MARTINHO JÚNIOR
SALVAR A PAZ EM ÁFRICA
Salvar a paz em África é uma aspiração das mais legítimas que todos os africanos almejam, por que só em paz e com a paz é possível erigir-se a África que povoa nossos sonhos, aquela África que tendo sido resgatada da escravatura, do colonialismo, e do “apartheid”, pode conseguir para todos os seus povos heranças de integração e de independência com sentido de vida.
Não se poderá dialogar, alcançar a possibilidade do aprofundamento da democracia, construir a participação cada vez mais alargada de todos na condução dos destinos dos povos, se não se partir duma plataforma mínima de paz, que deve ser sujeita a crítica sim, no âmbito duma batalha de ideias que sustente a ética e a moral da solidariedade, da justiça e da liberdade e seja capaz efectivamente de progredir, ganhando o enorme espaço que o subdesenvolvimento tomou ao longo de séculos.
No tempo em que essas aspirações levam os povos africanos a abrir um pouco essa janela de futuro, outros riscos larvares renascem das cinzas da história, por que não cessou a cobiça dos homens sobre as incomensuráveis riquezas do continente-berço da humanidade, não cessou o desprezo em relação aos africanos, nem a opressão à custa das maiores desgraças e misérias.
Quantos milhões mais de africanos têm de desaparecer na voragem dessa cobiça, pagar o preço de ter nascido no lado errado, no lado daqueles que são obrigados a tanto perder?
Quantos países e povos mais, regiões inteiras, têm de pagar a factura que é imposta pelas potências que dão corpo ao império e aos seus desígnios de hegemonia sem limites, por que é uma hegemonia que se ergue para além dos limites sustentáveis da Terra?
África tem de encontrar sua própria saída no labirinto de manobras e manipulações desta tão envenenada globalização, que com sangue, fome, miséria e morte a asfixiam e tem de uma vez mais lutar, agora ainda com mais inteligência, vontade, determinação e consciência que antes, nas condições precárias da paz que é possível, para tentar alcançar a paz mais justa que a resgate da longa noite do subdesenvolvimento.
Quanto da dor de África é fruto de subdesenvolvimento e quanto desse subdesenvolvimento é fruto dos desígnios daqueles que pretendem manter África submissa e em torpor “eterno”?
Tudo do mais nefasto se tem promovido com as guerras de rapina em África e agora só faltava a experiência duma aliança como aquela que se verifica na Líbia, uma aliança entre AFRICOM/OTAN e alguns dos grupos mais radicais do fundamentalismo islâmico que agora vão ganhando expressão com a decapitação da AL QAEDA, uma experiência que pretende expandir com mais ou menos metamorfose em direcção a outras latitudes dentro e fora do continente.
A “doutrina Obama” adequa-se às características do continente: se há lugar algum onde o tipo de guerras baratas podem ser desencadeadas, esse lugar é África e para isso interessa a cosmética, a oportunidade de decidir o momento do seu desencadeamento, a disseminação de meios humanos em processos dialécticos e contraditórios por vezes tornado antagónicos controlados pelos instrumentos da hegemonia sobretudo por dentro das elites sócio-políticas africanas, a impulsão de emoções a partir das novas gerações e o recurso até à mobilização dos mais radicais…
Entre os aspectos que dei relevância que perfazem a acção no âmbito de “doutrina Obama”, recordo três que me parecem ser de destacar e fluem no caso da Líbia:
- Gerar um aumento de capacidade de forças especiais com possibilidade de actuação “deep inside” no corpo dos alvos, a fim de melhorar as “performances” das novas tecnologias de guerra de comunicação e de ligação; é imprescindível localizar, qualificar e quantificar os alvos, a fim de melhor estudar que tipo de meios se vão utilizar para os neutralizar, ou destruir, ou como se vai dirigir as acções, incluindo as que têm a capa duma “rebelião”.
- Decapitar os grupos terroristas radicais como a AL QAEDA, a fim de, acoplando suas células ao uso de forças especiais, participarem enquanto agentes nos teatros de operações que se transformaram em alvos dos interesses, das conveniências e das rapinas, conforme ao caso da Líbia e do que indicia estar em curso já na Argélia e na Nigéria, a uma escala menor do que se indicia na Síria.
- Substituir o manancial humano de suas tropas por este tipo de recrutamento agenciado, integrando nos processos manipulados de transformação do poder e das sociedades-alvo.
Há razões mais que suficientes para os africanos se terem batido e continuarem a bater por uma plataforma, mínima que seja de paz, de diálogo e de procura de soluções democráticas para resolver problemas e evitar outros problemas e, no caso da Líbia, a essas razões há outras mais a acrescer conforme aos seguintes questionamentos:
- O Conselho Nacional de Transição (CNT) da Líbia, indiciando ser uma manta de retalhos que se pode desagregar e até “auto consumir” mereceria por si a opção militar contra uma ditadura como a de Kadafi?
- O CNT é suficientemente credível porquanto se conhece a história de alguns agrupamentos e personalidades que o compõem, entre eles o Libyan Islamic Fighting Group (LIFG), afim à AL QAEDA?
- Que garantias poderão dar o AFRICOM/OTAN com um quadro de alianças dessa natureza?
- Que tipo de democracia vão construir com esse tipo de ingredientes, a que se junta a diversidade de tribos por que é constituída a multifacetada sociedade líbia?
- Substituir um regime qualificado como ditatorial e sanguinário, por instituições que têm sua representatividade num CNT conforme o caso líbio, é alguma vez garantia de que o sangue não continuará a ser derramado?
- Que consequências isso não irá fazer proliferar em África, a partir do Nordeste para outras regiões e sobretudo em direcção ao Golfo da Guiné e África Central?
- Não é legítimo aos países que compõem a SADC, tendo em conta as traumatizantes experiências históricas, acautelar a solução de problemas perseguindo a via de diálogo para a solução dos problemas, de forma a se procurar a paz mínima que evite a efusão de mais sangue em África?
- Não é justo que a União Africana faça repercutir essa vontade e procurar dimensioná-la a todo o continente?
Um grupo de cerca de 200 intelectuais africanos, em sustentação da posição da União Africana escreveu uma Carta Aberta a todos os Povos de África e do Mundo, que no âmbito dos Estados Unidos e da Europa, no âmbito do AFRICOM/OTAN, caiu em saco roto.
Eis alguns extractos dessa Carta (http://resistir.info/libia/carta_aberta_ago11.html):
“Nós, os signatários, somos cidadãos comuns da África que estão imensamente aflitos e irados por companheiros africanos estarem e terem sido sujeitos à fúria da guerra por potências estrangeiras, as quais repudiaram claramente a nobre e muito relevante visão corporificada na Carta das Nações Unidas.
Nossa acção ao emitir esta carta é inspirada pelo nosso desejo, não de tomar partido mas sim de proteger a soberania da Líbia e o direito do povo líbio de escolher seus líderes e determinar o seu próprio destino.
A Líbia é um país africano.
Em 10 de Março, o Conselho de Paz e Segurança da União Africana adoptou uma importante Resolução a qual explanava o roteiro para tratar o conflito líbio, consistente com as obrigações da União Africana (UA) sob o Capítulo VIII da Carta da ONU.
Quando o Conselho de Segurança da ONU adoptou a sua Resolução 1973, estava consciente da decisão da UA a qual fora anunciada sete dias antes.
Ao decidir ignorar este facto, o Conselho de Segurança mais uma vez e conscientemente contribuiu para a subversão do direito internacional bem como para a impugnação da legitimidade da ONU aos olhos do povo africano.
De outras formas desde então, ele ajudou a promover e fortalecer o processo imensamente pernicioso da marginalização internacional da África mesmo em relação à resolução dos problemas do continente.
Contrariando as disposições da Carta da ONU, o Conselho de Segurança da ONU declarou a sua própria guerra à Líbia em 17 de Março de
(…)
“Devidamente autorizado pelo Conselho de Segurança, as duas "coligações de vontade", a NATO e o "Grupo de Contacto", efectivamente e praticamente reescreveram a Resolução 1973.
Dessa forma eles concederam-se poderes a si próprios para abertamente prosseguir o objectivo da "mudança de regime" e portanto para a utilização da força e de todos os outros meios para derrubar o governo da Líbia, objectivos completamente em desacordo com as decisões do Conselho de Segurança da ONU.
Por causa disto, em desrespeito das Resoluções 1970 e 1973 do Conselho de Segurança da ONU, eles atreveram-se a declarar o governo da Líbia ilegítimo e a proclamar o "Conselho Nacional de Transição" baseado em Bengazi como "a autoridade governante legítima na Líbia".
O Conselho de Segurança deixou de responder à pergunta de como as decisões tomadas pela NATO e pelo "Grupo de Contacto" tratam a questão vital de "facilitar o diálogo para levar à reformas políticas necessárias para encontrar uma solução pacífica e sustentável".
As acções dos seus "sub-empreiteiros", a NATO e o "Grupo de Contacto", posicionaram as Nações Unidas como um partido beligerante no conflito líbio, ao invés de ser um pacificador comprometido mas neutro posicionando-se de modo equidistante das facções armadas líbias.
O Conselho de Segurança mais uma vez decidiu deliberadamente repudiar as regras do direito internacional ao conscientemente ignorar as disposições do Capítulo VIII da Carta da ONU relativas ao papel das instituições regionais legítimas”.
(…)
“O Conselho de Segurança da ONU deve portanto saber que, pelo menos em relação à Líbia, actuou de uma maneira que resultará, e efectivamente levou, à perda da sua autoridade moral para presidir sobre os processos críticos de alcançar a paz global e a realização do objectivo da coexistência pacífica entre diversos povos do mundo.
Ao contrário das disposições da Carta da ONU, o Conselho de Segurança da ONU autorizou e permitiu a destruição e a anarquia na qual desceu o povo líbio.
No fim de tudo isto:
muitos líbios morreram e foram mutilados
muita infraestrutura terá sido destruído, empobrecendo mais o povo líbio
a amargura e a animosidade mútua entre o povo líbio terá sido mais fortalecida
a possibilidade de chegar a um acordo negociado, inclusivo e estável ter-se-á tornado muito mais difícil
a instabilidade terá sido reforçada entre os países vizinhos da Líbia, especialmente os países do Sahel africano, tais como o Sudão, Chade, Níger, Mali e Mauritânia
a África herdará um desafio muito mais difícil para tratar com êxito da questão da paz e da estabilidade e, portanto, da tarefa do desenvolvimento sustentado
aqueles que intervieram para perpetuar a violência e a guerra na Líbia terão a possibilidade de estabelecer os parâmetros dentro dos quais os líbios terão a possibilidade de determinar o seu destino e, mais uma vez portanto, constrangerão o espaço para os africanos exercerem o seu direito à auto-determinação”.
(…)
“Aqueles que hoje trouxeram uma chuva mortal de bombas à Líbia não deveriam iludir-se a si próprios acreditando que o silêncio aparente dos milhões de africanos significa a aprovação da África à campanha de morte, destruição e dominação que tal chuva representa.
Estamos confiantes em que amanhã emergiremos vitoriosos, apesar da busca de poder mortal dos mais poderosos exércitos do mundo.
A resposta que devemos dar na prática, e como africanos, é – quando e de que modos actuaremos resolutamente e significativamente para defender o direito dos africanos da Líbia a decidirem seu futuro e portanto o direito e o dever de todos os africanos a determinarem o seu destino.
O Roteiro da União Africana permanece o único caminho de paz para o povo da Líbia”.
As ingerências com recurso à guerra promovida pelo AFRICOM/OTAN chocam com as aspirações legítimas à paz que há em África e, para que os leitores possam fazer um juízo mais adequado da corrente situação, de quanto os dirigentes das “democracias” são capazes de manipular, junto uma lista de artigos que reflectem as minhas maiores preocupações:
Ver:
- Our man in Tripoli – Michel Chossudovski – Global Research – http://www.globalresearch.ca/index.php?context=va&aid=24096
- The "Liberation" of Libya: NATO Special Forces and Al Qaeda Join Hands – Michel Chossudovski – Global Research – http://www.globalresearch.ca/index.php?context=va&aid=26255
- How al-Qaeda got to rule in Tripoli – Pepe Escobar – Asia Times – http://www.atimes.com/atimes/Middle_East/MH30Ak01.html
- Abdelhakim Belhaj, le retour d’Al-Qaeda – Jean-Pierre Perrin – Libération – http://www.liberation.fr/monde/01012356209-abdelhakim-belhaj-le-retour-d-al-qaeda
- Profile Of AbdelHakim Belhaj: Head Of Military In Tripoli And Former LIFG Amir – Analysis – http://www.eurasiareview.com/profile-of-abdelhakim-belhaj-head-of-military-in-tripoli-and-former-lifg-amir-analysis-30082011/
- WHO IS ABDELHAKIM BELHAJ? – http://www.globaljihad.net/view_page.asp?id=2136
- Libyan Islamists joint Al Qaeda – BBC – http://news.bbc.co.uk/2/hi/7076604.stm
- Dossier LIFG – http://www.nefafoundation.org/miscellaneous/nefalifg1007.pdf
- Libyan Islamic Fighting Group – Wikipedia – http://en.wikipedia.org/wiki/Libyan_Islamic_Fighting_Group
A África continua a ser um corpo inerte onde cada abutre vem depenicar o seu pedaço!
Na foto: Dois “freedom fighters” da era de Ronald Reagan no Afeganistão, Abdullah Mansour (esquerda) e Abdul Monem al-Madhouni, actualmente dois dos chefes do Libyan Islamic Fighting Group.
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