José Goulão – Jornal de Angola, opinião
Chamam-lhe de maneira simplista o caso da dupla filiação e está, um pouco estranhamente, na ordem do dia. Claro que se justifica tão especial atenção ao assunto; a surpresa resulta do facto de ele não ser de hoje, de já vir muito de trás.
Dupla filiação é a situação em que estão numerosos políticos europeus e mundiais que representam partidos políticos e ao mesmo tempo pertencem a organizações secretas que não têm qualquer legitimidade para interferir na vida institucional democrática. Esta duplicidade tem um potencial de promiscuidade muito elevado capaz de contaminar a transparência do funcionamento das instituições que elegemos por atitudes e decisões tomadas no interior de organizações não eleitas e secretas.
Maçonaria e Opus Dei é do que se fala sobretudo quando este assunto vem à superfície, como agora acontece. Por muito que tanto uma como outra tenham tomado decisões no sentido de atenuar o comportamento clandestino, a verdade é que continuam a funcionar longe das luzes. Não é isso que está em causa, repare-se, mas sim a capacidade de esse secretismo onde se esbatem diferenças ideológicas e partidárias, substituídas por outros tipos de afinidades, interferir no que deve ser perfeitamente claro e transparente e tem directamente a ver com as nossas vidas.
Um jornal detectou que no actual Parlamento português mais de três quartos dos deputados estão sob a presidência de membros da Maçonaria porque essa é a filiação dos chefes parlamentares do PSD, do CDS e do PS. Enquanto se esgadanham no Parlamento entendem-se nas sombras das Lojas, locais onde se decidem de maneiras de interferir na sociedade.
O assunto é antigo. Há 26 anos publiquei um livro (Labirinto da Conspiração, Ed. Caminho, 1986) onde se demonstra que se trata muito mais de um caso de dupla obediência do que de dupla filiação. Esse trabalho foi construído a partir do escândalo da Loja Maçónica P2, em Itália, que não era mais do que a cobertura para uma organização terrorista e corrupta com múltiplos contactos desde o PS de então (de Bettino Craxi) à extrema direita, passando pelo também filiado Silvio Berlusconi (nº1828), e com tentáculos que penetravam no sistema bancário, mediático, na OTAN, no Vaticano, na Opus Dei então em altura de grande promoção por João Paulo II, serviços de espionagem do Estado, Parlamento, Governo e… Máfia, pois claro. A falência do Banco Ambrosiano, envolvendo o Banco do Vaticano, e alguns dos mais sangrentos atentados terroristas da época resultaram de estratégias saídas de dentro da P2. O arcebispo Marcinkus, presidente do Banco do Vaticano, era unha com carne com a P2 e o seu chefe, Licio Gelli.
Sejamos claros: este foi um caso extremo. A P2 não era verdadeiramente uma loja maçónica. Mas serve de exemplo para o que, no limite, pode acontecer quando existe a dupla obediência de um político ao partido e à organização secreta a que pertence. A quem obedece em última análise? Que estratégias aplica, as que resultam do compromisso com os eleitores através dos programas políticos e das campanhas eleitorais ou as concertadas com os companheiros maçons ou da Obra, guiados por interesses que passam por cima dos partidos e das ideologias? E não se pense que, na prática, são grandes os antagonismos entre Maçonaria e Opus Dei. Conviveram, e provavelmente continuam a conviver dentro do Vaticano, na Comissão Trilateral, no Grupo de Bilderberg. E as suas afinidades em matéria de economia e finanças, o que hoje faz girar o mundo, convergem no respeito absoluto pelo mercado, o senhor supremo.
Um jornal português citou um dirigente do PSD, maçon, defendendo a inclusão do PS na actual coligação governamental. Pois é, pensem que fenómenos políticos insólitos num dado momento podem ter a sua origem lá nos segredos das catacumbas onde são fraternos companheiros os que em público parecem assanhados rivais.
Não ponho em causa a liberdade de filiação de qualquer cidadão na organização em que se revê. O que é inaceitável é a transposição do poder dessas organizações opacas para a vida pública subvertendo – ainda mais – a democracia.
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