domingo, 16 de outubro de 2011

OS PROFESSORES QUE NÃO TEMOS EM ANGOLA




FILIPE ZAU – JORNAL DE ANGOLA, opinião

Debrucei-me em artigos anteriores, através de um exaustivo relato histórico, sobre as dificuldades das instituições de formação de professores, em oferecerem aos candidatos à docência, os saberes e as competências necessárias ao perfil de saída dos futuros agentes de ensino, certificados para leccionar, entre outras instituições, em escolas do ensino médio normal, do ensino geral e, muito particularmente, do ensino primário em regime de monodocência.

Contudo, devo salientar, se, durante a administração colonial, as dificuldades na formação de professores estiveram, até 1961, ligadas a abjectos princípios de assimilacionismo cultural, no pós-independência, por razões de ordem conjuntural, não se tornou possível dotar as instituições de formação de professores de estabilidade e de recursos necessários, para que a educação pudesse levar a cabo, o que, hoje, sob pressão, lhe é exigida. Porém, como o sistema educativo é complexo, não é possível dar respostas imediatas a expectativas políticas de curto prazo.

Os Institutos Superiores de Ciências da Educação

Como pudemos analisar, os Institutos Superiores de Ciências da Educação (ISCED), que deveriam formar adequadamente professores para leccionarem nos Institutos Médios Normais (IMN), ex-Institutos Normais de Educação (INE), não conseguem cumprir com esse desiderato. Na prática, os recém-licenciados nos ISCED deixam de se autoproclamar professores e passam a considerar-se (e a ser considerados), por exemplo: psicólogos, historiadores, sociólogos… Posteriormente, como licenciados, procuram, em primeira instância, exercer uma outra actividade laboral, que lhes proporcione um melhor salário, melhores regalias e maior prestígio social. Se, entretanto, não encontrarem esse emprego, então, vão dar aulas sem deixar de aguardar por uma nova oportunidade de emprego fora da docência.

Por seu turno, grande parte dos docentes dos ISCED têm de formar professores, quando, eles próprios, sendo ou não muito doutos numa determinada área do conhecimento, normalmente, não têm a necessária formação pedagógica para leccionar numa instituição de formação de professores. Assim sendo, não podem cumprir com o papel profissional que lhes cabe numa instituição específica para a formação de professores. Os próprios ISCED, de acordo com a Lei de Bases do Sistema de Educação, são ensino superior. Porém, são, também, instituições de formação de professores. Dependem do subsistema do ensino superior, mas não têm qualquer vínculo com o subsistema de professores.

As instituições de ensino médio normal

Os IMN e as Escolas do Magistério Primário, que deveriam ser alimentados em docentes pelos ISCED, com a falta dos mesmos partem para o recrutamento de professores estrangeiros ou, então, para o recrutamento apressado de ensinantes nacionais, que, acreditamos, podem dominar o conteúdo de ensino, mas não têm, normalmente, qualquer competência pedagógica para trabalharem numa instituição de formação de professores. Todavia, como dão aulas, mesmo não tendo o perfil profissional adequado, passam, também eles, a serem considerados professores/formadores, em pé de igualdade com qualquer outro profissional que dê aulas com a necessária formação académico-pedagógica.

Os professores que finalizam os IMN (ex-INE), tiveram como professores, na sua maioria, ensinantes que não são profissionais de ensino e, posteriormente, irão (ou não) – dependendo de possíveis outras oportunidades no mercado de trabalho – dar aulas, como professores, a crianças e adultos em escolas públicas e privadas. Mas, como os estudantes formados nos IMN que optam pela docência são, em cada ano lectivo, muito poucos para dar resposta ao número crescente de crianças que, obrigatoriamente, irão iniciar a vida escolar, recrutam-se jovens candidatos à docência sem qualquer preparação pedagógica e, muitas vezes com duvidosa certificação académica.

São muitos destes jovens, desencantados por não terem conseguido uma outra ocupação, que se candidatam à docência, trabalham logo de seguida nas escolas e ficam a aguardar por uma formação contínua, que lhes proporcione uma capacitação pedagógica. Assim, em cada ano lectivo, se vai “desenrascando” a situação, hoje minimizada com Zonas de Influência Pedagógica (ZIP’s).

A principal questão em jogo

Imaginemos uma Faculdade de Medicina onde haja professores que não sejam médicos; uma Escola de Enfermagem onde haja professores que não sejam médicos, nem enfermeiros; e um hospital onde os doentes são tratados por pessoas certificadas por essas hipotéticas instituições, onde, por vezes, nunca assistiram a aulas práticas, por falta de docentes para o efeito? Pense-se agora em “professores” (que a bem da verdade não o são) e que, de um momento para o outro, passam a dar aulas aos nossos filhos e netos?Mas, será que haveria outras alternativas para garantir, em cada ano lectivo, o funcionamento das instituições de ensino? Na conjuntura histórica, político-militar, económica e social que vivemos desde a independência, digo, sem qualquer hesitação, que não, pois só demagogicamente poderíamos dizer o contrário. O Brasil, por exemplo, independente desde 1822, tinha, ainda em finais da década de 80, professores leigos; ou seja, professores com apenas a 4ª série (4ª classe). Contudo, não podemos perder o pé do conhecimento das nossas reais dificuldades em matéria de docência, nem considerar que as situações provisórias de um determinado momento histórico deixaram, com o tempo, de ser atípicas para passarem a ser normais.

Estando a educação repleta de agentes de ensino que se formaram (ou não) como professores – uns desejosos de encontrarem uma outra ocupação profissional que lhes garanta um melhor salário e um maior prestígio social e, outros, apelidados de “professor” quando, na realidade, nunca o foram – o que fica em jogo? Apenas o desejo de se alcançar o mais rapidamente possível a qualidade de ensino.

Só através “do saber, do saber-fazer e do saber situar-se”, nos diferentes níveis de formação docente, se encontrarão os pré-requisitos indispensáveis para uma instrução adequada, pois cabe, em primeira instância, ao professor profissionalmente capacitado, como interventor social de excelência, preparar e formar crianças, jovens e adultos que, mais tarde, venham a participar, activamente, na vida produtiva, cultural e no exercício pleno da nossa cidadania.

Não se pondo em causa a competência profissional dos que são e dos que não são professores, das muitas questões ligadas à reforma educativa (reformulação em profundidade dos objectivos gerais da educação, programas escolares, conteúdos, métodos pedagógicos, estruturas e meios pedagógicos adequados a realidade angolana; melhoria das aprendizagens e enquadramento pedagógico dos alunos; formação inicial e em exercício dos professores; modernização e reforço da inspecção escolar; melhoria da qualidade e quantidade de manuais escolares; melhoria do trabalho metodológico e do processo docente educativo das escolas; garantia da participação da comunidade nos trabalhos da escola, isto é, a garantia da relação entre a escola e a comunidade; redução do analfabetismo e expansão do programa de recuperação do atraso escolar), um só aspecto polémico vem emergindo como descrédito da reforma educativa: o ensino primário em regime de monodocência.

A monodocência no ensino primário

Após a análise do perfil de muitos “hipotéticos” professores que leccionam no ensino primário, há afirmações que se manifestam contra a monodocência pelo facto de não haver ensinantes capazes de darem as áreas curriculares de todo o ensino obrigatório de seis classes. Eu diria, que, muitos desses ensinantes, em situação normal, nem sequer deveriam dar aulas. Contudo, como a reforma educativa é um processo em constante aperfeiçoamento, para além das ZIP’s, o apoio formativo e pedagógico aos agentes de ensino com maiores dificuldades terá de lhes ser proporcionado, através do emprego de princípios andragógicos na formação contínua e no uso de material de apoio sobre os conteúdos a ensinar e como os leccionar.

A monodocência no ensino primário, independentemente de quatro, seis, ou até mesmo, sete classes (como ocorre, hoje, em grande parte dos países subsaharianos e não só), obedece, entre outros aspectos: a razões de ordem psicopedagógica, tal como as metodologias de aprendizagem que estão em consonância com a psicologia do desenvolvimento e a psicologia das idades.

No Brasil, por exemplo, há um projecto da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro, que “está colocando um só professor para ensinar português, ciências, matemática e todas as disciplinas básicas no 6º ano (antiga 5ª série) do ensino fundamental. Pelo sistema tradicional de ensino, os alunos têm aula com um só professor até o 5º ano (antiga 4ª série) e, a partir do 6º, têm diversos professores, especializados nas disciplinas que leccionam. Actualmente, 53 turmas fazem parte do projecto, mas, no ano que vem, o sistema pode ser ampliado para todas as escolas da rede. Segundo a secretária Cláudia Costin, a ideia é adiar a transição, pois alunos com 11 anos são muito novos para passar pela mudança. Entre as vantagens do projecto, Costin aponta a criação de um vínculo afectivo mais forte entre aluno e professor. ‘O professor fica muito mais tempo com a turma.’ Para Ocimar Alavarse, professor da Faculdade de Educação da USP, o projecto também favorece a interdisciplinaridade. ‘Por ser apenas um professor vai forçar que articulações entre disciplinas seja mais presente.’ Quanto à formação segundo a secretária, apesar de não terem formação específica na área, os professores não têm problemas para ensinar os conteúdos. ‘Estamos falando de ensino fundamental. Não existe a hipótese de o professor não conhecer o conteúdo.’ Eles também têm auxílio de apostilas e recebem supervisão semanal. Para Maria Márcia Malavasi, da Faculdade de Pedagogia da Unicamp, é essencial que os docentes passem por cursos para saber ensinar os conteúdos. ‘É muito difícil um professor ter domínio de todas as áreas de conhecimento’, afirma. Malavasi levanta também a hipótese de o projecto representar ‘uma estratégia para baratear os custos com mão-de-obra na escola.’ A assessoria da secretaria disse que o projecto não tem a ver com economia, apenas com a questão pedagógica. [Luiza Bandeira (27 de Abril de 2011), No Rio um só professor ensina matemática, ciência e português, Folha de São Paulo, São Paulo].

* Ph. D em Ciências da Educação e Mestre em Relações Interculturais

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