terça-feira, 11 de outubro de 2011

OS DESEQUILÍBRIOS DO MILAGRE CHINÊS




Marcelo Justo - Direto da China – Carta Maior

Com a crise global de 2008, as crescentes pressões para uma valorização de sua moeda e os conflitos sociais com uma classe trabalhadora cansada de sacrifícios, o governo chinês vem impulsionando uma mudança do atual modelo de crescimento baseado nas exportações para outro que aproveite o infinito potencial de seu consumo doméstico. Em 30 anos de crescimento acelerado, o país deu um salto qualitativo em termos de desenvolvimento, mas pagou um alto preço em termos sociais. O artigo é de Marcelo Justo.

O 8 é o número mágico chinês, fonte de superstições de todo tipo: nem sequer a política econômica escapa de seu magnetismo. Durante muito tempo, Pequim fixou nesse número a taxa de crescimento necessária para manter a harmonia social (“hexie”), um dos termos mais escutados nos debates televisivos deste país.

Nas últimas duas décadas o governo superou esta cifra com folga. A China substituiu a Alemanha como primeiro exportador mundial e é hoje líder de setores de alta tecnologia como telecomunicações, painéis solares e redes elétricas. Mas as coisas estão mudando. Com a crise global de 2008, as crescentes pressões para uma valorização de sua moeda e os conflitos sociais com uma classe trabalhadora cansada de sacrifícios, o governo vem impulsionando uma mudança do atual modelo de crescimento baseado nas exportações para outro que aproveite melhor o infinito potencial de seu consumo doméstico.

A mudança está consagrada no 12° plano quinquenal da China apresentado em março e que está centrado em uma série de medidas econômicas e sociais para estimular o consumo doméstico entre 2011 e 2015. Entre os anúncios, encontra-se a construção de 36 milhões de casas a preços populares, a criação de 45 milhões de postos de trabalho em zonas urbanas e a manutenção de uma taxa de desemprego abaixo de 5%. Em setembro entrou em vigor uma reforma tributária que elevou pela segunda vez em três anos o limite a partir do qual se paga impostos. Este limite passou de 2000 yuanes para 3.500 yuanes mensais (548 dólares), uma mudança que permitirá que 80% da população não pague impostos.

A porcentagem é reveladora da enorme brecha que separa a China e um país desenvolvido: a imensa maioria da população vive com uma renda mensal inferior a essa cifra. Segundo um estudo comparativo do Fundo Monetário Internacional (FMI), em 2010 o salário médio chinês era cerca de 16% do estadunidense. A mudança de direção para uma economia mais baseada no consumo doméstico é uma das tentativas de solucionar esse problema.

Falar de milagre chinês a essa altura é falar de uma obviedade: os números saltam à vista. Mas se é verdade que nestes 30 anos de crescimento aceleradíssimo, o país deu um salto qualitativo em termos de desenvolvimento, ao mesmo tempo é igualmente certo que se pagou um alto preço em termos sociais. O coeficiente de desigualdade Gini passou de 0,28 em 1978 para 0,45 em 2000, a migração interna é de aproximadamente 200 milhões de pessoas, a externa (ilegal) inundou o mundo com desempregados de extração majoritariamente rural ou urbana pobre.

A autora de “Chinese whispers”, cujo novo estudo sobre a migração externa será publicado em 2012, Hsiao Hong Pai, explicou à Carta Maior o lado obscuro deste milagre. “A política de portas abertas de Deng Xiao Ping gerou um profundo problema de deslocamento social devido a dezenas de milhões que perderam seu trabalho por causa da reestruturação econômica. A imprensa ocidental só fala de passagem deste lado obscuro como se fosse uma espécie de dano colateral inevitável”, assinalou.

A revolução exportadora se baseou em uma política de salários baixíssimos e em um desequilíbrio entre esse setor e seu correlato de consumo doméstico. Na década de 90, o consumo doméstico constituía cerca de 48% do PIB: hoje é de aproximadamente 36%. O desmantelamento do sistema de proteção social nos últimos 15 anos – especialmente nas áreas da saúde, educação e pensões – é uma das razões deste contínuo retrocesso em uma economia que cresce a passos gigantescos. “As pessoas se viram obrigadas a poupar para fazer frente a gastos previsíveis, como a educação dos filhos, ou não, como uma operação ou uma doença, precisando enfrentar, além disso, um mais que precário sistema de seguridade”, disse à Carta Maior o economista chinês Shujie Yao.

Esses desequilíbrios foram objeto de um intenso debate no interior do Partido Comunista. A nomeação do atual presidente Hu Jiantao e do primeiro ministro Wen Jiabao, em 2002, marcou um giro à esquerda após o longo reinado de Jian Zemin que, no final de seu mandato, permitiu o ingresso de empresários e milionários no partido, flexibilizando como nunca antes a identidade política de uma organização que é a coluna vertebral do Estado.

Como costuma acontecer na China, as mudanças foram precedidas por uma crítica aberta à política prévia que preparou o terreno para uma paulatina reforma da reforma. Em 2008, o governo modificou a lei trabalhista para promover a contratação enquanto que, em algumas províncias, como Guangdong, abriu-se uma porta para que os trabalhadores negociem diretamente as condições de emprego. Em 1982, o giro pró-capitalista de Deng Xiao Oing havia suprimido o direito constitucional à greve consagrado durante a era de Mao Tse Tung.

Quo vadis?

Um crescimento com mais peso no consumo doméstico requer melhores salários e condições de trabalho, o que abre um potencial conflito com multinacionais e empresas privadas. Nos últimos anos, o outrora “paraíso das multinacionais”, presenciou uma onda de conflitos em grandes empresas como a japonesa Honda e a taiwanesa Foxcon que terminaram com importantes aumentos salariais e concessões por parte das empresas.

A esse novo protagonismo reivindicativo trabalhista – ao mesmo tempo estimulado e vigiado pelas autoridades – o governo está somando o indubitável poder de fogo que lhe proporciona seu impressionante volume de poupança. Está em curso uma reforma do sistema nacional de saúde que pretende outorgar serviços médicos básicos para toda a população ao final deste ano e assegurar uma cobertura universal (de todas as enfermidades) em 2020. Em agosto, o governo anunciou um programa similar para o setor previdenciário que cobriria em 2015 o conjunto da população.

Por sua parte, o sistema bancário estatal chinês está tentando direcionar o crédito do financiamento das grandes empresas estatais para as pequenas e médias empresas, uma medida fundamental para a ativação do mercado doméstico. Ao final de abril deste ano, os empréstimos do setor totalizaram quase 10 bilhões de yuanes (cerca de 1,5 trilhões de dólares), um aumento de mais de 7% em relação ao ano anterior. Outro possível motor do consumo é o crédito individual. Com mais de 2 bilhões de cartões de crédito em uso, o potencial é evidente, mas no momento, mostrando as dificuldades de uma mudança de paradigma, os usuários se mostram cautelosos.

Uma recente investigação conjunta de uma universidade australiana e outra chinesa mostra que a nova classe média segue mantendo atitudes “confucianas” em relação ao dinheiro. “Há muito temor de gastar demais e se perder o controle financeiro de suas próprias vidas”, assinalou ao China Daily o especialista Frauke Mattison Thompson.

Uma China mais voltada ao consumo doméstico e com maior poder aquisitivo é um dos estímulos de que necessita a economia global que vem caminhando na ponta dos pés pela borda da depressão global desde 2008. A estratégia tem dois problemas. Em uma economia gigantesca, as margens de erro crescem inevitavelmente, mas, além disso, e de maneira fundamental, está o fator tempo. O processo requer pelo menos de 3 a 5 anos para mostrar resultados tangíveis. Do jeito que vão as coisas, não há garantias de que a China ou o mundo tenham esse período de graça.

Tradução: Marco Aurélio Weissheimer

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