terça-feira, 6 de março de 2012

A UNIÃO EUROPEIA NÃO SAI DA CEPA TORTA




Mário Soares – Diário de Notícias, opinião

1. O Tratado que resultou da cimeira de Bruxelas da semana passada, intitulado pomposamente Tratado de Estabilidade, Coordenação e Governação da União Económica e Financeira, apesar de subscrito por 25 chefes de Governo dos Estados membros (com a exceção do Reino Unido e da República Checa) não parece ter trazido à crescente inquietação da opinião europeia e mundial nenhum benefício que possa dar à União alguma esperança quanto ao futuro próximo. Primeiro porque o Tratado só entrará em vigor - se lá chegar - depois de ratificado pelos Parlamentos nacionais, pelos Tribunais Constitucionais e pelo referendo da Irlanda.

É talvez possível que os mercados especulativos não rejubilem com o Tratado. A promessa vaga e futura de uma governação financeira e económica talvez lhes suscite alguns engulhos. Mas como o que continua a contar é a redução dos deficits - e o não crescimento das economias reais - os desempregados, cada vez mais, como as desigualdades e a pobreza crescem avassaladoramente, os mercados especulativos, que comandam os Estados, continuam satisfeitos. Têm amplas razões para isso...

A verdade é que sem os mercados - e as agências de avaliação - serem postas na ordem, a crise global que afeta a União Europeia não terá solução. Não se trata só dos Estados da Zona Euro mas também dos que não lhe pertencem, como o Reino Unido, que não estará, seguramente, numa situação melhor do que a Itália ou a Espanha.

Não se espere que os Estados vítimas das medidas de austeridade - como a Grécia, a Irlanda ou Portugal - estejam pior do que os outros Estados membros, mesmo os considerados mais ricos, como França e a Alemanha. Enquanto não for mudado o paradigma de desenvolvimento da União e os líderes europeus não quiserem perceber que com austeridade sem crescimento económico e sem um combate sério contra o desemprego a situação da Europa irá sempre de mal a pior. Não há troikas que lhes valham. Bem pelo contrário. Principalmente os governantes que consideram as troikas beneficiárias (em vez de usurárias) e não ficam chocados no seu patriotismo, quando as veem a tutelar os Estados e os Governos, democraticamente eleitos. Que aberração! Quanto às desgraças que criam as políticas de austeridade, contribuindo para aumentar a recessão, o desemprego e as desigualdades sociais, leiam-se dois artigos muito lúcidos de Pacheco Pereira e Miguel Sousa Tavares, no Público e no Expresso, do fim de semana passado.

2. A surpresa Rajoy.

Mariano Rajoy, chefe do Governo espanhol, eleito por grande maioria, tomou uma atitude que espantou a União Europeia. E que, a meu ver, foi lúcida e corajosa. Sem prevenir os lideres europeus - e após a última Cimeira, precisamente no dia seguinte - anunciou ao Banco Central Europeu, à Comissão Europeia e ao Conselho, a sua decisão de deixar subir o deficit público de 4,4% para 5,8% em 2012 ou seja, não fazer tantos cortes como a União exigia.

Note-se que quando começaram os cortes assassinos, os espanhóis desceram à rua para manifestar o seu descontentamento em Madrid, Barcelona e noutras cidades de Espanha. Quem conhece a história e a sensibilidade dos espanhóis, não se admira nada com essas manifestações hostis à política restritiva do Governo... Por outro lado as Autonomias, começaram igualmente a protestar, principalmente a Catalunha, o País Basco e a própria Andaluzia, onde o PP, aliás, acabou de conseguir uma vitória histórica.

O Presidente do Banco Central Europeu, Mário Draghi, censurou a Espanha por não ter apresentado o Orçamento para 2012. A questão, ao que parece, é que vai haver eleições na Andaluzia e nas Astúrias, salvo erro, em abril e Mariano Rajoy para não ter dissabores não quer dar conhecimento dos grandes cortes exigidos - e tão impopulares - antes delas. Depois, certamente, dará conhecimento do Orçamento. Mas daí a que cumpra os cortes exigidos, a que Bruxelas submeteu a Espanha, vai uma certa diferença.

Curiosamente, quando a Comissão Europeia criticava a posição do presidente Rajoy dizendo que "Espanha estava a perder credibilidade", o líder do PSOE, rival de Rajoy, Alfredo Pérez Rubalcava, afirmou, em sentido inverso, que Espanha "vai na direção correta" (vide El País de sábado).

Espanha não é um Estado qualquer. O descontentamento profundo da população - e das Autonomias - perante as chamadas medidas de austeridade e os cortes sociais que implicam, especialmente a contra-reforma laboral, criaram já um desgaste significativo no Governo, mas não no PP. É o que mostra o último barómetro.

Contudo, não haja dúvida de que o aumento do desemprego (um quarto da população ativa) e os cortes que tanto vão atingir a classe média tornam muito difícil a aplicação das medidas impostas por Bruxelas. O que vai ter consequências sérias, nos diferentes Estados membros da União, de Espanha à Itália e até à própria França, sem excluir os Estados mais pequenos. Como veremos...

3. Um prémio Nobel em Lisboa.

Devo ter sido dos primeiros portugueses - excetuando, obviamente, os economistas de formação - a ler os artigos e algumas das conferências de Paul Krugman, prémio Nobel da economia. Antes dele, aliás, li dois ou três livros de Joseph Stiglitz, que me ensinaram a compreender a origem da crise global que vivemos e como a podemos - se quisermos - vencer. Como a austeridade, por si só, não leva a lugar nenhum, é urgente e necessário meter os mercados especulativos na ordem, acabar com os paraísos fiscais, a economia virtual e voltar aos tempos em que a meta era o pleno emprego e uma democracia social que funcionasse, ao serviço também dos mais desfavorecidos.

Entretanto, os Estados Unidos entraram em crise - uma crise financeira e económica séria - que se tem prolongado e tornado também política, social e ética ou de respeito pelos grandes valores. Comunicou-se à União Europeia e tem vindo a aprofundar-se, pondo em causa a relação de forças em termos mundiais. É o Ocidente que está em crise no seu conjunto. Crise, alimentada pela ideologia neoliberal dos teóricos americanos e depois aplicada, em termos de governação, pelo presidente Reagan e pela primeira-ministra inglesa, Thatcher, sem esquecer a infeliz "terceira via" do Senhor Blair.

Foi depois dessas experiências, para mim desagradáveis, que comecei a ler os artigos críticos de Paul Krugman com grande aprazimento e concordância. Citei-o, aliás, em muitas das minhas crónicas.

Quando soube que o prémio Nobel vinha a Lisboa para receber um doutoramento honoris causa, fiquei satisfeito e naturalmente interessado. Foi recebido, aliás, com a maior cordialidade e simpatia. No entanto, embora não renegasse as suas ideias, segundo li nos jornais portugueses, foi elogioso para a troika, talvez por estar em Lisboa e para ser agradável aos nossos atuais lideres, que o homenagearam com um almoço. Reconheceu a necessidade das "medidas de austeridade" e esqueceu-se da recessão crescente e de o desemprego ter subido a 14,8%...

Espero não estar enganado. Mas, para mim, Paul Krugman foi uma deceção... Quando o oportunismo dos académicos os leva a contradições, a sua honorabilidade desce... É dos livros!

4. A tragédia da Síria.

A carnificina que tem continuado na Síria é inaceitável e impensável no século XXI. É preciso acabar com esse ditador sanguinário que nos tempos que correm só tem paralelo com Kadhafi.

O secretário-geral da ONU, o coreano Ban Ki-moon, veio às televisões mundiais condenar o ditador e os seus fiéis. Mas não basta falar. É preciso agir. E agora que a China e a Rússia parecem ter-se arrependido do veto vergonhoso com que paralisaram o Conselho de Segurança, é a boa altura para que a ONU tome rapidamente uma iniciativa condenatória do Governo sírio e obrigue todos os Estados membros a pronunciar-se contra uma situação tão injusta e trágica que nos envergonha a todos.

5. Stefan Zweig 70 anos depois.

A imprensa internacional - e a brasileira - destacaram os setenta anos que já passaram depois que o grande escritor, humanista e pacifista Stefan Zweig e a sua segunda Mulher puseram fim às suas vidas, em Petrópolis, perto do Rio de Janeiro.

Fui desde jovem um leitor apaixonado de Stefan Zweig, não do poeta ou do dramaturgo - que também foi - mas sim do novelista e, sobretudo, do biógrafo e autobiógrafo. Quase todos os livros escritos por Zweig estão traduzidos em português, por uma escritora e tradutora, excelente, que conheci pessoalmente, Alice Ogando, aparentada com um meu companheiro do MUD, no imediato pós- -guerra, o médico comunista Luciano Serrão de Moura. Entre as biografias que li, apaixonadamente, nunca esqueci a de Maria Antonieta, por onde começou o meu conhecimento, mais aprofundado, da Revolução Francesa, de Maria Stuart e de Fouché, o político que soube sobreviver na época de Bonaparte a todas as mudanças. Além de grandes génios, entre outros, que também biografou, como: Erasmo de Roterdão, Casanova, Stendhal, Tolstoi, Nietzsche, Freud, Balzac, Rilke e Dostoievski, sem esquecer o seu grande amigo e meu tão admirado, desde sempre, Romain Rolland. Cito também a biografia do corajoso navegador português Fernão de Magalhães - que devia ser lida pelos patriotas portugueses -, que encontrou a passagem gelada, no extremo sul, entre o Atlântico e o Pacífico, cujos lugares tão inóspitos tive a honra de observar e conhecer.

Zweig nasceu em Viena de Áustria em 1881 e suicidou-se (com a sua Mulher) no Brasil em janeiro de 1942. Foi, toda a vida, um humanista e um pacifista, ou não fosse grande amigo e quase discípulo de Romain Rolland. Era um homem extremamente afetivo e de grandes amizades, que conservou até à sua morte, como o descreveu a sua biógrafa Dominique Bona, no seu livro Stefan Zweig, l'ami blessé. Não suportou o peso do nazismo nem das perseguições e ameaças que lhe foram feitas. Antes de morrer, publicou uma autobiografia, que ainda não tive oportunidade de ler e que julgo ser póstuma, intitulada O Mundo de ontem, que foi o seu, inexoravelmente. E antes publicou um clássico, em forma de ensaio "Brasil, País de Futuro", que foi profético. Porque hoje o Brasil não é uma ideia de futuro: é o futuro, com um passado e um presente absolutamente excecionais.

Espero que os jovens de hoje não deixem de ler Zweig. Ficariam com uma bagagem cultural de extrema atualidade. Recomendo-lhes, para começar a conhecer o personagem, que leiam uma biografia que sobre ele escreve o grande jornalista e escritor, brasileiro, Alberto Dines.

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