sábado, 27 de abril de 2024

HAVERÁ PARA ISTO UM NOME, MAS NÃO É DEMOCRACIA

Raquel Ribeiro, opinião

«Na Alemanha, a criminalização de movimentos de esquerda, seja contra a guerra da Ucrânia, seja de apoio à Palestina, de crítica a Israel ou ao governo alemão, seja de judeus, de cristãos ou de muçulmanos, agora inseridos nesta “cena islamista”, está a ser conduzida por governos e políticos “democráticos”, representantes de partidos do “arco da governação”, dos sociais-democratas aos verdes, dos socialistas aos democrata-cristãos. Eis-nos diante deste paradoxo: os que diariamente nos acenam com o perigo da extrema-direita são os que põem em prática medidas fascizantes.»

Na Alemanha está em curso uma sistemática perseguição política e criminalização dos críticos de Israel.

O ex-ministro da economia grego Yannis Varoufakis foi impedido de participar numa conferência sobre a Palestina que ia decorrer em Berlim. “O Ministério do Interior alemão emitiu uma Betätigungsverbot contra mim, uma proibição de toda a actividade política”, escreveu no X. “Não é só proibição de visitar a Alemanha, mas estende-se à participação por Zoom.”

O cirurgião plástico britânico-palestiniano Ghassan Abu Sittah, reitor da Universidade de Glasgow, e que esteve 43 dias a trabalhar nos hospitais Al-Shifa e Al-Ahli em Gaza, também foi impedido de entrar na Alemanha para a mesma conferência. Ao Middle East Eye, Abu Sittah conta que foi interrogado no aeroporto, informado de que a proibição de entrada no país se estendia até ao final do mês, e que se entrasse na conferência online, ou enviasse um vídeo da sua apresentação, poderia incorrer numa avultada multa e até um ano de prisão.

Eis-nos diante deste paradoxo: os que diariamente nos acenam com o perigo da extrema-direita são os que põem em prática medidas fascizantes, reprimindo direitos políticos, individuais, religiosos ou a liberdade de expressão na Europa.

“É exactamente isto que fazem os cúmplices de um crime: enterram as provas e silenciam, assediam ou intimidam as testemunhas”, disse o médico, que tem organizado palestras por toda a Europa a denunciar a situação em Gaza, dando testemunho da sua experiência. “Como membros de um gang que cometeu um crime hediondo, a Alemanha está a fazer a sua parte nesse crime, que é garantir que haja impunidade total e que o genocídio possa continuar ininterrupto.”

A conferência de três dias, agendada para o fim-de-semana passado com convidados de todo o mundo, e cobertura mediática acreditada, nem chegou praticamente a ocorrer. Os streamings foram cortados e o espaço da conferência invadido pela polícia ao fim da manhã de sexta. O mayor de Berlin, Kai Wagner, afirmou no X: “Deixámos claro que o ódio a Israel não tem lugar em Berlim. Quem não cumprir essas regras sentirá as consequências.”

Uma das consequências é praticamente não se falar no que está a acontecer na Alemanha (e noutros países da UE): em curso está uma sistemática perseguição política e criminalização de críticos do sionismo israelita, da política genocida de Israel ou do apoio incondicional da Alemanha (armamento incluído) aos ataques de Israel na Faixa de Gaza. Vários exemplos saltam à vista desde Outubro no que diz respeito à liberdade de expressão e direitos políticos: cancelamentos, perseguições, silenciamentos, prisões e expulsões do país.

Em Dezembro, Masha Gessen, jornalista, viu-lhe cancelada a possibilidade de receber o prémio Hannah Arendt por comparar Gaza ao gueto judeu durante o regime nazi, num artigo na New Yorker. A cerimónia de atribuição do prémio, pela Fundação Heinrich Böll, foi suspensa após decisão do Partido Verde alemão, a que pertencem cinco ministros do Governo de Olaf Sholz (SPD), nomeadamente o vice-chanceler Robert Habeck e a ministra dos Negócios Estrangeiros, Annalena Baerbock, ambos abertos defensores da política alemã de apoio incondicional a Israel e da criminalização e perseguição de movimentos de apoio à Palestina.

A cantora americana Laurie Anderson foi “desconvidada” como professora visitante da Universidade Folkwang em Essen após ter assinado uma carta contra o apartheid israelita. A académica judaica americana, Nancy Fraser, é a mais recente vítima: esta semana, o convite de se tornar professora convidada na Universidade de Colónia foi-lhe retirado por ter assinado uma carta condenando os crimes de Israel em Gaza.

A lista é interminável sobretudo em sectores mais liberais, como na academia, nas artes, literatura ou cinema (no festival de Berlim ou até mesmo nos Óscares) – isto é, em casos que chegam aos media que ainda têm espaço de noticiar dissenso sobre Israel. Não sabemos, porque as notícias que nos chegam são difusas, fragmentadas e não-corroboradas pelos media internacionais, o que está efectivamente a acontecer nos movimentos pró-Palestina, em que militantes de partidos de esquerda, e em que tanto muçulmanos como judeus, estão a ser perseguidos, silenciados e presos.

É assim que o poder na Alemanha (e na União Europeia) está a agir perante qualquer movimento de apoio à Palestina. A ministra do Interior alemã, Nancy Faeser, disse, após o cancelamento do Congresso: “É bom que a polícia berlinense tenha anunciado a dura repressão do chamado Congresso Palestiniano em Berlim. Estamos a acompanhar muito de perto a cena islamista.”

Os porta-vozes do Governo alemão responderam “no comment” às perguntas de jornalistas sobre a suspensão do Congresso e as proibições de entrada de palestrantes estrangeiros. Uma jornalista questionou: “A ministra do Interior diz que há judeus na ‘cena islamista’ aqui na Alemanha. Até então esta linguagem tem sido usada para jihadistas, para o ISIS, para o Hamas, mas agora está a ser usada predominantemente para grupos de esquerda. Portanto, há grupos de esquerdistas judeus, palestinianos e alemães, alguns deles radicais, alguns deles esquerdistas revolucionários, mas não se pode falar de islamistas (…) como é que o Ministério do Interior define ‘cena islamista’?” A porta-voz do governo remeteu o termo “cena islamista” para o relatório do Ministério, afirmando que “estas são definições e termos fixos”.

“Islamista” é agora a acusação para os críticos de Israel. Se antes a questão “condena o Hamas?” era a linha que dividia a legitimidade da denúncia dos crimes de Israel contra a Palestina, desde então essa linha tem sido empurrada até ao limite nas democracias ditas liberais: a proposição de que qualquer defesa da Palestina, qualquer crítica a Israel, qualquer denúncia dos crimes em Gaza é equivalente ao apoio incondicional ao Hamas está enfim confirmada. Qualquer crítica a Israel já não é apenas “anti-semitismo”: é pura prática terrorista.

Antes escrevi como era expectável que a criminalização dos protestos de solidariedade com a Palestina e de resistência à narrativa mediática dominante fizessem o seu caminho nas “democracias” do “mundo livre” em que vivemos. Esta perseguição política tem sido feita, contudo, não pelas extremas-direitas e pelos movimentos reacionários que estão em crescimento um pouco por toda a Europa.

A criminalização de movimentos de esquerda, seja contra a guerra da Ucrânia, seja de apoio à Palestina, de crítica a Israel ou ao governo alemão, seja de judeus, de cristãos ou de muçulmanos, agora inseridos nesta “cena islamista”, está a ser conduzida por governos e políticos “democráticos”, representantes de partidos do “arco da governação”, dos sociais-democratas aos verdes, dos socialistas aos democrata-cristãos.

Eis-nos diante deste paradoxo: os que diariamente nos acenam com o perigo da extrema-direita são os que põem em prática medidas fascizantes, reprimindo direitos políticos, individuais, religiosos ou a liberdade de expressão na Europa. Ao mesmo tempo que forças de extrema-direita agitam os tropos da violência e das discriminações usando signos que todos reconhecemos (e combatemos no) do passado, há violência, ataques e censura institucionais, legalmente a ser exercidos por governos com poder de Estado, dirigidos a perseguir politicamente forças de esquerda, judeus e muçulmanos.

Na Alemanha, é a “esquerda” no Governo que o está a fazer. Aos que hoje fazem apelos abstractos à unidade dos democratas e à demarcação de linhas vermelhas, há uma pergunta a ser feita: unidos em torno de quê e em nome de quem? Em nome da democracia não será. Haverá para isto um nome, mas não é democracia.

Fonte: https://www.contacto.lu/mundo/havera-para-isto-um-nome-mas-nao-e-democracia

O Diário.info

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