sexta-feira, 22 de julho de 2011

UM TREM ALUCINADO





O projeto do Trem de Alta Velocidade (TAV) entre São Paulo e Rio de Janeiro, o trem-bala, poderia ser usado em cursos de administração pública como exemplo do que não se deve fazer. Foram cometidos vários erros básicos nos estudos preliminares – parecem deliberados de tão óbvios. Em primeiro lugar, foi superestimada a demanda de passageiros – e, portanto, a receita futura da operação da linha – em pelo menos 30%.

Além disso, o TAV não custaria R$ 33 bilhões, como dizem, e sim mais de R$ 60 bilhões. Isso porque não incluíram reservas de contingência, não levaram em conta os subsídios fiscais e subestimaram os custos das obras, como os 100 km de túneis, cujo custo foi equiparado aos urbanos. Esqueceram que os túneis para os TAVs são bem mais complexos, dada a velocidade de 340 km por hora dos trens; além disso, longe das cidades, não contam com a infra-estrutura necessária, como a rede elétrica, por exemplo.

Foram ignoradas também as intervenções necessárias para o acesso às estações do trem, caríssimas e não incluídas naqueles R$ 60 bilhões. Imagine-se o preço das obras viárias para o acesso dos passageiros que fossem das zonas Sul, Leste e Oeste de São Paulo até o Campo de Marte!

O último leilão do TAV fracassou não porque os empresários privados não gostem de receber subsídios ou que o governo do PT seja refratário a concedê-los. Pelo contrário! Até os Correios e os Fundos de Pensão de estatais podem ser jogados na aventura. Ocorre que o projeto é tão ruim que o ponto de convergência tornou-se móvel: afasta-se a cada vez que parece estar próximo.

Apesar de tudo, o governo vai insistir, anunciando agora duas licitações: uma para quem vai pôr o material rodante, operar a linha e fazer o projeto executivo da segunda licitação, na qual, por sua vez, se escolheria o construtor da infra-estrutura. Este seria remunerado pelo aluguel da obra concluída, cujo inquilino seria a empresa operadora, bem como pelo rendimento da outorga que essa empresa pagou para vencer a primeira licitação. Entenderam? Não se preocupem. Trata-se de uma abstrusa mistificação para, de duas uma: encobrir o pagamento de toda a aventura pelos contribuintes ou fazer espuma para que o governo tire o time sem dizer que desistiu.

A alucinação que cerca o projeto do TAV fica mais evidente quando se pensa a questão da prioridade. Imaginemos que pudessem ser mobilizados recursos da ordem de R$ 60 bilhões para investimentos ferroviários no Brasil.

Que coisas poderiam ser feitas com esse dinheiro? Na área de transportes de passageiros, R$ 25 bilhões de novos investimentos em metrô e trens urbanos, beneficiando mais de três milhões de pessoas por dia útil em todo o país: Porto Alegre, Curitiba, São Paulo, Belo Horizonte, Rio, Goiânia, Brasília, Salvador, Recife, Fortaleza… Sabem quantas o trem-bala transportaria por dia? Cerca de 125 mil, numa hipótese, digamos, eufórica.

Na área de transportes ferroviários de carga, os novos investimentos atingiriam R$ 35 bilhões, atendendo à demanda interna e ao comércio exterior, conectando os maiores portos do País com os fluxos de produção, aumentando o emprego e diminuindo o custo Brasil. Entre outras linhas novas, que já contam com projetos, poderiam ser construídas a conexão transnordestina (Aguiarnópolis a Eliseu Martins); a ferrovia Oeste-Leste (Figueirópolis a Ilhéus); a Centro-Oeste (Vilhena a Uruaçu); o trecho da Norte-Sul de Açailândia a Barcarena, Porto Murtinho a Estrela do Oeste; o Ferroanel de SP; o corredor bioceânico ligando Maracajú-Cascavel; Chapecó-Itajaí etc. Tudo para transporte de soja, farelo de soja, milho, minério de ferro, gesso, fertilizantes, combustíveis, álcool etc. É bom esclarecer: o trem-bala não transporta carga.

Além de ter sido vendido na campanha eleitoral como algo “avançado”, o TAV foi apresentado como se o dinheiro e os riscos fossem de responsabilidade privada. Alguém acredita nisso hoje?

Inicialmente, segundo o governo, os recursos privados diretos não cobririam mais de 20% da execução do projeto. E isso naquela hipótese ilusória de R$ 33 bilhões de custo. Outros 10% sairiam do Tesouro Nacional, e 70%, do BNDES, que emprestaria ao setor privado, na forma do conhecido subsídio: o Tesouro pega dinheiro a mais de 12% anuais, empresta ao BNDES a 6%, e a diferença é paga pelos contribuintes. Com estouro de prazos e custos, sem demanda suficiente de passageiros, quem vocês acham que ficaria com o mico da dívida e dos subsídios à tarifa? Nosso povo, evidentemente, por meio do Tesouro, que perdoaria o BNDES e bancaria o custeio do trem.

Há outras duas justificativas para a alucinação ferroviária: os ganhos tecnológicos e ambientais! A história da tecnologia é tão absurda que lembra os camponeses do escritor inglês Charles Lamb (num conto sobre as origens do churrasco), que aprenderam a pôr fogo na casa para assar o leitão. Gastar dezenas de bilhões num projeto ruim só para aprender a implantar e a fazer funcionar um trem-bala desatinado? Quanto vale isso? Por que não aprender mais tecnologia de metrô e trens de carga? Quanto ao ganho ambiental, onde é que já se viu? Como lembrou Alberto Goldman, a saturação de CO² se dá nas regiões metropolitanas, que precisam de menos ônibus e caminhões e de mais trens, não no trajeto Rio-SP.

O projeto do trem-bala é o pior da nossa história, dada a relação custo-benefício. Como é possível que tenha sido concebido e seja defendido pela principal autoridade responsável pela condução do país? Eis aí um tema fascinante para a sociologia e a psicologia do conhecimento.

PS – A região do projeto do trem-bala em que há potencial maior de passageiros é a de Campinas (SP) e Vale do Paraíba, que poderia perfeitamente receber uma moderna linha de trem expresso, com custo várias vezes menor e justificativa econômica bem maior, especialmente se ocorrer a necessária expansão do aeroporto de Viracopos.

- Texto publicado no Estadão em 14/7/2011

*José Serra foi presidente da União Nacional dos Estudantes – UNE entre 1963 e 1964, ano em que o Golpe Militar forçou-o a buscar exílio no exterior. Viveu no Chile e nos Estados Unidos, onde fez seu doutorado em economia pela Universidade de Cornell. No Brasil, Serra tinha estudado engenharia, na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo.

De volta ao país depois de quatorze anos, foi professor da UNICAMP e pesquisador do Cebrap. Em 1983, foi nomeado Secretário de Economia e Planejamento do Governo Franco Montoro, em São Paulo. No ano seguinte, chefiou a Comissão do Programa de Governo do candidato presidencial Tancredo Neves. Em 1986, elegeu-se Deputado Federal Constituinte, tendo sido o relator da Comissão do Sistema Tributário, Orçamento e Finanças. Em 1990 elegeu-se novamente Deputado Federal, tendo sido líder do PSDB na Câmara. Em 1995 foi eleito Senador por São Paulo. Foi Ministro do Planejamento entre 1995 e 1996 e Ministro da Saúde entre 1998 e 2002. Foi candidato a presidente da República em 2002, tendo perdido no segundo turno.

Em 2004, José Serra elegeu-se Prefeito de São Paulo, e em 2006 foi eleito Governador do Estado no primeiro turno. Em 2010, candidatou-se novamente à Presidência, tendo obtido 44 milhões de votos no segundo turno das eleições.

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