domingo, 2 de outubro de 2011

AS DUAS FACES DE CAVACO SILVA





A entrevista concedida esta semana por Cavaco Silva mostrou um Presidente da República bem diferente daquele que há seis meses tomou posse para um segundo mandato em Belém. Ao contrário do tom azedo e crispado adoptado para o discurso de 9 de Março, em que arrasou as políticas públicas e apelou para um "sobressalto cívico" contra o anterior Governo, Cavaco veio agora dar cobertura e protecção à acção governativa da coligação PSD-CDS - afinal, a maioria que o reelegeu -, mesmo sabendo que descobrir promessas feitas em campanha eleitoral que tenham sido cumpridas nos primeiros cem dias de governação é equivalente a procurar uma agulha num palheiro.

Seis meses depois de ter sinalizado que os portugueses não aguentam mais medidas de austeridade e de ter sentenciado que "há limites para os sacrifícios que se podem exigir ao comum dos cidadãos", o Chefe do Estado veio agora, por "decreto presidencial", liquidar esses mesmos limites, caucionando futuras violações ao contrato de confiança estabelecido entre os cidadãos e a maioria saída do dia das últimas eleições legislativas.

Ao subscrever a tese do "desvio colossal", admitindo que 2012 será "um ano de resistência", o que o Presidente da República está a fazer é a antecipar a promulgação de novos sacrifícios e medidas de austeridade, que, inevitavelmente, passarão por novo agravamento da carga fiscal.

Não há hoje português nenhum que não saiba que a situação em que nos encontramos é grave, muito grave. E por muito que nos tentem convencer do contrário, é impossível ilibar quem teve responsabilidades governativas nos últimos anos e contribuiu para que chegássemos aqui. Mas não haverá certamente ninguém que não perceba aquilo que o Presidente da República só agora, por mero oportunismo político verbalizou: que uma parte importante da tragédia que se abateu sobre nós é culpa da crise das dívidas soberanas que atinge não só a chamada Zona Euro, como também os Estados Unidos e o Japão.

Há seis meses, porém, o mesmo Cavaco Silva que agora "descobriu" a influência da crise internacional, afinado com a maioria governamental que na oposição negava todas as evidências, dizia solene e agastado com quem invocava a conjuntura externa: "Não devemos dizer mal de quem nos empresta dinheiro", recusando diabolizar os mercados e preferindo atacar aqueles que em Portugal nos tinham conduzido à "década perdida".

Na mesma entrevista em que condenou, e bem, aqueles que ao longo dos anos ignoraram os seus avisos e os seus alertas sobre a "situação insustentável" para que o País caminhava, o Presidente foi incapaz de fazer mais do que "corroborar" o que foi dito pelo Instituto Nacional de Estatística e o Banco de Portugal sobre a ocultação propositada do buraco da Madeira. É curto, demasiado curto, para o Supremo Magistrado da Nação. Ao contrário do que afirmou na televisão, o comportamento de Alberto João Jardim não se resume a uma questão de estilo. E Cavaco, que já foi "senhor Silva" sabe-o bem. Refugiar-se sob o chapéu amplo dos chavões "sou o Presidente de todos os portugueses" e "o Presidente tem que ser um factor de coesão e unidade nacional" é atirar areia para os olhos. Se apenas assim fosse, o que dizer então do que se passou no Verão de 2008, quando, independentemente das razões que lhe assistiam, Cavaco Silva não hesitou em abrir uma guerra aos Açores por causa do seu Estatuto Político e Administrativo? Terá, nessa altura, Cavaco deixado de ser propositadamente o Presidente de todos os portugueses? Obviamente que não. E não deixaria de o ser também agora se tivesse feito o que lhe competia: censurar a conduta de Alberto João Jardim.

Mas para isso é preciso coragem. E Cavaco Silva, manifestamente, não a demonstrou.

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