quarta-feira, 28 de maio de 2025

Portugal | OS CONSTRUTORES DO CAOS

Luís Castro Mendes, opinião | Diário de Notícias

O ressentimento é o auto-envenenamento do espírito (Max Scheler)

Enrolado que ando nestes dias de Algarve entre a prosa deslumbrante de Teixeira Gomes e o perfeito azul do mar, que cada dia recomeça a vibrar de luz, custa-me hoje escrever esta carta que todas as quartas feiras segue para leitores que acredito sempre que existem. Se eu não tivesse leitores, de que serviria estar aqui debruçado sobre este computador, que estende na frente de mim a página branca a que nenhum lançar de dados conseguirá abolir o arbitrário dos acasos?

Não foi um acaso arbitrário ou aleatório que deu ao partido Chega o lugar de segunda força política do nosso sistema institucional. Como não foi nenhum lançar de dados que pôs a chefiar a pátria de Lincoln e de Roosevelt um desbocado promotor imobiliário de extrema-direita, que tem por objetivo destruir os princípios de liberdade e de equilíbrio de poderes instituídos nos Estados Unidos, que estão cada vez mais perto de serem a “República imperial” que neles via Raymond Aron, mas mais semelhantes ao Império de Nero ou de Calígula, do que do Império de Júlio César e de Marco Aurélio. Não é por acaso que se movem as montanhas e caem os céus. O mundo está no caos; alguma coisa vai nascer.

Não foi o bater de asas de uma borboleta na China: foi uma consequência de muitos atos de todos nós, de muitas decisões tidas como sábias, de uma cada vez maior indiferença aos outros, de um individualismo egoísta a justificar-se com uma mal entendida liberdade. Quanto tempo passou desde o axioma da sra. Thatcher “There is not such a thing as a society”? Quanto tempo desde que Milton Friedman decretou que “a única responsabilidade social de uma empresa é dar lucros”? Quanto tempo correu desde que definitivamente tudo o que não fosse concebido para dar lucro perdeu qualquer razão de ser?

Quanto tempo passou desde que se decretou que a única salvação para a nossa economia era empobrecermos? Quanto tempo se passou desde que foi dito em público que os maiores de 70 anos não deveriam ter assistência médica prestada com dinheiros públicos?

E nem sequer são as maiores vítimas, nem sequer são os humilhados da Terra e os vencidos do Mundo a engrossar a corrente do ódio e o apelo à desigualdade: são os que sentem que a legitimação da sua precária superioridade e do seu pobre domínio sobre os outros pode ser posta em causa por um fluxo de miseráveis, que os que se autointitulam “gente de bem” não aceitam que lhes possam ser equiparados, ainda que venham fazer os trabalhos que ninguém mais quer fazer. São as ideias de inclusão e de igualdade que se vêem condenadas.

É o imigrante mais antigo que recusa admitir direitos aos novos imigrantes; é o trabalhador mal pago que acredita que os pobres que recebem subsídios o estão a extorquir; é o branco que não aceita ver os negros fora dos musseques; é o homem macho que não suporta que as mulheres ganhem poder.

Em 50 anos de Democracia fizemos muito, mas muito ficou por fazer. Faltou educar a sociedade na ideia de cooperação entre todos e de abertura aos outros, e de uma saudável desconfiança em pregadores fáceis que vendem ilusões com os nossos ressentimentos. Não seremos capazes de reconhecer no que falhámos?

Pensar no que podemos e devemos fazer para contrariar esta deriva ideológica e moral em que vivemos, levar a nossa capacidade crítica ao fundo dos problemas criados, compreender que ser radical é ir à raiz dos problemas e que não o ser é colher passivamente os frutos que deixámos semear, é isto o que se pede aos responsáveis políticos. E tudo o resto será chover no molhado.

* Diplomata e escritor

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