domingo, 15 de maio de 2011

Brasil: O FMI E A TAXA TOBIN




PAULO KILASS – CORREIO DO BRASIL

Esse é o momento para que os governos identificados com uma ordem internacional mais justa e menos desigual, bem como as entidades do movimento social, reforcem suas ações no sentido de recuperar a idéia da taxa Tobin e as sugestões da ATTAC.

Como diz a sabedoria popular, nada como um dia após o outro. Quem poderia imaginar o cenário em que a instituição que sempre foi considerada a concretização do dragão da maldade em nosso País, e no mundo subdesenvolvido em geral, possa ser utilizada agora como referência para mudanças progressistas em termos de política econômica.

Pois é, o Fundo Monetário Internacional (FMI) está sendo também submetido a processos internos de sacolejos e reavaliações de suas políticas equivocadas, levadas a cabo nas últimas décadas ao redor do mundo. Para tanto, contribuem duas ordens de fatores. Por um lado, todo o movimento de análise e de crítica provocado pela emergência da crise financeira iniciada em 2008, onde os dogmas hegemônicos do neoliberalismo e do Consenso de Washington passaram a ser questionados em quase todas as esferas de debate: universidades, centros de pesquisa, governos, foros diplomáticos, agências multilaterais, etc. De outro lado, como a própria estrutura do FMI é composta por representações de seus Estados-membros indicadas pelos respectivos governos, a reorientação das políticas da instituição passou a ser mais visível. Para tanto confluem as contribuições dos novos representantes desses países, bem como algumas mudanças nas visões dos próprios integrantes do “staff” de carreira do Fundo.

É claro que esse processo de mudança é bastante lento e nem está assegurado, do ponto de vista da política da instituição, que ele tenha vindo para ficar por um período mais longo. Só o tempo dirá. De todas as maneiras, ter pessoas como Paulo Nogueira Batista Jr. e Olivier Blanchard, para citar apenas dois casos emblemáticos, na alta direção do Fundo já tem um significado carregado de expressão. O primeiro é um economista brasileiro, conhecido por suas posições críticas do pensamento hegemônico conservador na economia, e que foi indicado para integrar a diretoria do FMI pelo governo brasileiro, ainda na época em que Lula era Presidente. Já o francês Olivier Blanchard, que atualmente ocupa o posto de economista-chefe da instituição, construiu boa parte de sua vida acadêmica ligado ao meio universitário dos Estados Unidos, com algumas contribuições que podem ser classificadas no campo da heterodoxia. Ou seja, ambos podem estar representando, emblematicamente, algum movimento de mudança de rumo na orientação do FMI.

Dentre as muitas alterações de postura do Fundo, no que se refere aos pressupostos da política econômica, encontra-se a delicada questão do fluxo de capital entre as nações. Aliás, esse tema está presente no próprio nome da instituição. Sua constituição foi um dos resultados da famosa conferência de Bretton Woods, realizada pelos países aliados do Ocidente, um pouco antes do final da Segunda Guerra, em julho de 1944, em um pequeno vilarejo do nordeste dos EUA. Ali começavam a ser esboçados os primeiros ensaios da nova ordem econômica internacional para o final do conflito que se avizinhava e que exigiria um grau maior de coordenação e articulação no plano econômico entre os países do bloco capitalista. Daí veio o esforço todo da reconstrução do pós-guerra, o Plano Marshall e a compreensão de que a participação do Estado era fundamental para a recuperação das economias mais atingidas pelo conflito, a exemplo do Japão e da Europa Ocidental. Nessa linha, a proposta de constituição de um fundo monetário internacional, literalmente, era uma das sugestões de Keynes para a nova ordem de relações econômicas entre os países.

Pela proposta original, e logo em seguida abandonada pelos dirigentes mais liberais, o FMI serviria como um fundo de compensação das trocas econômicas e comerciais entre países muito desiguais. Isso seria necessário pois o dólar norte-americano ainda não era aceito de forma consensual como a moeda de referência para as trocas internacionais, a exemplo do que havia ocorrido com a libra esterlina no cenário anterior à guerra. Os eventuais desequilíbrios nas contas comerciais e de capital nas trocas entre as nações seriam equacionados por meio do acesso aos recursos de tal fundo.

Mas o tempo foi passando, as economias foram se recuperando e a ordem liberal foi sendo cristalizada e consolidada no pensamento hegemônico das organizações multilaterais. Os EUA saíram fortalecidos como a potência hegemônica na nova ordem internacional ocidental e sua moeda virou o meio de troca de aceitação global. O paradigma liberal imperava, ao menos no plano do discurso, nas relações econômicas internacionais. E isso implicava a aceitação da hipótese de que as soluções mais eficientes para as contradições e diferenças deveriam repousar sempre na liberdade de comércio de bens e serviços e na liberdade do fluxo financeiro. Generaliza-se a utilização do conceito do “deus-todo-poderoso-mercado” no plano internacional, ou seja, nas relações econômicas entre países, e não mais apenas nos mercados locais.

Porém, a realidade e os interesses econômicos das forças internas dos países capitalistas também exerciam suas pressões. De forma que o desenho institucional da maioria dos países europeus incorporava o que ficou conhecido como “Estado do Bem Estar”, com forte presença do setor público na constituição de setores importantes da economia. De outro lado, até mesmo os Estados Unidos escapavam, pragmaticamente, dos ditames do liberalismo que tanto pregavam, quando se tratava de proteger os negócios, os empregos e os setores estratégicos em seu próprio território. Ou seja, todos eram muito sérios e rígidos na defesa incondicional da ordem liberal … para os outros.

O processo de avanço do fenômeno da globalização exigia a abertura dos mercados em escala internacional, inclusive a conta de capitais. Os países do chamado Terceiro Mundo terminaram sucumbindo a tal imposição e permitindo o livre trânsito de recursos financeiros, a maior parte com origem nos países desenvolvidos. A mágica era apresentada como a eficiência propiciada pelo resultado do “livre encontro” das forças de demanda e de oferta no plano mundial. O resultado é conhecido: aprofundamento das desigualdades entre países e surgimento da nova dimensão da crise financeira em razão, por exemplo, das dívidas externas em crescimento vertiginoso e do descontrole especulativo nos mercados internacionais de matérias-primas.

Pois bem, apesar de tudo isso, já na década de 1970, um economista norte-americano, James Tobin (1918-2002), propôs a criação de um imposto a ser aplicado nas transações financeiras internacionais. Apesar de sua formação conservadora, Tobin compreendia a necessidade de algum grau de regulação da desordem das transações internacionais. Mas a medida foi bombardeada por mais de trinta anos pelas forças vinculadas ao sistema financeiro, em especial depois que ela se converteu em bandeira dos movimentos progressistas de todos os cantos do planeta. A criação de um tributo incidente sobre as transações financeiras internacionais teria dupla função. Por um lado, o papel de regulação e ordenamento desse tipo de operação, até hoje fora de qualquer tipo de supervisão ou controle. De outro lado, a possibilidade de constituir um fundo internacional destinado a combater o profundo e vergonhoso estágio da desigualdade social e econômica entre as nações.

Essa foi a uma das bases da constituição de movimentos que lutam por uma nova ordem econômica mundial. É o caso da ATTAC, sigla da “Associação para a Taxação das Transações Financeiras para Ajuda aos Cidadãos”, criada da França em 1998. Rapidamente a iniciativa começou a ganhar escala internacional, muito na onda do altermundismo e das articulações em torno das diversas etapas do Fórum Social Mundial.

O surgimento da entidade deu-se com a proposta de uma ampla mobilização em torno da criação de um tributo sobre as transações financeiras em escala internacional, com o objetivo de constituir um fundo voltado para a eliminação da miséria e a redução das desigualdades. Aquilo que poderia bem mais parecer a pauta de um movimento de características típicas das forças de esquerda foi aos pouco sendo debatida – quem diria? – no coração mesmo do “establishment” do capitalismo financeiro e internacional.

No Brasil, a grande imprensa nunca deu eco a tais debates. No ano passado houve uma importante iniciativa com o lançamento da publicação “Globalização para Todos – Taxação Solidária sobre os Fluxos Financeiros Internacionais” . O livro é uma co-edição do IPEA com a Fundação Alexandre Gusmão, vinculada ao Ministério das Relações Exteriores.

E a grande novidade reside, agora, nas mudanças observadas no interior do próprio FMI. A direção da instituição tem promovido alguns estudos e debates a respeito da necessidade de estabelecer algum tipo de controle sobre a livre circulação de capitais entre os países. A proposta, que seria considerada uma verdadeira heresia até alguns anos atrás, vai na contramão de toda a antiga argumentação a favor da liberdade irrestrita de ação dos agentes econômicos e contra qualquer tipo de regulamentação do poder público. E passa a fazer parte inclusive de manifestações oficiais da entidade a favor de algum tipo de controle sobre a liberdade do fluxo financeiro internacional. No caso do Brasil, em especial, reveste-se de importância particular pela gravidade de nosso processo de valorização cambial. A única saída com efetividade para evitar tal tendência é a redução do ingresso dos recursos especulativos do exterior. Para tanto, deve-se reduzir a taxa SELIC e impor obstáculos e desincentivos a tal tipo de aplicação que só provoca prejuízos à Nação. Todos os dias lemos algo sobre as transferências de recursos ao exterior via pagamento de juros e sobre o risco da desindustrialização via valorização do nosso real face às demais moedas estrangeiras.

Esse é o momento para que os governos identificados com uma ordem internacional mais justa e menos desigual, bem como as entidades do movimento social, reforcem suas ações no sentido de recuperar a idéia da taxa Tobin e as sugestões da ATTAC. Além do elemento simbólico de se promover maior controle sobre a especulação e o rentismo desenfreados, a medida teria o efeito de arrecadar uma soma de recursos não desprezível para o combate à miséria, à fome e às injustiças no mundo contemporâneo. E o mais importante é que os benefícios são enormes quando contrapostos aos custos irrisórios da medida. A título de exemplo, caso fosse adotada uma alíquota insignificante de 0,01% sobre as operações no mercado financeiro internacional, as projeções falam de uma soma anual de US 300 bilhões para o fundo que vier a ser constituído.

Nada mal para um primeiro passo na construção de um mundo melhor, menos desigual e mais fraterno.

Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.

Esse é o momento para que os governos identificados com uma ordem internacional mais justa e menos desigual, bem como as entidades do movimento social, reforcem suas ações no sentido de recuperar a idéia da taxa Tobin e as sugestões da ATTAC.

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