terça-feira, 3 de janeiro de 2012

CHEIRO A CANELA




António Marinho Pinto – Jornal de Notícias, opinião

Em finais dos anos oitenta ou inícios da década de noventa, nas alegações finais de um julgamento em Lisboa, apresentei-me, como sempre gostei de o fazer na capital, como um advogado de província e provinciano. Logo o juiz, um jovem e simpático magistrado, veio em meu próprio socorro, contradizendo-me com bonomia e considerando que eu não precisava de ser tão severo comigo mesmo. Esclareci então que, ao contrário de Fernando Pessoa, para mim o termo provinciano não era depreciativo, bem pelo contrário, até era elogioso, porque - enfatizei - «nós na província distinguimos bem os provincianos dos parolos». Acrescentei que um parolo nunca se imagina como tal, pois, pensa que é superior aos outros, julgando-se sempre muito moderno, muito esperto e muito cosmopolita. E concluí: «Lá na província já quase não há parolos porque eles vêm quase todos para Lisboa, atraídos pelos néons ou pelo cheiro a canela que ainda subsiste por aqui». O juiz sorriu com um olhar breve e logo reassumiu o ar grave de quem condena e absolve, ciente, como eu, de que durante o julgamento ambos detectáramos um espécime do género.

Recordo ainda um outro episódio ocorrido posteriormente e que é também algo elucidativo da minha dificuldade em me relacionar com a grande metrópole. Um velho contemporâneo na Universidade de Coimbra que ocupava um alto cargo na administração pública convidou-me para almoçar. O almoço, que teve lugar num dos restaurantes mais caros de Lisboa, destinava-se a «vender-me» uma qualquer intrigalhada político-jornalística. O repasto decorreu com cordialidade e jovialidade, apesar de ele cedo ter percebido que eu não lhe «adquiria a mercadoria». No final, quando veio a conta, ambos fizemos o gesto de puxar da carteira e antes que eu tivesse tempo para propor o pagamento a meias, como nos bons velhos tempos, ele reteve-me com um gesto firme e, num tom algo teatral, determinou que ele é que pagava, sacando de um cartão de crédito do estado. Não gostei nem do gesto nem do tom e respondi-lhe com rudeza: «pagas tu, não! Pagas tu e eu porque 40% do plafond desse cartão de crédito é dinheiro meu, que é a percentagem que o governo me cobra de IRS todos os anos. Ele ainda fez um esgar de quem iria ripostar, mas optou por um sorriso forçado rematado com uma frase do género: «Vejo que não mudaste nada». Despedimo-nos com um abraço e promessas de contactos futuros, mas até hoje não nos voltámos a encontrar, já lá vão mais de quinze anos.

Tenho por Lisboa sentimentos contraditórios. Por um lado, gosto muito da cidade, da sua luz, da sua paisagem urbana, da sua fisionomia arquitectónica. Lisboa é uma das cidades mais bonitas do mundo. Gosto muito dos verdadeiros lisboetas - os alfacinhas - que resistem dentro da cidade às investidas do progresso e do desenvolvimento que os querem varrer para os subúrbios ou para os dormitórios da periferia. Mas não sou capaz de viver em Lisboa. Já tentei, mas nunca me dei bem com as suas regras. Por isso, mesmo agora, regresso todas as sextas feiras a Coimbra.

Sempre me recusei a aceitar a ideia de que, afinal, os encantos secretos com que a capital amansa os ímpetos mais regionalistas resultam apenas da circunstância de ser aí que se parte e reparte o bolo do orçamento de estado. Mas, não tenho alternativa. A facilidade (e impunidade) com que se esbanja dinheiro em Lisboa é confrangedora. E o dinheiro atrai ainda mais do que os néons e a canela. O centralismo e a macrocefalia lisboetas que asfixiam o país não são mais do que o resultado de opções concretas de pessoas, a grande maioria das quais nem sequer é de Lisboa. É essa espécie de estrangeirados que dá à cidade os tiques de capital do império. Tais degenerescências não resultam, afinal, de nenhum desígnio demoníaco, mas sim da incapacidade da província em gerar elites que combatam essas perversões com coerência. Se exceptuarmos o futebol, Lisboa hegemoniza (centraliza) praticamente tudo o que é relevante em Portugal. E o segredo desse sucesso está em atrair aqueles que na «província» mais se destacam no combate à sua macrocefalia, pois, dando-lhes algum poder e/ou algum dinheiro, logo passam a ser os principais defensores do statu quo. Pelo menos assim tem sucedido até hoje.


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