MANUEL MARIA CARRILHO – DIÁRIO DE NOTÍCIAS, opinião
Nada previram a tempo. Nada diagnosticaram com lucidez. Nada propuseram com realismo. Nada concretizaram com eficácia. É este o retrato das elites europeias, que são hoje, natural e muito justamente, objecto de uma cada vez maior e mais generalizada desconfiança. Desconfiança que corrói a legitimidade dos dirigentes e aumenta o desespero dos cidadãos
O tsunami político que ameaça a Europa não é, em rigor, o da crise do euro, mas o da progressiva deslegitimação das elites políticas e financeiras que a têm governado nos últimos anos, e que se têm revelado incapazes de estar à altura das circunstâncias e das suas responsabilidades.
Numa crise, seja ela qual for, a eficácia da resposta depende sempre da correcção do diagnóstico. Um erro de diagnóstico atrasa ou complica. Vários erros de diagnóstico podem inviabilizar qualquer tratamento ou solução. Ora, a generalidade dos líderes europeus persiste numa grave sucessão de erros de diagnóstico, como já todos nos apercebemos. Primeiro, consideraram a crise dos subprime como estritamente americana. Depois, viram na crise grega um caso pontual de mero laxismo. A seguir, olharam para a crise das dívidas soberanas como um acontecimento típicos dos países periféricos. Por fim, interpretaram a generalizada crise do euro como um problema de insuficiente integração e disciplina orçamental.
Esta sucessão de erros de diagnóstico - que nunca foram reconhecidos como tal - foi entretanto sendo reforçada por uns singulares Conselhos Europeus que, de cada vez que se reuniram, anunciaram sempre soluções "fantásticas" e "definitivas", mas que raramente resistiram mais do que dois ou três dias de contacto com a realidade. Conselhos Europeus estes que se limitaram sempre aos aspectos orçamentais da crise, deixando obstinadamente de lado as vertentes que estão na origem do agravamento da crise, sejam elas financeiras, económicas ou políticas.
Basta ter presente, para se avaliar o grau de autismo que hoje atinge a nomenclatura europeia, o simples facto de nenhuma das decisões das duas últimas cimeiras (de 21 de Julho e de 26 de Outubro) ter sido objecto da mais elementar concretização. E o famoso FEEF (Fundo Europeu de Estabilização Financeira), criado para fazer face à crise, continua a ser em grande parte uma hermética fantasia, apesar dos anúncios que lhe atribuem milhares de milhões, tendo-se chegado a garantir habilitá-lo, em Outubro, com um bilião de euros. A situação é tal que, na reunião da semana passada, os ministros das finanças da Zona Euro acabaram por decidir recorrer, se for preciso, ao FMI, a que o dinheiro seria emprestado pelo... BCE!..
Os responsáveis europeus têm passado ao lado do essencial, Ignorando, por um lado, que se trata de uma crise sistémica e civilizacional decorrente da globalização e do fim do paradigma do ilimitado: de recursos, de consumo, de crédito, etc. E, por outro lado, que a crise europeia só se avolumou até ao ponto que hoje conhecemos devido ao seu modelo de governação, com níveis de indecisão, de incapacidade e de impotência nunca vistos, que acabaram por fragilizar ainda mais os débeis alicerces do euro.
O que surpreende - e, na verdade, assusta - é que o Conselho Europeu, que hoje e amanhã se reúne em mais uma cimeira "decisiva", persista nos diagnósticos e insista na linha de respostas que nos conduziram aqui. O anúncio conjunto de Merkel e Sarkozy de um novo tratado, feito na segunda-feira em Paris, não é mais do que um novo passo na deriva europeia dos últimos tempos.
Porque apenas retoma e endurece o que já se encontra no Pacto de Estabilidade e Crescimento, e que ninguém, incluindo a França e a Alemanha, cumpre. Porque representa a crescente vassalagem de Sarkozy a Merkel, abandonando todas as ideias que tinha defendido nos últimos meses, fazendo-o por mero cálculo político interno tendo em vista as eleições presidenciais de Abril do próximo ano, que se anunciam calamitosas para ele. Porque dá continuidade à cegueira do directório franco-alemão, anunciando assim o fim da Europa que conhecemos, seja ao liquidar qualquer sentido colegial e solidário a uma União europeia de 27 Estados membros, seja ao ignorar completamente o papel da Comissão - que tem, é preciso não o esquecer, como obrigação a defesa do interesse comum europeu -, seja ainda ao furtar-se à sua legitimação democrática.
É hoje óbvio, sobretudo depois do anúncio da perspectiva de baixa de rating de toda a a Zona Euro, que a crise das dívidas soberanas não está ligada aos défices dos países periféricos, mas ao próprio euro e a (des)overnação europeia. E é também claro que a solução para a crise passa, em primeiro lugar, por estabelecer rapidamente um dique, através da intervenção do BCE, à especulação que se alimenta do diferencial dos juros da dívida na Zona Euro. Depois, por trabalhar simultaneamente nos planos do crescimento e da legitimação, abrindo um grande debate europeu que faça o balanço destes anos. Por fim, se se avançar com um novo tratado, tem que se deixar muito claro desde o princípio que ele será submetido a um referendo simultâneo em toda a União, que não só "crie" o povo europeu mas também defina uma estratégia da Europa no mundo à altura dos seus imensos trunfos e das suas múltiplas - mas tão esquecidas - capacidades e potencialidades.
Sem comentários:
Enviar um comentário