
Numa tentativa de justificar a não execução desta embaraçosa decisão, as autoridades angolanas alegaram falsamente que não tinham sido notificadas pelas Nações Unidas. Trata-se de uma narrativa falsa, uma vez que a ONU informou os advogados do Dr. São Vicente de que o procedimento regular de notificação tinha sido bem observado com Angola.
Seja como for, o Dr. São Vicente quer reiterar que não cometeu qualquer crime, e que o seu património é de origem legítima: recorda que adquiriu as suas participações nas empresas AAA de forma legal e transparente em 3 passos, nomeadamente, 49% em 2001, mais 21% em 2003 e mais 29,89% em 2011, totalizando 89,89%. Todas as transacções foram, portanto, legais, documentadas, contabilizadas, auditadas e publicadas em Diário da República”.
É uma pena que as autoridades da República de Angola desçam ao nível do governo fascista e colonialista português, dos racistas de Pretória e dos nazis de Telavive. Milhões de angolanas e angolanos que se bateram pela Liberdade, pela Dignidade, pela Justiça e pela Independência Nacional estão a ser agredidos. Até quando? Tem a palavra o MPLA.
Num ponto o Presidente João Lourenço tem toda a razão. Há uma grave ingerência da Presidência da República e do Titular Poder do Executivo, no Poder Judicial. A expressão concreta dessa ingerência foi um Decreto Presidencial que macula a independência dos Juízes e confisca aos cidadãos o direito a um julgamento justo. Por isso foi banido pelo Tribunal Constitucional.
O Tribunal Constitucional já fez a sua parte ao dar razão à Ordem dos Advogados de Angola acabando com o Decreto Presidencial que inquinou tudo e desacreditou o combate à corrupção. A propaganda não adianta nada. Isso era no tempo do colonialismo, quando a censura calava as vozes livres. Agora não vai passar.
* Jornalista
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