segunda-feira, 4 de julho de 2011

REVISITAR A HISTÓRIA EM TIMOR-LESTE – A IMPUNIDADE




Comissão Acolhimento Verdade e Reconciliação

Xanana Gusmão entrega relatório sobre atrocidades em Timor

Francisca Gorjão Henriques – Público – 20 janeiro 2006

As forças indonésias cometeram um "crime contra a humanidade" ao "impor intencionalmente condições de vida que não permitiram a sobrevivência de dezenas de milhares de timorenses". Esta é uma das conclusões do relatório da Comissão Acolhimento Verdade e Reconciliação (CAVR) que hoje será entregue pelo Presidente, Xanana Gusmão, ao secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, e ao qual o diário The Australian teve acesso.

A fome foi usada como arma de guerra, tal como a tortura e a violência sexual, adianta o relatório da CAVR. As forças indonésias utilizaram ainda napalm e armas químicas contra a população, poluindo alimentos e água. Dos 183 mil civis que morreram durante a ocupação (por culpa do Governo indonésio e das forças de segurança, segundo o relatório), 90 por cento foram vítimas de fome e doenças.

O jornal australiano refere-se ao documento de 2500 páginas, intitulado "Chega!", como uma "litania de massacres" que dizimaram um terço da população timorense. "Violação, escravatura sexual e violência sexual eram ferramentas usadas como parte de uma campanha orquestrada para infligir uma experiência de profundo terror, impotência e falta de esperança entre os apoiantes pró-independência", cita o Australian.

A Comissão foi criada há dois anos com um mandato da ONU e do Governo timorense para apurar a verdade relativamente às violações aos direitos humanos cometidas em Timor-Leste entre Abril de 1976 e Outubro de 1999. O relatório final - elaborado com base no depoimento de quase oito mil testemunhas, documentos militares indonésios e fontes de serviços secretos estrangeiros - foi entregue a Xanana Gusmão em Outubro, que optou por mantê-lo confidencial.

"Todas as conclusões [do relatório] são conhecidíssimas, mesmo antes de 1999", comentou ao PÚBLICO António Almeida Serra, especialista em questões timorenses do Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade Técnica de Lisboa (ISEG). O número de vítimas era já referido frequentemente, tal como o tipo de massacres e quem os executou. "Vai-se um pouco mais longe na identificação de alguns responsáveis. Mas as pessoas que estiveram envolvidas no processo sabem perfeitamente o que aconteceu ao marido, ao filho, ao pai... e quem o fez."

Quer o Presidente, quer o Governo timorense afirmam que não desejam abrir novas feridas com o debate e julgamentos dos autores das atrocidades, defendidos por grupos de direitos humanos (o documento da Comissão também defende "cuidadosamente", segundo o Australian, que muitos dos actuais responsáveis militares indonésios "poderiam ser responsabilizados" pelas violações). Jacarta partilha com Díli a mesma posição. Os dois países vizinhos estão agora mais interessados em fortalecer as suas relações bilaterais.

Julgamentos abririam novas feridas

"Sabemos que a opinião do nosso Presidente e do nosso Governo não é muito popular entre algumas pessoas no nosso país e na comunidade internacional", afirmou esta semana o ministro timorense dos Negócios Estrangeiros, José Ramos-Horta. "Dizem que estamos a pôr demasiada ênfase na reconciliação e não na justiça. Pode ser assim, mas ao lidar com a questão da justiça temos de ter em conta que precisamos de criar paz e estabilidade em Timor-Leste".

"Compreendo o receio de se estar a escarafunchar nas feridas", adianta Almeida Serra. "O arranhão está lá, mas não está a sangrar. Não se pode construir o futuro por cima de arranhões a sangrar".

As pressões dos activistas humanitários, que defendem que as vítimas têm direito à justiça, acabam por não ter em conta a realidade no terreno: "O relatório está imbuído de preocupações de grupos de direitos humanos que estão sentados na Indonésia, na Austrália ou em França. Mas se as coisas correrem mal, são os timorenses que sofrem".

A CAVR não aponta o dedo apenas à Indonésia, mas também à Austrália, por aceitar a ocupação e impedir o uso da força em Timor. E também à própria resistência timorense que, sobretudo na década de 70, foi responsável pelo massacre e tortura de civis. Este é um dos factores que poderia contribuir para uma enorme desestabilização do país, caso todos os responsáveis fossem chamados à justiça, defendem as autoridades timorenses.

Mais uma vez, o analista do ISEG concorda. Mas confia "no bom senso das autoridades timorenses. Acho que não vai acontecer nada de gravoso", diz. "Xanana Gusmão e os timorenses tiveram como objectivo pôr o livro na prateleira. Será usado daqui a 60 anos para escrever a história do país." "Se os timorenses têm gerido bem [as suas crises], também o conseguirão fazer no futuro. Há especialistas em lidar com bombas!"

*Título PG

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