Edgar Xavier – i online
Já foi ministro, primeiro-ministro e agora é o presidente que se recandidata. Preocupado com o excesso de partidos, faz um balanço positivo dos dez anos de independência
O seu herói de sempre é Jean Valjean e, por via dessa admiração, não é capaz de condenar um pobre. Em dez anos de independência de Timor-Leste foi ministro dos Negócios Estrangeiros, primeiro-ministro e presidente da República. Para José Ramos Horta, a ausência de diálogo torna Timor “um país de boateiros e a desconfiança de parte a parte vai-se avolumando”.
O primeiro governo timorense entrou em funções em Maio de 2002 e em Dezembro desse mesmo ano registaram-se os primeiros tumultos na capital, Díli. Qual a origem deste episódio?
Na altura, não estava em Díli, mas a caminho do México, e ocupava a pasta de ministro dos Negócios Estrangeiros. Já estava em Madrid e recebo um telefonema do dr. Mari Alkatiri a alertar-me para o que estava a acontecer naquele preciso momento em Díli. Imediatamente mudei de rota, voltei e, quando cheguei, a situação estava consumada. Não havia razão nenhuma para o que sucedeu no dia 4 de Dezembro de 2002. Tendo começado praticamente do zero e com um Orçamento de 60 milhões de dólares, começaram imediatamente a acusar o governo de corrupção, negligência, falhanço na luta contra a pobreza. Francamente, é de doidos! Demagogos. Mas houve também falhas da polícia internacional, sob o comando das Nações Unidas. O comandante da altura recusou fazer intervir a polícia. O então ministro da Presidência de Portugal, Nuno Morais Sarmento, estava em Díli, em plena reunião com o primeiro-ministro Alkatiri e, perante a passividade da polícia da ONU, fez o que lhe competia. Se ele não fosse um homem de iniciativa e coragem e se fosse excessivamente burocrata, não teria intervindo. Mas, perante a falha de liderança das Nações Unidas, Morais Sarmento consultou Lisboa e dá ordens aos elementos militares portugueses para intervirem e rapidamente restaurarem a segurança. Só que já era tarde demais porque, na altura, os manifestantes saíram do palácio do governo e foram à casa privada do dr. Mari Alkatiri saqueá-la e incendiá-la. Perdeu tudo naquele dia e, no fim, acabei por lhe fazer um donativo pessoal.
Apesar deste incidente, a situação no território manteve-se calma nos anos seguintes.
O ano de 2003 foi relativamente calmo, mas em 2004 já começou a haver sinais de instabilidade dentro das forças armadas. O então presidente da República, Xanana Gusmão, estabelece uma comissão de investigação para tirar ilações da troca de tiros em Lospalos [na ponta leste da ilha] entre as Falintil-Forças de Defesa de Timor--Leste (F-FDTL) e a Polícia Nacional de Timor-Leste (PNTL). O relatório, aparentemente, não teve seguimento. Em Abril de 2005, as relações entre o governo e a Igreja deterioraram-se.
Por que razão é que houve esse desentendimento entre o governo e a Igreja?
O governo, no final de 2004, início de 2005, decidiu não aceitar incluir no currículo escolar o ensino obrigatório da disciplina de Religião e Moral. A Igreja protestou pelas vias normais e, aparentemente, ninguém ligou. Entretanto, os azedumes foram-se avolumando até chegar à manifestação. Naquela altura encontrava-me fora do país, em Jacarta, na primeira reunião ministerial Timor-Leste-Indonésia. O presidente Xanana Gusmão tentou o diálogo mas, aparentemente, desistiu, porque abandonou Díli, e eu, um pouco preocupado, pensei “esta é a altura de intervir”. E, sem ninguém me ter solicitado, sabendo apenas que alguém tinha de abrir o diálogo, e com o total acordo do dr. Mari Alkatiri, iniciei os primeiros contactos. É um hábito timorense termos um sinal de alerta e acabarmos por não agir, encolhendo os ombros. Timor-Leste é uma terra de muitos rumores, como acontece nas terras pequenas onde os meios de comunicação modernos não existem. E, então, os boateiros dominam e a desconfiança de parte a parte vai--se avolumando. Sem diálogo, a outra parte pensa que o Alkatiri estava a conspirar contra a Igreja.
E Mari Alkatiri não é católico.
É verdade, mas nunca lhe ouvi, durante esses anos todos, uma palavra indelicada contra a Igreja. Pelo contrário. Por exemplo, o monumento a João Paulo II foi ideia dele. Nós temos esse mau hábito de não dialogarmos e deixamos que os boateiros nos envenenem os ouvidos. Durante o meu mandato, rumores ou boatos não tomaram conta da minha agenda. Mas admito que ainda há muito por fazer no que concerne, por exemplo, às nossas forças armadas e polícia. Talvez daqui a três/cinco anos possamos dizer que as nossas forças de segurança já estão imbuídas da cultura democrática, do sentido de disciplina, de obediência ao poder civil, do respeito pelos direitos humanos, mas também reconhecidos na sua dignidade.
A crise de 2006 veio, de certa forma, servir de lição?
Numa altura em que a classe política saiu bastante danificada, não houve arrogância da parte das forças de segurança. No pior da crise, estes últimos assumiram a sua quota de responsabilidade e tudo fizeram para acalmar a situação. Nos dias de hoje, quer a nossa polícia quer as forças armadas readquiriram muita da credibilidade e têm cerca de 80% de aceitação por parte da população.
O facto de ter concedido indultos aos envolvidos nesta crise serviu, de certa forma, para aligeirar um pouco a tensão no território?
O papel do presidente, no tocante a este sector importante que é a justiça, tem sobretudo a ver com o que a Constituição preconiza, que é dar indultos. Para a ocasião, considero alguns aspectos como, por exemplo, o bom comportamento ou mesmo questões de natureza humanitária (se o prisioneiro é doente, padece de alguma enfermidade ou se ele é o único ganha-pão de uma família numerosa). E, naturalmente, há questões de natureza política. O papel do presidente nesta área é complementar a acção dos tribunais. O juiz analisa os factos que ocorreram, mas todas as outras questões que normalmente não entram nas considerações do juiz são analisadas pelo presidente. Na sequência da crise de 2006, o caso mais controverso foi o indulto que dei ao ex-ministro do Interior Rogério Lobato, acusado e sentenciado a uma pena elevadíssima pela distribuição de armas a civis. Mais tarde, também indultei o sr. Vicente Rai Los por motivos de saúde, mas a grande atenuante foi o facto de ele ter sido a pessoa que primeiro denunciou a distribuição de armas.
Em 2008, sofreu um atentado em que quase morreu e houve uma emboscada ao primeiro-ministro, Xanana Gusmão.
O senhor [Gastão] Salsinha [um dos cabecilhas do atentado, a par de Alfredo Reinado] e os seus homens renderam-se porque, não nos esqueçamos, em Março de 2007, a International Stabilisation Force (ISF), proveniente da Austrália, altamente equipada e treinada, fez um assalto ao grupo de Alfredo Reinaldo em Same que resultou na morte de quatro ou cinco elementos do grupo, mas o sr. Salsinha e todos os outros escaparam. Em vez disso, se não se quisessem render e resistissem, obviamente seriam mortos ou capturados, o que significava mais vidas timorenses perdidas. Ainda estava no hospital em Darwin quando recebo a declaração pública feita pelo sr. Salsinha de que eles se entregariam quando o presidente regressasse do hospital. O que deve fazer o presidente? Esquecer todo o background que levou a este problema ou tentar sarar as feridas e dar-lhes uma nova oportunidade para refazerem a sua vida?
Mas isso não o livrou das críticas por parte da ONU.
Sabe, Cristo sofreu muito mais críticas e foi crucificado pelo que acreditava. Não conheço um único caso no mundo em que o ser humano tenha transportado uma cruz e tenha sido torturado e crucificado e tenha tido esta enorme bondade de perdoar os seus algozes. Portanto, este é o exemplo que sigo sempre.
Apesar destes percalços, como vê a evolução do país?
Uma evolução extremamente positiva, em grande parte graças a um estilo novo de presidência e de governação. Muito aberto, muito acessível, sem demasiado protocolo e segurança, que às vezes cortam o acesso entre o Estado e o povo. Nem tudo correu bem. Durante a minha presidência e o governo da Aliança Maioria Parlamentar (AMP) cometeram-se vários erros, desperdícios e esbanjamento de dinheiro, mas alguma coisa melhorou na vida de milhares de pessoas. Quando assumi a presidência, um pouco da minha personalidade veio ao de cima. Geralmente, um chefe de Estado é eleito e depois refugia--se na sua residência ou palácio. O povo acaba por vê-lo de vez em quando, em paradas ou a circular a grande velocidade nos carros com vidro fumado.
Faz exactamente o oposto, circula pelas ruas de Díli num caddy.
Claro! Veja, o zé-povinho, as crianças, não me chamam presidente. Chamam-me avô – não é que eu fique muito satisfeito, sobretudo quando vou com uma jovem ao lado e a minha credibilidade junto do universo feminino cai logo [muitos risos] – ou chamam-me pai, o que já é um bocado mais aceitável, ou apenas Ramos Horta. Isto pode não funcionar em outros países, mas esta é a nossa sociedade. O estilo do nosso primeiro-ministro também é assim, muito afável, muito aberto, e isso inspira confiança e acessibilidade. Mas nem tudo é perfeito, há abusos do sistema. Contudo, quando são os pobres que tentam sacar o dinheiro do Estado, serei a última pessoa no mundo a criticar. O meu grande herói desde a infância, que me inspirou ao longo de anos, é Jean Valjean, o condenado, no livro “Os Miseráveis”, de Victor Hugo. Ele é o meu herói. Rouba um pão para dar à filha [neste caso, sobrinha], que estava a morrer à fome, e a partir daí passa toda uma vida a ser perseguido. A sua extrema bondade (que depois na Revolução Francesa teve um papel preponderante), leva-o a perdoar o inspector Javert, que o perseguiu durante 30 anos. Jean Valjean tem a oportunidade de matar o inspector, mas deixa-o ir. Mais tarde, Javert permite que Valjean escape e, pela primeira vez, o inspector desrespeita a lei. Em conflito consigo próprio, suicida-se, saltando para o rio Sena.
E qual o seu prognóstico para os próximos cinco anos?
Para os próximos cinco anos, o único “se” ou ponto de interrogação é o facto de termos muitos partidos políticos É uma palhaçada autêntica e a FRETILIN é a única que se vai rir com esta bandalheira de partidos políticos Eles têm uma base bastante disciplinada, sólida, e não vão ter menos de 25 a 30%. Os custos vão ser elevados no sentido em que, não havendo uma maioria clara para um partido, vão ter de formar coligações e, pela experiência dos últimos cinco anos, não funciona. O primeiro-ministro já disse, se não tiver maioria clara, não vai alinhar em coligações, prefere ir para a oposição.
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