António Pedro Dores – Liberal, colunistas
Se um grupo de gente se decide suicidar, aqueles de entre eles que prefeririam não o fazer podem escolher? Em qualquer caso, uma democracia poderá lidar com uma tal situação?
Há casos conhecidos de seitas cujos chefes decidiram suicidar-se. E porque gostavam de ir acompanhados, tomaram a decisão por todos os membros da comunidade. E a maioria seguiu-os. É isso compatível com uma democracia?
A democracia não é só o voto. Há casos em que perante uma assembleia de eleitores as alternativas são a do profeta da desgraça e a do profeta da treta, qual polícia bom – polícia mau que mudam e posição de modo a dominarem a sua vítima. Tomando o exemplo português, é precisamente isso que tem acontecido desde o discurso da tanga. É essa uma situação compatível com uma democracia?
Em Portugal as vozes anti-democráticas nunca se deixaram de ouvir e de se encontrarem para construírem as suas sociedades secretas, nos corredores do sistema que os encobre e que pagam para os encobrir (são, entre outros, os chamados empresários do regime). Mas nunca se ouviram tanto como actualmente, à medida que o processo de “desmocratização” na Europa reclama por actividade política em Portugal. E essas vozes estão no poder. Como disse Cravinho por várias ocasiões, a corrupção é um assunto de Estado ao mais alto nível, porque é lá que estão os actores dominantes.
Hoje é perfeitamente claro o que ele quer dizer: os fundos de capitais roubados não têm fundo e os contribuintes que vivem em Portugal estão a ser chamados a pagar as dívidas dos vigaristas que tomaram conta da política e do Estado. A coisa chegou a tal ponto que, como acontece com qualquer pessoa vigarizada por pessoas a quem estima, são as próprias vítimas que acham que não há alternativa ao suicídio nacional para, em verdade, manter os benefícios possíveis aos beneficiários do sistema nas últimas décadas (muitos deles já beneficiários de décadas anteriores também).
Diz Teixeira dos Santos que não se pode criminalizar os políticos pois assim nunca mais ninguém quereria assumir responsabilidades. Dizem outros que é pouco democrático falar de classe política, porque afinal são cidadãos como outros quaisquer. Mesmo os políticos da oposição crónica, os que estão fora do arco do poder – por alegadamente serem pouco fiáveis do ponto de vista das suas crenças democráticas, a ponto de os segredos de Estado lhes serem vedados, apesar dos estatutos políticos e administrativos que possam ter – reclamam contra a denúncia implícita na expressão classe política. Não seria preferível reclamarem pela democracia e demarcarem-se politicamente , denunciando-as, as farsas que temos vivido?
A questão é esta: quem quer a democracia? Será compatível a democracia com o suicídio colectivo? Ainda por cima um suicídio cobarde, em que primeiro se deixam morrer à fome e por falta de assistência na saúde os mais frágeis, mantendo os profetas da desgraça (ou do sucesso – eles são os mesmos!) os respectivos níveis de vida e boas perspectivas no futuro, seja por já serem membros da classe política, seja porque aspiram a integrá-la.
Há sim uma classe política: é constituída pelos circuitos de corrupção apoiados e encobertos por seitas secretas que dominam complexos institucionais centrados em partidos, comunicação social, empresas de advogados, bancos, construção civil e monopólios sectoriais. Quem não quiser misturar-se com ela que se afaste (denunciar entra no ruído mediático como qualquer outro sabonete). Essa classe política é representante do país na EU, ela própria pouco interessada na democracia e muito atenta à defesa de privilégios, a começar pelos seus próprios funcionários e gestores. Reformas mais cedo e salários mais altos. E para que não restem dúvidas, a EU prepara-se para decretar (como se isso fosse legítimo) a inimputabilidade criminal dos seus colaboradores. É como se o regime nazi viesse decretar a inimputabilidade dos seus partidários na esperança de que quando a coisa estoirasse tivessem uma base legal de argumentação.
É a mesma lógica com que os EUA aprovam os tratados internacionais sob a condição de eles não implicarem nenhumas consequências punitivas para os cidadãos ou instituições norte-americanas. É a mesma lógica pós-democrática (é mais moderno do que anti-democrática) que está a tornar o mundo ocidental irrespirável e alvo de uma saudável e persistente contestação dos indignados.
Não, não vivemos em democracia pela singela razão de que isso não existe. O que há, isso sim, são processos de democratização, como aquele que Portugal viveu a partir de 1974. Apesar de todas as complicações e apreciações que se fazem do período da revolução, ninguém jamais se atreveu a dizer que não era e não foi um período de democratização. O que não quer dizer que fosse um período de vigência da democracia, precisamente porque houve vítimas das injustiças que ocorreram nesse tempo. A diferença é que hoje ninguém quer saber das injustiças e todos se querem convencer que se vive a democracia, como se nunca mais isso pudesse ser alterado. Como se a democracia pudesse ser compatível com o suicídio selectivo e consciente dos mais fracos e nos bastasse tapar o nariz para nos convencermos de que tudo vai no melhor dos mundos possível.
Aos democratas resta insistir em afirmar que a ordem de suicídio não é democrática, ainda que sufragada por votos: nenhuma maioria pode condenar nenhuma minoria, em democracia. Se 25% dos portugueses ou 60% (é indiferente) aceitam deixar morrer 1% ou 5% da população sob a nossa responsabilidade colectiva, com o pretexto de agradar aos credores dos vigaristas que traficaram e continuam a traficar dinheiro para os seus próprios bolsos, por muito que a comissão eleitoral, os dirigentes partidários, o tribunal constitucional e o presidente se ponham de acordo para dizer que as instituições estão a funcionar, cabe aos democratas mostrar que isto está nos antípodas do que seja uma democracia (o Salazar, nesse caso, também foi um democrata: como o nosso Estado actual, era sério com as finanças e impunha a sua vontade nas urnas).
Hoje os nossos manda chuva não são nacionalistas, como o foi Salazar. Mas estão, como ele estava, preparados para matar tantos portugueses quanto necessário para manterem as fontes de rendimento do Estado ou de quem dele se apossou. A democracia denunciou isso, para o caso do Salazar. Precisa de ser capaz de denunciar o mesmo no caso desta república que já nem banana tem.
O problema, então como agora, é encontrar democratas.
ANTÓNIO PEDRO DORES - antonio.dores@iscte.pt
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