quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

A JUSTIÇA ESPANHOLA NO BANCO DOS RÉUS


Garzon teve a coragem de querer levar à justiça os crimes da ditadura franquista

Flávio Aguiar - Correspondente da Carta Maior em Berlim

A Justiça Espanhola está duplamente no banco dos réus. No banco propriamente dito estará o juiz Baltasar Garzón Real. Mas o próprio Tribunal estará sob o crivo de um julgamento, porque a motivação política das acusações contra Garzón é inequívoca. Garzón enfrenta três processos simultâneos abertos contra ele. Finalmente, comenta-se na Espanha, alguém vai ao banco dos réus por causa dos assassinatos cometidos durante a ditadura de Franco: o juiz que decidiu investigá-los. O artigo é de Flávio Aguiar

A partir desta quarta-feira a Justiça Espanhola está duplamente no banco dos réus. No banco propriamente dito estará o juiz Baltasar Garzón Real. Mas o próprio Tribunal estará sob o crivo de um julgamento, porque a motivação política das acusações contra Garzón é inequívoca.

Baltasar Garzón tornou-se mundialmente conhecido ao pedir a extradição do ex-ditador Augusto Pinochet, que fazia tratamento médico em Londres, para ser julgado na Espanha pelo assassinato de cidadãos espanhóis no Chile, durante o período ditatorial. Inicialmente a Inglaterra deteve Pinochet, que foi liberado depois. Mas o fato dele ter sido preso mostrou que não era invulnerável como pensava e se pensava, além de ter sido uma humilhação para ele e para a ex-primeira ministra Margaret Thatcher, sua amiga pessoal, que o apoiou.

Outra ação de Garzón com repercussão mundial foi movida contra personalidades norte-americanas do governo Bush pelo uso da prisão de Guantánamo para torturas e pelo seqüestro, em outros países, de acusados de práticas terroristas. A base para esse processo – depois arquivado por pressão do governo norte-americano – foi o seqüestro do chamado “Talibã Espanhol”, Hamed Abderrahman Ahmed, nascido em Ceuta, enclave da Espanha no norte da África. Assinale-se que ele também abriu investigações sobre a atuação de membros da Al-Qaeda na Espanha, bem como sobre o movimento basco ETA, acusado de terrorismo.

Garzón enfrenta agora três processos simultâneos abertos contra ele. O primeiro, que agora entra em julgamento, o acusa de prevaricação e abuso de poder na investigação sobre o chamado “caso Gürtel”. “Gürtel” é um codinome; quer dizer “cinto” em alemão, e se refere a um dos principais acusados, Francisco Correa. Trata-se de um caso de investigação sobre corrupção e tráfico de influência na obtenção de contratos públicos em Madri e em Valencia.

Os principais acusados – os empresários Correa e Pablo Crespo – estão na prisão. Porém o caso envolve altos membros do conservador PP – Partido Popular – hoje no poder. Um dos acusados era tesoureiro nacional do partido, Luis Bárcenas, braço direito do atual primeiro ministro, Mariano Rajoy. Este, aliás, não poupa críticas a Garzón, e está sob o risco das investigações respingarem nele. Em tempo: Correa era freqüentava a casa de José Maria Aznar, o antigo líder e primeiro ministro do PP, tendo sido convidado para o casamento de sua filha.

A acusação contra Garzón se refere ao fato dele ter pedido escutas e gravações das conversas entre Correa e Crespo com seus advogados. Os acusadores dizem que isso visava obstaculizar a estratégia da defesa. Garzón alega que a autorização visava descobrir o paradeiro de 20 milhões de euros do esquema de corrupção, distribuídos por bancos suíços e de outros paraísos bancários ou fiscais, e deter o esquema de lavagem de dinheiro posto em prática pela quadrilha.

Na audiência de quarta-feira, segundo o jornal El País (aliás, as reportagens desse jornal sobre esse “caso Gürtel” lhe valeram o Prêmio Ortega y Gasset de Jornalismo Investigativo em 2010, um dos mais prestigiosos da Espanha), Garzón revelou que mandou extirpar das transcrições das conversas tudo o que se referia à estratégia da defesa, só mantendo o que dizia respeito à questão da lavagem e remessa de dinheiro para o exterior.

Também foi citado o fato de que o juiz que o sucedeu no caso (de sobrenome Pedreira) confirmou a autorização das escutas, e que estas foram julgadas legais pelo Superior Tribunal de Justiça de Madri. Também lembrou-se que Garzón agiu a pedido da Polícia Judiciária e da Agência Fiscal Anticorrupção.

Segundo a análise da reportagem do El País sobre a audiência, Garzón portou-se com uma desenvoltura que surpreendeu e desconcertou os advogados da acusação. Num primeiro momento ele negara-se a ser interrogado por eles. Mas seu advogado de defesa o teria convencido a concordar, coisa que ele fez. A partir daí, segundo o El País, os acusadores revelaram-se despreparados para tal enfrentamento, que, pelo visto, não esperavam.

O segundo processo contra Garzón é mais complicado ainda. Trata-se de uma ação movida por uma organização de extrema-direita, chamada de “Manos Limpias”, acusando-o de abuso de poder por ter aberto investigação sobre as circunstâncias da morte ou desaparecimento de 110 mil pessoas durante a ditadura falangista de Franciso Franco, além de ter determinado a abertura de 19 covas coletivas: numa delas, por exemplo, estariam os restos mortais do poeta Federico Garcia Lorca. O que se comenta, ironicamente, é que finalmente alguém vai ao banco dos réus por causa dos assassinatos cometidos durante a ditadura de Franco: o juiz que decidiu investigá-los...

O terceiro é, de todos, o mais ridículo: acusa Garzón de não ter-se retirado de uma investigação contra o Banco Santander, quando teria recebido dinheiro dele enquanto professor convidado, em ano sabático, na New York University, nos E. U. A. Diga-se, de passagem, que, em defesa de Garzón, a própria universidade nega peremptoriamente esse fato.

Se Garzón for condenado em qualquer um deles, terá sua carreira de juiz cortada por 17 anos no mínimo, ou seja, para sempre: nascido em 26/10/1955, ele está com 56 anos, e teria 73 ao término de seu ostracismo.

Uma condenação dessas faria o regozijo de muita gente, além de Aznar e Rajoy. Entre elas, de Francisco Franco e de Augusto Pinochet. Ambos devem estar no sétimo círculo do Inferno de Dante, onde jazem os violentos, assassinos e tiranos. Segundo Neruda, a pena de Franco é a de ficar acorrentado a uma cama, sob a qual passa um rio formado pelos olhos das vítimas de sua ditadura. Podemos imaginar algo semelhante para Pinochet. Ou então ele preso, com alto-falantes colados em seus ouvidos, onde ecoam por toda a eternidade os gritos dos mortos e torturados a seu mando e desmando.

Ah sim, também agradaria a M. Thatcher, que ainda vaga por aqui.

Sem comentários:

Mais lidas da semana