sábado, 14 de janeiro de 2012

A LEI DOS FANTASMAS




Fernanda Câncio – Diário de Notícias, opinião

Quando em Julho de 2008 Manuela Ferreira Leite, disse que o casamento não devia ser possível a casais do mesmo sexo por "se destinar à procriação", foi a pateada geral. Mesmo no partido de MFL muitos foram os que dela se demarcaram, a começar por Passos Coelho, que se disse a favor do casamento das pessoas do mesmo sexo e da adoção por casais de homossexuais.

Três anos e meio após o pronunciamento de MFL, de resto muito atreita a dar voz às ideias mais cavernosas, com a vantagem não despicienda de as trazer à luz, o parlamento agendou uma atualização da lei de procriação medicamente assistida (PMA). Em causa estão quatro projectos de lei: dois do PS, um do PSD e outro do BE. O debate deveria ter tido lugar ontem mas foi adiado a pedido do PSD, que ainda não finalizou o seu diploma. Consensualizado sabe-se já estar o levantamento da interdição da maternidade de substituição, ou seja, o "empréstimo" do útero de uma mulher para albergar a gravidez de outra que esteja dela impedida. O grande debate vai ser pois entre os que defendem o acesso de qualquer mulher às técnicas de PMA(os projectos do BE e da JS) e os que, como o presidente do grupo parlamentar socialista, Carlos Zorrinho, e da ex-ministra da Igualdade Maria de Belém (primeiros subscritores do outro projecto do PS), querem manter a restrição desse acesso a casais heterossexuais, casados ou em união de facto.

Já incompreensível (e provavelmente inconstitucional)em 2006, esta restrição surge seis anos depois em contradição insanável com a legislação existente e, vinda do PS, como total incongruência. O partido que em 2007, na descriminalização do aborto até às 10 semanas, afirmou confiar às mulheres e só a elas a decisão de terminar ou não uma gravidez demonstra assim não as considerar capazes para tomarem a decisão de iniciar e se responsabilizarem por uma; o partido que se bateu pela igualdade de acesso ao casamento e ridicularizou a ideia de que este visaria "apenas a procriação" diz agora que a procriação só deve suceder em casal heterossexual.

E que interesse, pergunta-se, visa esta restrição proteger? Sabe-se qual a resposta do costume: "o de uma criança crescer com mãe e pai". A isso, porém, não se precisa sequer contraditar com a diferente, e fundamentada, opinião de dezenas de estudos sobre o desenvolvimento harmonioso de filhos criados só por uma mãe, só por um pai, por duas mães ou por dois pais; basta lembrar que a lei já permite a inseminação de uma mulher com o embrião resultante de um processo de PMA no qual "participou" um homem entretanto morto.

A ideia de quem defende esta restrição só pode então ser a de impedir o nascimento de (mais) crianças desejadas. E certificar a Ferreira Leite que, afinal, quem tanto a gozou estava afinal a disfarçar, na vozearia, o comprometimento com o mais ultramontano preconceito e com a mais básica discriminação.Os seus fantasmas, em suma.

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