JEREMIAS LANGA – O PAÍS, opinião
Os defeitos que Augusto Paulino apontou à lei 1/79 que regula o desvio de fundos do Estado e a confusão de interpretação que gera entre os magistrados judiciais, mas também entre os próprios magistrados do Ministério Público, não são novidade para ninguém.
Naquele que considero o seu informe mais rico, mais esclarecedor e de maior qualidade desde que é Procurador Geral da República, Augusto Paulino foi, esta semana, ao Parlamento dizer que as leis de desvio de fundos do Estado e anti-corrupção estão desactualizadas para a repressão do crime de desvio de fundos ou bens do Estado e inadequadas para a punição exemplar dos que se apropriam dos recursos públicos.
Por um lado, é uma declaração com um quê de tardio, que sabe a justificação antecipada para futura avaliação da sua abordagem ao fenómeno. Quando fez campanha para chegar ao poder, em 2004, o Presidente Armando Guebuza elegeu o combate à corrupção como uma das suas bandeiras. Por isso, em meados de 2007, nomeou Augusto Paulino para materializar esse objectivo, na qualidade de Procurador Geral da República.
Por outras palavras, o actual Procurador Geral estava avisado do principal objectivo que devia perseguir enquanto Procurador Geral da República. É juiz de carreira há vários anos, quando chegou à PGR já conhecia de cor a legislação e as suas fraquezas. Era, por conseguinte, suposto que um dos seus primeiros actos fosse fazer advocacia junto do parlamento e ou do Governo para a revisão das leis que eram obstáculo para os objectivos a que se propunha. Mas só agora, ao seu quarto informe na Assembleia da República, como Procurador Geral, e a um ano de terminar mandato, que de forma estridente, levanta o problema da caducidade daquelas duas leis.
Mas por outro lado, a sua declaração deu-nos alento para acreditar que este Procurador Geral não aceita fazer expediente político e, de forma destemida e ousada, força o legislador a uma reflexão profunda à volta das leis mais importantes para combater a corrupção.
Os defeitos que Augusto Paulino apontou à lei 1/79 que regula o desvio de fundos do Estado e a confusão de interpretação que gera entre os magistrados judiciais, mas também entre os próprios magistrados do Ministério Público, não são novidade para ninguém.
Apesar de toda a gente saber que esta lei vem de um contexto político completamente ultrapassado (é de 11 de Janeiro de 1979!), nunca ninguém, até agora, ousou propor a revisão da Lei 1/79, justamente porque ela foi concebida à medida: para apanhar funcionários públicos subalternos e deixar fora da rede os quadros superiores do Estado. Uma espécie de rasteira política!
Veja-se só esta curiosidade: à luz desta lei, um ministro pode ordenar aos seus subordinados para lhe pagarem despesas pessoais, fora do orçamentado, no valor que entender e não incorre no crime de desvio de fundos, mas sim no de abuso de cargo ou função, que lhe pode valer pena de prisão até um máximo de dois anos. Mas se o subordinado fizer o mesmo, apanha pena até 20 anos! É um paradoxo, mas a lei penaliza mais quem assina o cheque do que quem dá a ordem!
É isto, na verdade, que sucedeu nos casos Manhenje e Aeroportos. Os dois casos mostraram, igualmente, que muitos dirigentes superiores do Estado ordenam, amiúde, despesas pessoais fora do orçamentado , por isso para eles, é bem cómodo que esta lei assim continue. Afinal, ser condenado a 2 anos ou a 20, não é propriamente a mesma coisa.
Mas, como disse o Procurador Geral, para além da caducidade, há um problema de interpretação não uniforme desta lei. No despacho de acusação do caso Manhenje, o próprio Ministério Público cujo chefe máximo vem, hoje, reconhecer que quadros superiores não têm como ser acusados de desvio de fundos, pediu ao juiz que pronunciasse o ex-ministro do Interior, Almerino Manhenje, do crime de... desvio de fundos.
No acórdão ao recurso do despacho de pronúncia, o colectivo de juízes da Secção Criminal do Tribunal Supremo chumbou a pretensão do Ministério Público, considerando que, na qualidade de ministro do Interior, Almerino Manhenje não tinha à sua guarda dinheiro e cheques daquele ministério, pelo que não cometera crime de desvio de fundos. O que fez Manhenje, disse o Supremo, foi crime de abuso de cargo: aproveitou-se do facto de ser ministro para dar ordens para lhe pagarem ilegalmente as suas despesas pessoais. Manhenje escapou, assim, a 20 anos de prisão e ficou-se nos dois, graças a esta interpretação.
No entanto, no caso Aeroportos, o ex-ministro dos Transportes e Comunicações não teve a mesma sorte de Manhenje. O juiz Dimas Marrôa teve mesmo interpretação contrária à do Tribunal Supremo. Considerou que António Munguambe, apesar de ministro, desviou fundos de Estado, ao ordenar o pagamento de bolsas para seus filhos, e condenou-o a 20 anos de prisão!
Neste caso, o valor desviado pouco conta: Manhenje é acusado de ter desviado vinte e dois mil milhões de meticais e teve pena de dois anos. Munguambe é acusado de ter participado no desvio de 15 mil dólares (cerca de 480 mil meticais ao câmbio actual) e apanhou...20 anos! Orlando Comé, do CPD, é acusado de ter desviado três milhões de meticais e teve pena de...12 anos! E digam se, efectivamente, somos todos iguais perante a lei! A isto se poderia chamar... três pesos... três medidas!
No seu informe desta semana, o Procurador Geral fez outra revelação importante: a Lei 1/79 não se aplica às empresas públicas, que não existiam, quando foi elaborada, no princípio do ano de 1979. Paulino sublinhou que ela diz respeito unicamente às estatais. Ou seja, quem desviar fundos de empresas públicas, não está a desviar fundos do Estado. Logo, não pode ser julgado à luz da lei 1/79!
No julgamento do “caso Aeroportos”, o juiz Dimas Marrôa recusou, terminantemente, esta tese, apesar de mesmo gente reputada como o Prof. Gilles Cistac a ter apoiado. Marrôa disse que a empresa Aeroportos tinha injecção de fundos do Estado para fazer o serviço de aviação, portanto, era do Estado. Logo, era empresa estatal. Por isso, condenou Diodino Cambaza e Altenor Pereira a 20 anos de cadeia, baseando-se na lei 1/79. Curiosamente, o Ministério Público também apoiou a decisão do juiz e até pediu que os dois fossem condenados à luz da lei 1/79, tanto no despacho de acusação como nas alegações finais, em juízo. Hoje , ficámos a saber que, o seu chefe máximo não partilha da mesma opinião que eles e, afinal, estava de acordo com a defesa. Mas Cambaza e Pereira estão já condenados.
Como escrevi aqui há alguns meses, se o Tribunal Supremo mantiver a coerência, terá que enquadrar António Munguambe no mesmo crime de Manhenje e reduzir a sua pena de 20 para dois anos. E terá ainda de reformular a acusação a Cambaza e a Altenor Pereira, fazendo verdadeiramente justiça.
Por outro lado, também não é nova a proposta que o Procurador Geral da República faz para se rever a lei anti-corrupção e a necessidade de legislar o enriquecimento ilícito e o tráfico de influência. Mas avançar-se neste sentido é uma questão meramente política, que a Frelimo, como partido maioritário na Assembleia e partido do Governo, terá de decidir se está preparada para os danos que pode criar, tal é o universo de pessoas potenciais a cair na rede da justiça.
Quem sabe, talvez agora vindo de um Procurador Geral, estas propostas tenham a receptividade que não tiveram, até agora...
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