segunda-feira, 19 de setembro de 2011

QUANTA VERDADE O BRASIL SUPORTA?




EDSON TELES* – CARTA MAIOR, Debate Aberto

As ambiguidades do projeto de lei do governo federal constituem bloqueios da política e da justiça e demonstram a urgência da participação da sociedade civil na formulação de qual Comissão da Verdade teremos e de quanta verdade o Brasil suporta.

A democracia brasileira, em cerca de 25 anos de existência, tem sido marcada pela ausência de justiça. Refiro-me à justiça escrita nas leis da Constituição Federal e recomendada pelos tratados internacionais assinados pelo Estado brasileiro. O país viveu uma impactante ditadura que deve ser medida pelo número de mortos, desaparecidos e torturados.

Seu forte efeito sobre a sociedade brasileira pode ser avaliado por características autoritárias e por certa cultura de impunidade herdados no regime democrático. Depois de mais de duas décadas do fim dos governos militares, nenhum criminoso da ditadura foi penalmente julgado. Mais ainda, após este largo período em que poderíamos ter uma democracia consolidada, o Superior Tribunal Federal confirmou que os crimes de tortura, assassinato e desaparecimento políticos são passíveis de anistia!

É neste contexto que o atual governo se esforça para escamotear uma Comissão da Verdade, com aval do Congresso Nacional, sem o compromisso de colaborar com a justiça e com a consolidação da democracia. Esta é uma afirmação fundamentada no Projeto de Lei do governo que propõe a Comissão. Para compreender a proposição, vejamos como o Estado de Direito tem sido construído no país. Podemos dizer que há três momentos originários do processo democrático: 1. A Lei de Anistia de 1979; 2. A eleição do primeiro presidente civil via Colégio Eleitoral; 3. A Constituição de 1988.

São momentos simbólicos da democracia e possuem, entre eles, ao menos duas características em comum. Por um lado, configuraram-se como saídas negociadas em salas sombrias do Congresso ou dos palácios de governo, superando ou silenciando ações dos movimentos sociais e das lutas populares. Soma-se a isto, como segunda característica, o fato de anunciarem saídas para dilemas políticos por meio da instituição de estados de exceção, momentos nos quais o ordenamento jurídico é suspenso, por algum instrumento interno às leis, em favor da “superação” de circunstâncias que poderiam gerar alguma instabilidade ao processo político e, via de regra, por meio de uma ação autoritária.

Em 1979, o movimento pela anistia surgiu como fruto da pressão popular e dos partidos de oposição, possivelmente configurando o primeiro movimento social a fazer uso do discurso dos direitos humanos em larga escala. Contudo, o governo militar do general Figueiredo impôs ao país uma lei ambígua, a qual viria a tornar-se, por confirmação da Assembléia Constituinte de 1988 e do STF, em 2010, no marco inaugural da impunidade acordada sem a participação da sociedade. Em 1977, o Congresso Nacional havia sido fechado e silenciado para que a ditadura iniciasse o processo de abertura controlada – “lenta, gradual e segura”. No ano seguinte, impôs leis de exceção ao processo eleitoral de escolha dos parlamentares que em 1979 votariam a Lei de Anistia. Isto para não citar as várias formas de repressão política, como queimar bancas de jornal, invadir redação de jornais de oposição, prender e matar militantes contrários ao regime, censurar. O movimento pela anistia ampla, geral e irrestrita foi calado pela imposição da força de atos de exceção. Os crimes de tortura, assassinato e desaparecimento político permaneceram impunes.

Próximo ao fim da ditadura, a sociedade brasileira se mobilizou no maior movimento político suprapartidário da história recente do país conhecido como “Diretas Já”. Milhões de pessoas em comícios nunca antes vistos (nem mesmo depois) foram às praças e ruas, em todo território nacional, exigir uma passagem democrática de um regime de violência para o Estado de Direito. Novamente prevaleceu a negociata. Desta vez com mais representatividade do que a de 1979, selada por quase todos os partidos, mesmo os de oposição (exceto o PT), e por segmentos importantes de instituições como a igreja católica e a mídia. Ao final, tomou posse como presidente, devido à precoce morte de Tancredo Neves, o ex-líder do partido do governo militar no período da aprovação da Lei de Anistia, José Sarney. E mais uma vez os movimentos sociais foram calados, optando-se por uma saída autoritária. Neste processo, os crimes de tortura, assassinato e desaparecimento político permaneceram impunes.

Na Assembléia Constituinte, eleita em 1986, houve uma significativa mobilização dos mais variados movimentos sociais. Fruto destas ações surgiram direitos avançados (trabalhista, do índio, da mulher, do adolescente etc.). Entretanto, alguns aspectos da nova Constituição não foram alterados em relação ao outorgado pela ditadura na Constituição de 1969. Especialmente, as questões referentes à propriedade da terra, dos meios de comunicação e das relações civis-militares. Neste último item, apesar dos esforços dos familiares de mortos e desaparecidos, todos os partidos políticos aderiram ao discurso da “politica do possível” em prol de uma necessidade maior (a “estabilidade democrática”) e autorizaram o terceiro momento de exceção na transição. Os crimes de tortura, assassinato e desaparecimento políticos permaneceram impunes.

Por que insistir na questão da impunidade dos crimes da ditadura no momento em que o Brasil aparece como economia forte e democracia consolidada? Isto se deve ao fato de que o atual governo brasileiro busca impor um projeto de lei sobre a Comissão da Verdade sem ouvir a sociedade brasileira, em especial sem dar voz às vítimas e seus familiares e, ressalte-se, por meio de um ato de exceção: a votação em regime de urgência urgentíssima, pelo qual são dispensadas as formalidades regimentais devido ao caráter inadiável ou emergencial do tema em questão. Ora, como pode ser inadiável um assunto que por mais de 30 anos tem sido ocultado por acordos necessários e emergenciais. Será que depois de mais de 25 anos de democracia a sociedade brasileira não tem vida política qualificada o suficiente para discutir como quer abordar sua história e suas consequências para o presente? Por que tanta pressa? O que torna a Comissão da Verdade uma votação inadiável neste momento?

É muito provável que a urgentíssima necessidade de aprovação do projeto nos próximos dias esteja vinculada à questão: de qual verdade ou quanto dela a Comissão irá apurar. O projeto do governo, amplamente anunciado como aceito pelas Forças Armadas, indica em seu primeiro artigo todo o problema colocado. Vejamos como este artigo começa: “Fica criada, no âmbito da Casa Civil da Presidência da República, a Comissão Nacional da Verdade (...)”. No Artigo 10º se esclarece o que isto quer dizer: a Comissão da Verdade não terá estrutura, orçamento e funcionamento autônomo em relação ao poder Executivo. Ela dependerá do “suporte técnico, administrativo e financeiro” da Casa Civil. A Comissão prevista não terá independência e autonomia para a realização de seus trabalhos.

Segue o Artigo 1º: a Comissão será criada “(...) com a finalidade de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas (...)”. Praticadas por quem? Será que já não é evidente para a história do país que houve uma grave e violenta ditadura no país? Por que não consta do Projeto as palavras “responsável” ou “responsabilidade”?

Bem, talvez o Estado ditatorial não tenha sido nomeado porque o restante do artigo esclareça a questão da responsabilidade. Retornemos à leitura do Artigo 1º: “(...) praticadas no período fixado no Artigo 8º. do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (...)”. O que será este Ato? Seu teor diz: “É concedida anistia aos que, no período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição (ou seja, 1988), foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares (...)” (grifos e comentário nossos). Como assim? A ditadura não foi de 1964 a 1985 (ou 1988, se a referência for a nova Constituição; ou ainda, 1989, se for a primeira eleição direta para presidente)? Então, quais violações de direitos humanos serão examinadas e esclarecidas entre 1946 e 1988?

Segundo documento do Ministério Público Federal (“Nota Técnica sobre o Projeto de Lei que cria a Comissão Nacional da Verdade”, de abril de 2011), “tal enfoque amplia demasiadamente o objeto da Comissão”, com “um risco de que a Comissão perca o foco”. O documento do Ministério Público informa que o Artigo 8º. do Ato é um dispositivo que “estipulou normas diversas (...) , pois o resultado final era o mesmo: anistia para perseguidos políticos, independente da natureza da perseguição”. Novamente, parece que o desejo de conhecer a história do país está sendo escamoteado.

O Artigo 1º do Projeto do governo continua: a Comissão irá “examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos (...) a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional” (grifo nosso). Qual reconciliação? Ainda vivemos o conflito da época da ditadura? O projeto de lei do governo, este mesmo que anuncia o Brasil como uma democracia consolidada e de economia forte, está dizendo que as relações entre civis e militares ainda existem? Que há algo de autoritário no Estado de Direito?

Merecedor de nota foi o casuísmo no trâmite do projeto da Comissão da Verdade apresentado ao Congresso Nacional, em maio de 2010, dois dias antes de iniciar o julgamento do Estado brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA). Neste processo, o Brasil foi condenado a apurar as circunstâncias dos assassinatos e tortura de militantes da Guerrilha do Araguaia (1972-1975), localizar os corpos desaparecidos e punir os responsáveis por tais crimes.

Da mesma maneira casuística temos hoje a necessidade urgentíssima de aprovação do Projeto que ocorre próximo à reunião da Corte da OEA, momento em será avaliado se a sentença está sendo cumprida; e, não menos intrigante, às vésperas do discurso da presidente Dilma Roussef na ONU.

As ambiguidades do projeto de lei do governo constituem bloqueios da política e da justiça e demonstram a urgência da participação da sociedade civil na formulação de qual Comissão teremos e de quanta verdade o Brasil suporta.

*Professor de Filosofia Política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

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