quinta-feira, 3 de novembro de 2011

O COMPLEXO DO BEIJA-MÃO




Flávio Aguiar - Correspondente da Carta Maior em Berlim

O colunista da Folha Sergio Malbergier sugeriu que a presidenta Dilma estaria substituindo o “complexo de vira-lata” pelo de “poodle”, ao fazer exigências à União Européia na cúpula do G-20. Na verdade, a crítica do jornalista é um perfeito exemplar de outro complexo tipicamente brasileiro, o "do beija-mão", ideologicamente de direita e que assola a vida nacional desde os tempos coloniais.

Berlim - Muito se tem falado recentemente sobre o “complexo de vira-lata”, metáfora do sentimento brasileiro criada por Nelson Rodrigues, para se referir à política externa brasileira. Hoje, de maneira deselegante, o colunista da Folha Sergio Malbergier sugeriu que a presidenta Dilma Rousseff poderia estar substituindo este complexo pelo de “poodle”, ao fazer exigências à União Européia perante a cúpula do G-20.

A esquerda acusa a direita de “complexo de vira-lata” por esta querer que o Brasil se diminua perante as potências ocidentais. A direita acusa a esquerda do mesmo, e o governo brasileiro, por achar que ambos defendem um “terceiro-mundismo mofado”. Para mim, a razão nestas acusações fica com a esquerda, não com a direita, pelo fato de que, entre ambos os argumentos, coloca-se um outro complexo, que assola a direita em matéria de política externa, que é o "complexo do beija-mão".

O complexo do beija-mão é algo que assola a vida brasileira desde os tempos coloniais, e que consiste em pensar que o que se consegue na vida não se deve aos próprios méritos, mas sim ao favor dos poderosos. É um capítulo interessante da ideologia do favor, que tanto governou e nos governa ainda.

Para esse complexo, é um absurdo o Brasil se mostrar ostensivamente independente das potências ocidentais, a ponto de criticar algumas delas em público, como no caso do G-20, em que a presidenta Dilma vai cobrar medidas mais duradouras e anti-recessivas da bancada européia. É também absurdo o Brasil não se alinhar costumeiramente aos Estados Unidos. Por quê? Porque assim perderemos o beneplácito dos poderosos, e não teremos as vantagens comerciais que poderíamos ter. Como se o mundo comercial de hoje fosse regido por esses favores do beija cá dá lá.

Mas não só isso. Devemos adular também os pequenos emergentes. Para esse complexo, o Brasil errou redondamente ao não se alinhar ao neogoverno da Líbia, porque agora, nas prebendas que serão distribuídas como botim depois do bárbaro linchamento de Gadafi (que deveria ter sido julgado em Haia), não teremos parte alguma. Como se as potências bombardeiras deixassem algum espaço espontâneo para quem beijasse as mãos suas ou de seus apaniguados. A diplomacia brasileira – e nisso acerta – aposta em outra coisa, na multilateralidade de sua abordagem da cena internacional, tanto do ponto de vista comercial como do político.

Porque assim é o mundo contemporâneo: multilateral, não mais bi nem unipolar. É claro que existem considerações de natureza ética na política internacional. Apoiar uma resolução do Conselho de Segurança da ONU sobre uma “no-fly zone” na Líbia que vai servir na verdade para bombardear um dos lados da questão em detrimento de outro, inclusive para matar o líder desse lado em questão, não é ético. Além disso, não é pragmático: o Brasil perderia o perfil que vem laboriosamente construindo num mundo multi-lateral que inclui, além do Ocidente em crise monetária, fiscal, econômica e política, os BRICS, o G-20, a América Latina, a África subsaariana, o Oriente Médio, para dizer o mínimo e o máximo.

Tudo isso remonta a dizer que o mundo íntimo da nossa direita é completamente anacrônico. Ele não consegue visualizar a estatura que o Brasil atingiu na cena internacional. Também não consegue visualizar a própria cena internacional, que é bem mais complexa do que um jogo de mocinho e bandido ou de gato e rato.

Uma última observação. Toda a ironia tem dois gumes, a gente sabe. É bom lembrar que na época em que Nelson Rodrigues criou a metáfora do “complexo de vira-lata” o modelo ideal de cachorro era o pastor alemão, de triste memória (o modelo ideal, não o cachorro que, deixado a seu instinto, é de índole boa e pacífica).

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