INTRODUÇÃO
Há um ano, no Página Um, relembrei o 11 de Novembro de 1975 com um artigo que evidenciava o papel de Henry Kissinger em relação a Angola. O artigo não perde interesse, pelo contrário, pois a situação conjuntural em relação a África demonstra que com a criação do AFRICOM há a tendência para um aumento de tensões e conflitos, quando África tanto precisa de paz para tratar de suas velhas feridas e procurar seu próprio renascimento.
A INGERÊNCIA DE HENRY KISSINGER NO PROCESSO DE DESCOLONIZAÇÃO DE ANGOLA
MARTINHO JÚNIOR, Luanda
O processo formal da descolonização foi alvo de ingerências “sem fronteiras” a partir dos poderosos interesses que tinham à cabeça os Estados Unidos, tanto em Portugal quanto nas ex-colónias e muito em particular no caso de Angola.
Vencido o colonialismo português, África apresentou-se dividida, em função das diversas correntes que proliferavam no continente, em relação ao espectro de opções que se apresentava em Angola e não tinha, ou não queria ter, a noção exacta do que era um movimento de libertação moderno e do que era etno nacionalismo, conforme a qualificação justa do historiador francês René Pélissier, estudioso de Angola. (1)
Portugal no processo de descolonização, assumia posições contraditórias por exemplo em relação à UNITA de Savimbi, que conhecia muito bem da “Operação Madeira” no âmbito da Zona Militar Leste e no tempo da passagem do General Costa Gomes como Chefe do Estado Maior Geral por Angola. (2)
Os oficiais portugueses, sabiam o que significava etno nacionalismo (eles próprios, por exemplo, tinham contribuído para criar e explorar no início da insurreição armada a “figura aliada” dos “fieis bailundos” para fazer face à revolta da UPA no norte do país em 1961, tirando partido da migração forçada dos contratados do planalto central para as plantações de café) e a implantação da UNITA junto às nascentes do Lungué Bungo foi providencial para utilizar essa organização que se apresentava no início muito limitada, integrando-a nos seus dispositivos como uma almofada amortecedora contra a tentativa de progressão das colunas do MPLA a partir das fronteiras da Zâmbia, país onde possuía as bases de retaguarda da sua Frente Leste.
Os racistas sul africanos, aproveitando-se desse passado, “cooptaram” Savimbi logo no “pontapé de saída” que constituiu a “Operation Savannah”, a sua “contribuição” mais volumosa para a “guerra de Kisssinger” e isso não era desconhecido de John Stockwel, que a 20 de Agosto de 1975, por influência de Tiny Rowland da Lonhro, se encontrou com Savimbi no Kuito.
Em Setembro de 1975, em resposta aos Generais van den Berg e Viljoen, Savimbi solicitou ajuda para treinar e armar a UNITA, integrando as iniciativas militares sul africanas a partir da fronteira sul.
Foi também relativamente contraditório em relação à FNLA, pois conhecia-a nos seus múltiplos relacionamentos que tiravam partido do atendimento do regime de Mobutu em Kinshasa (os serviços diplomáticos e de inteligência portugueses na capital do então Zaire, estavam próximos das instalações da FNLA e muitas vezes uns e outros até se cruzavam na rua, como nos salões de contingência)…
Entre os diplomatas portugueses que passaram em serviço por Kinshasa, contam-se António Monteiro e Durão Barroso, que viriam a estar presentes noutros cenários futuros… (3)
Segundo Peter Stiff, em “The Silent War” (página 104), a FNLA “requisitou a ajuda das SADF em Julho de 1975” por intermédio de “canais diplomáticos Franceses” o que, com a disponibilidade de Savimbi, influenciou na tomada de decisão da “Operation Savannah”.
Como os antifascistas portugueses permitiram confundir movimento de libertação e etno nacionalismo, na esteira aliás do que ocorria em África?
Se não foram eles que confundiram, quem e a partir de que correntes e influências assumiu esse encargo em Portugal?
Que conjunturas em Portugal favoreceram que outros assumissem preponderância no processo de “trespasse” de Angola, ao invés de contribuírem para o legítimo processo de independência?
O engenho inicial da “operação de trespasse” coube a Mário Soares, que levou por diante a iniciativa de Alvor em Janeiro de 1975 e por isso Portugal abriu espaço à ingerência externa, minando a sua própria posição em relação ao processo de descolonização, perdendo o controlo dos acontecimentos muito antes do 11 de Novembro e “lavando as mãos” como Pilatos, enquanto assistia à maior operação de retorno de nacionais que alguma vez teve oportunidade de assistir, suportada em grande parte pelas finanças e pelos interesses norte americanos. (4)
Mário Soares deu oportunidade a Henry Kissinger fazer privilegiar em Angola os termos da Guerra Fria, apesar das infrutíferas contrariedades internas que ele teve de enfrentar, entre elas as posições de Everett Ellis Briggs e Robert W. Hulstlander, respectivamente Cônsul dos Estados Unidos em Angola (ainda sob bandeira portuguesa) e chefe da antena da CIA em Luanda (imediatamente antes da independência). (5)
Os dois emitiam um juízo favorável ao MPLA, aproximando o seu argumento ao do historiador francês René Pélissier: para eles era evidente que se deveria levar em consideração que o MPLA detinha mais quadros que os outros e estaria à partida em melhores condições humanas para levar por diante as tarefas dum novo estado.
Em Portugal, Frank Charles Carlucci preparou pela via de Mário Soares, os pressupostos para a “guerra de Kissinger”, alheando-se dela para que isso permitisse dar oportunidade ao seu papel nas operações encobertas que se iriam suceder nas décadas seguintes e até aos dias de hoje em Portugal, em Angola, na Europa e em África, tirando partido de influências crescentes que gravitavam ou à sua volta ou sob sua batuta.
Sem chocar com Henry Kissinger, Frank Charles Carlucci traçou uma estratégia operativa que na direcção de Angola, se não resultou durante a Guerra Fria, soube tirar imediato proveito com a globalização neo liberal. (6)
De acordo com notícias, Frank Charles Carlucci este ano viajou pelo menos três vezes para Luanda, onde o Carlyle Group tem interesses em parceria com a SONANGOL.
A partir de Alvor, ficou desenhada a corrida para “ganhar” a independência de Angola e Henry Kissinger usou todos os componentes disponíveis para além da FNLA (suportado pela CIA conforme testemunho de John Stockwell) e da UNITA, (“aproveitada” pelos racistas sul africanos): as “Forces Armées Zairoises” (na direcção de Luanda e de Cabinda), assessores da República Popular da China, mercenários portugueses sob o comando de Santos e Castro e enquadrados no “ELP”, mercenários norte americanos e britânicos recrutados à pressa nos seus países de origem, as “South Africa Defence Forces” com um efectivo que englobava desde elementos da ex PIDE/DGS (incluindo antigos Flechas do Inspector Óscar Cardoso, um elemento que não era estranho a Mário Soares), até angolanos originários da FNLA e dos grupos de Chipenda, aproveitando o papel de Daniel Chipenda na Revolta do Leste e da sua trajectória após ela, até suas próprias forças originárias da África do Sul.
Ciente da “arquitectura” de Henry Kissinger, o MPLA solicitou ajuda aos seus aliados, alguns deles já antes empenhados na luta de libertação em Angola.
Os cubanos estavam com o MPLA desde 1965, quando o Che fez uma das suas passagens por África e se decidira pela criação de duas colunas: uma comandada por ele mesmo reforçando os seguidores do desaparecido Patrice Lumumba em luta contra o neo colonialismo no leste do Zaire, a outra em Brazzaville, sob o comando de Jorge Risquet, que apoiava o governo Congolês e contribuiu para o treino e o incentivo da guerrilha do MPLA na sua luta contra o colonialismo português.
O Comandante Fidel de Castro tomou a iniciativa através do reforço do MPLA no âmbito da “Operação Carlota”, colocando a URSS perante um facto consumado e obrigando os socialistas ao apoio. (7)
A combinação angolano – cubana, apoiada pelos países socialistas entre eles a Jugoslávia e a RDA para além da URSS, acabou por se sair bem em todas as frentes:
- Impediu as “FAZ” de tomarem Cabinda, derrotando todas as suas sucessivas tentativas.
- Impediu as forças sob bandeira da FNLA em chegar à capital através do “funil” de Quifangondo, com forças provenientes do norte do território Zairense onde o navio “American Champion” havia descarregado em Matadi o material colocado à disposição pela CIA.
- Impediu sob a bandeira da UNITA que, no âmbito da “Operation Savannah” as “South Africa Defence Forces” passassem do Ebo, ou tivessem oportunidade de romper em direcção ao Dondo, com o objectivo de tomar a barragem de Cambambe e com isso colocar pelo menos a capital sob “cheque”, mesmo que não a conseguissem conquistar.
Essas três derrotas conjugadas, impediu que os norte americanos desencadeassem a segunda fase das operações: partindo do pressuposto da tomada de Luanda, uma força tarefa anfíbia da US Navy tendo como navio almirante o porta aviões USS Independence, foi impedida de entrar em acção em benefício das influências agenciadas e empenhadas nos combates.
Henry Kissinger não conseguiu alcançar os objectivos em Angola, o peso de sua aliança com o regime do “apartheid” ficava evidente e a sua posição internacional no continente sairia bastante desprestigiada.
Só pela sua iniciativa em Angola, Henry Kissinger merecia ser julgado por crimes contra a humanidade, conforme teve a coragem de considerar Christopher Hitchen em “The Trial of Henry Kissinger”.
O argumento da Guerra Fria socorria-o face à derrota e por isso ele iria continuar a utilizá-lo em África, transmitindo esse “ensinamento” aos principais “lobbies” tanto dos republicanos quanto dos democratas.
Os chineses, perante a evidência da intervenção dos racistas sul africanos acabariam por desaparecer da cena angolana, pelo menos nos termos em que eles se envolveram a partir do seu relacionamento com o regime de Mobutu e com a administração Ford.
Quer a FNLA quer a UNITA sairiam momentaneamente derrotadas, mas a presença dos regimes do “apartheid” e de Mobutu nos contenciosos da África Austral, marcariam por várias décadas as ingerências nos assuntos internos de Angola, utilizando-se de suas alianças angolanas.
Uma das emblemáticas batalhas que foi decisiva para o revés da grande manipulação norte americana em relação à independência de Angola, inibindo os interesses que se conjugavam no sentido dum simples “trespasse” (que poderia equivaler ao surgimento de algo parecido com um “bantustão”) foi a do “funil” de Quifangondo. (8)
Martinho Júnior - 10 de Novembro de 2009.
Nota:
- (1) – O francês com uma paixão pela África Portuguesa – http://br.groups.yahoo.com/group/dialogos_lusofonos/message/14847 ; http://dn.sapo.pt/inicio/interior.aspx?content_id=655365 ; As Campanhas coloniais de Portugal – António Aniceto Monteiro Blog – http://antonioanicetomonteiro.blogspot.com/2007/06/ren-plissier-as-campanhas-coloniais-de.html ; Livros de René Pélissier – http://www.planetanews.com/autor/RENE%20PELISSIER
- (2) – “Operação Madeira – Pezarat Correia – O Arauto – http://pchila.blogspot.com/2006/06/operao-madeira-do-exrcito-portugus.html ; Savimbi - Libertário Viegas – Angola Xiami – http://www.angolaxyami.com/Opiniao/Conhecer-os-protagonistas-da-Guerra-de-Africa-Jonas-Malheiro-Savimbi-por-Libertario-Viegas.html ; Confirmado acordo de tréguas em 1972 entre o exército português e a UNITA em Angola – Público – http://www.publico.clix.pt/Pol%c3%adtica/confirmado-acordo-de-treguas-em-1972-entre-o-exercito-portugues-e-a-unita-na-guerra-de-angola_1378779 ; UNITA - Guerra Colonial – http://www.guerracolonial.org/index.php?content=162 ; Militares portugueses confirmam acordo com a UNITA antes da independência de Angola – África 21 – http://www.africa21digital.com/noticia.kmf?cod=8416695&indice=20 ; Leste de Angola – http://lestedeangola.weblog.com.pt/arquivo/270291.html
- (3) – António Monteiro – Biografia – Euro Spot – http://www.eurohspot.eu/site/index.php?option=com_content&task=view&id=291&Itemid=64 ;
- (4) – Reencontro histórico Soares Carlucci – Xatooo – http://xatooo.blogspot.com/2006/09/reencontro-histrico-soares-carlucci.html ; Soares & Carlucci – Aprender com a história – Tribuna Socialista – http://militantesocialista.blogspot.com/2006/09/soares-carlucci-aprender-com-histria.html ; O acordo de Alvor foi apenas um pedaço de papel – Almeida Santos – Angonotícias – http://www.angonoticias.com/full_headlines.php?id=3717 ; Kissinger admite que errou em Angola – Elio Gaspari – Mnotícias – http://www.mnoticias.8m.com/folha.htm
- (5) – Estados Unidos – Angola – Trinta anos depois o desembarque – I – http://pagina-um.blogspot.com/2009/06/estados-unidos-angola-trinta-anos.html ; Carlucci vs Kissinger – Os EUA e a revolução Portuguesa – Bernardino Gomes e Tiago Moreira de Sá – Maria Manuel Cruzeiro – http://caminhosdamemoria.wordpress.com/2008/11/25/%C2%ABcarlucci-vs-kissinger%C2%BB/
- (6) – Artur Albarran detido por branqueamento de capitais – DN – http://dn.sapo.pt/inicio/interior.aspx?content_id=603946 ; Carlucci vs Kissinger – os EUA e a Revolução Portuguesa – O outro lado da notícia – http://outroladodanoticia.wordpress.com/2008/10/03/livro-mostra-trama-da-cia-em-portugal-apos-%E2%80%9Crevolucao-dos-cravos%E2%80%9D/ ; Discurso De Fidel – 19 de Abril de 1976 – http://www.cuba.cu/gobierno/discursos/1976/esp/f190476e.html
- (7) Operação Carlota – Gabriel Garcia Marquez – Granma – http://granmai.co.cu/portugues/2005/noviembre/juev3/45carlota.html ;
- (8) – General destaca a importância da batalha de Kifangondo para o alcance da independência – ANGOP – http://www.portalangop.co.ao/motix/pt_pt/noticias/politica/2009/10/46/General-destaca-importancia-batalha-Kifangondo-para-alcance-Independencia,221a9975-f73f-41ef-a5d3-7ec478ff0af7.html ; Monumento à batalha de Kifangondo – Angola Bela – http://www.angolabelazebelo.com/2009/09/luanda-monumento-batalha-de-kifangondo.html
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