Ignacio Ramonet - Le Monde Diplomatique - Março 2011
Quais são as causas do vendaval de liberdade que, de Marrocos ao Bahrein, passando pela Tunísia, pela Líbia e pelo Egipto, sopra sobre o mundo árabe? Por que motivos estas ânsias simultâneas de democracia se expressam precisamente agora?
A estas duas perguntas, as respostas são de diversa índole: histórica, política, económica, climática e social.
Histórica. Desde o final da Primeira Guerra Mundial e a implosão do império otomano, o interesse das potências ocidentais pelo mundo árabe (Médio Oriente e Norte de África) teve dois principais incentivos: controlar os hidrocarbonetos e garantir um lar nacional judeu. Após a Segunda Guerra Mundial e o traumatismo universal do Holocausto, a criação do Estado de Israel, em 1948, teve como contrapartida a chegada ao poder, em vários Estados árabes libertados do colonialismo, de forças anti-sionistas (opostas à existência de Israel): de tipo “militar nacionalista” no Egipto e Iémen, ou de carácter “socialista árabe” no Iraque, na Síria, na Líbia e na Argélia.
Três guerras perdidas contra Israel (em 1956, 1967 e 1973) conduziram o Egipto e a Jordânia a assinar tratados de paz com o Estado judeu e a alinhar-se com os Estados Unidos, que já controlavam – no enquadramento da Guerra Fria – todas as petromonarquias da Península Arábica, bem como o Líbano, a Tunísia e Marrocos. Deste modo, Washington e os seus aliados ocidentais mantinham os seus dois objetivos prioritários: o controlo do petróleo e a segurança de Israel. Em contrapartida, protegiam a permanência de ferozes tiranos (Hassan II, o general Mubarak, o general Ben Ali, os reis sauditas Faisal, Fahd e Abdalá, etc.) e sacrificavam qualquer aspiração democrática das sociedades.
Política. Nos Estados do pretendido “socialismo árabe” (Iraque, Síria, Líbia e Argélia), sob os cómodos pretextos da “luta anti-imperialista” e da “caça aos comunistas”, também se estabeleceram ditaduras de partido único, governadas com mão de ferro por déspotas de antologia (Saddam Hussein, Al Assad pai e filho, e Muamar al Khadafi, o mais demencial deles). Ditaduras que garantiam, de resto, o abastecimento em hidrocarbonetos das potências ocidentais e que não ameaçavam realmente Israel (quando o Iraque pareceu fazê-lo, foi destruído). Desse modo, sobre os cidadãos árabes, caiu uma lápide de silêncio e de terror.
As ondas de democratização sucediam-se no resto do mundo. Desapareceram, na década de 1970, as ditaduras em Portugal, Espanha e Grécia. Em 1983, na Turquia. Depois da queda do muro do Berlim, em 1989, derrubou-se a União Soviética, bem como o “socialismo real” da Europa do Leste. Na América Latina caíram as ditaduras militares na década de 1990. Entretanto, a escassos quilómetros da União Europeia, com a cumplicidade das potências ocidentais (entre elas Espanha), o mundo árabe continuava em estado de glaciação autocrática.
Ao não se permitir nenhuma forma de expressão crítica, o protesto localizou-se no único local de reunião não proibido: a mesquita. E em torno do único livro não censurável: o Corão. Assim se foram fortalecendo os islamismos. O mais reaccionário foi difundido pela Arábia Saudita com o decidido apoio de Washington, que via nele um argumento para manter os povos árabes na “submissão” (significado da palavra ‘islão’). Mas também surgiu, sobretudo depois da “revolução islâmica” de 1979 no Irão, o islamismo político, que encontrou nos versos do Corão argumentos para reclamar justiça social e denunciar a corrupção, o nepotismo e a tirania.
Daí nasceram vários ramos mais radicais, dispostas a conquistar o poder pela violência e a “Guerra Santa”. Assim se engendrou a Al Qaeda…
Depois dos atentados do 11 de setembro de 2001, as potências ocidentais, com a cumplicidade das “ditaduras amigas”, adicionaram um novo motivo para manter sob férreo controlo as sociedades árabes: o medo ao islamismo. Em vez de entender que este era a consequência da carência de liberdade e da ausência de justiça social, acrescentaram mais injustiça, mais despotismo, mais repressão…
Económica. Vários Estados árabes sofreram as repercussões da crise global iniciada em 2008. Muitos trabalhadores destes países, emigrados na Europa, perderam o seu trabalho. O volume das remessas de dinheiro enviadas às suas famílias diminuiu. A indústria turística murchou. Os preços dos hidrocarbonetos (em aumento nestas últimas semanas por causa da revolta popular na Líbia) depreciaram-se. Simultaneamente, o Fundo Monetário Internacional (FMI) impôs, à Tunísia, ao Egipto e á Líbia, programas de privatização dos serviços públicos, reduções drásticas dos orçamentos do Estado, diminuição do número de funcionários… Severos planos de ajustamento que pioraram, se possível, a vida dos pobres e, sobretudo, ameaçaram socavar a situação das classes médias urbanas (as que têm precisamente acesso ao computador, ao telemóvel e às redes sociais) atirando-as para a pobreza.
Climática. Neste contexto, já por si explosivo, produziu-se, no Verão passado, um desastre ecológico numa região afastada do mundo árabe. Mas o planeta é um só. Durante semanas, a Rússia, um dos principais exportadores de cereais do mundo, conheceu a pior onda de calor e de incêndios da sua história. Um terço da sua colheita de trigo foi destruída. Moscovo suspendeu a exportação de cereais (que servem também para nutrir o gado), cujos preços imediatamente subiram 45%. Esse aumento repercutiu-se nos alimentos: pão, carne, leite, frango… Provocando, a partir de Dezembro de 2010, o maior aumento de preços alimentares desde 1990. No mundo árabe, uma das principais regiões importadoras desses produtos, os protestos contra a carestia da vida multiplicaram-se…
Social. Acrescente-se ao anterior: uma população muito jovem e monumentais níveis de desemprego. Impossibilidade de emigrar, porque Europa blindou as suas fronteiras e descaradamente estabeleceu acordos para que as autocracias árabes se encarreguem do trabalho sujo de conter os emigrantes clandestinos. Um açambarcamento dos melhores lugares pelas camarilhas das ditaduras mais arcaicas do mundo…
Faltava uma chispa para incendiar a pradaria. Houve duas. Ambas na Tunísia. Em primeiro lugar, a 17 de Dezembro, a auto-imolação pelo fogo de Mohamed Buazizi, um vendedor ambulante de fruta, como símbolo de condenação da tirania. E, em segundo lugar, repercutidas pelos telemóveis, pelas redes sociais (Facebook, Twitter), pelo correio electrónico e pelo canal Al-Jazira, as revelações da WikiLeaks sobre a realidade concreta do desavergonhado sistema mafioso estabelecido pelo clã Ben Ali-Trabelsi.
O papel das redes sociais resultou fundamental. Permitiram franquear o muro do medo: saber de antemão que dezenas de milhares de pessoas se vão manifestar num dia D e numa hora H é uma garantia de que alguém não protestará isolado expondo-se sozinho à repressão do sistema. O sucesso tunisino desta estratégia do enxame iria convulsionar todo o mundo árabe.
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