sábado, 21 de abril de 2012

A AMPLA CIDADE



Rui Peralta

Os gatos e a vida de cão

Os gatos são entidades estranhas e não era por acaso que os antigos egípcios atribuíam-lhes poderes místicos. Todas as noites a infindável serpente do mal, Apopis, atacava a Barca do Sol quando esta empreendia a sua viagem nocturna. A barca, que os egípcios designavam por Mesektet, era comandada por Ré, o brilho do sol, que enfrentava diariamente o perigo da destruição que Apopis simbolizava. Ocasionalmente Apopis engolia a embarcação e provocava os eclipses solares.

Ré triunfava sempre mas Apopis era indestrutível e inúmeras vezes Set, irmão de Osíris e filho de Ré, feriu Apopis com o seu arpão. Com o tempo a memória dos Homens fragmentou-se e os teólogos mudaram Set de campo. Tornou-se aliado de Apopis e foi substituído por um gato que simbolizava o próprio Ré. O gato decapitava a serpente fazendo triunfar a luz sobre as trevas.

Vem esta conversa sobre os gatos e a mitologia egípcia a propósito de um spot transmitido pela SIC Noticias. Nesse spot podemos ver um deputado do Parlamento Português dizer ao Ministro das Finanças da Republica Portuguesa, Victor Gaspar, que tem um gato chamado Gaspar (mas não é Victor) e que gostaria de falar de economia e finanças com o gato mas o gato não responde (tipo aquela cantilena em que atiramos o pau ao gato mas o gato não morre). O Ministro das Finanças, com um ar charmoso pergunta ao deputado qual é a idade do gato e o deputado responde-lhe que o gato ainda é novo. O ministro fica ainda mais charmoso e esta burlesca conversa que ocorreu numa sessão de um comissão de inquérito no Parlamento Luso, foi transformada em spot publicitário da SIC.

Como não sou um homem de grandes conhecimentos financeiros, nem sequer financeiramente programado (o que ganho não dá para esses luxos e o único exercício financeiro em que sou especialista é a ginástica do estica, embora já tenha chegado á conclusão que o dinheiro é de pouca ou nenhuma elasticidade), fico perplexo ao verificar a forma como as elites processam os seus saneamentos financeiros, passando por cima dos mais elementares direitos civilizacionais que foram conquistados através das gerações. Num ápice a Europa Social passou a ser uma Europa esbanjadora e agora constrói-se a Europa da Poupança, mas que nesta fase é a Europa da Austeridade.

Por motivos académicos tenho, nos últimos tempos, parado em Turim e pasmo com o tratamento de choque a que a sociedade italiana é sujeita, dia após dia. Dos ecos que chegam de Lisboa, sei que em Portugal a coisa anda pela mesma bitola e nem quero imaginar a Grécia, o berço da velha Europa, agora mal-amada pelos líderes da Nova Europa que pretendem impor disciplina financeira e hábitos de poupança ao pobres gregos (uma cambada de filósofos e argonautas), aos indolentes italianos (que desde a queda do Imperio Romano só pensam em cinema e vida fácil) e aos gastadores portugueses (essa escumalha de poetas-marinheiros e fadistas-futebolistas). “Toca mas é a encher as Constituições com normas de poupança e organização e vejam lá se aprendem a serem pobrezinhos, que não é mal nenhum, pois assim podem passar com mais facilidade para o céu!” – Eis a mensagem dos austeros e programados líderes da Europa da Poupança. Nada de excessos! Nada de improvisos! Nada de gastar á toa! Esta é a Europa dos mansos e poupados. É a Europa dos programados…

Bom…Também gosto de programar as minhas actividades. Embora seja um amante do Jazz, considero a arte da improvisação como um clímax da organização e não um produto do caos. Um pouco como aquela frase do Proudhon sobre a anarquia ser a mais alta expressão de ordem. A ordem não é, necessariamente, o oposto do caos. O caos pode ser ordenado e pode representar uma forma de ordem. Por sua vez a ordem pode ser caótica… vejam-se os problemas que existem nas repartições de finanças, nos sistemas de justiça, no aparelho de estado ou na ordenação caótica dos mercados. Mas uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa e sobre esta coisa que se passa na Europa sempre que tenho pausas na minha actividade académica venho, em fuga, para Luanda.

Não que Angola seja um primor paradisíaco, nada disso! Nem porque Angola tem essas milagrosas taxas de crescimento económico (aliás as taxas crescem tanto que, se por infortúnio da má sorte, a população activa - (?) - de Angola ficasse toda doente ao mesmo tempo e não pudesse ir trabalhar, o PIB continuaria a aumentar e os indicadores a subir, a subir, como o balão do João que sobe, sobe, sem parar). Nada! É só mesmo porque quando a confusão reina na casa do outro nós preferimos a nossa confusão.

E a nossa confusão é trágica. Ainda no outro dia fui para a varanda. As traseiras do meu apartamento são o exemplo do caos característico da pobreza. Sempre que estou na minha casa, em Luanda, vou para a varanda das traseiras apreciar o movimento da miséria popular. O mais velho que predica uma bíblia oculta e fala sobre um Cristo africano; as mulheres que saem cedo das suas casas para irem trabalhar nas casas dos senhores; os mais velhos a arrastarem-se; os jovens que vão para a escola - eles de calção, elas de saia curta por debaixo das batas brancas - com as mochilas às costas; as donas de casa que ficam a lavar a roupa rota, a parca loiça suja e a varrer os quintais de areia…É um imenso caos ordenado, em que cada Ser ali residente movimenta-se, transportando sorrisos, risos, lágrimas, sonhos, amores, ausências, carências, bebedeiras, estômagos vazios, rostos carregados, adultério, poligamia, filhos alheios, doenças, maus cheiros, águas paradas, uma imensa irmandade de infortúnios ruidosamente aclamados aquando da perda de um filho, de um parente, de um pai ou de uma mãe, de um vizinho e não menos ruidosamente abafados quando as noites de sexta-feira chegam e a cerveja e o caporroto toldam os espíritos, espalhando uma falsa alegria, ritual e frenética.

E tal como na Europa, também nós temos problemas graves com a terceira idade, com as reformas, as pensões de velhice, a Segurança Social…Certo que os nossos líderes ainda não falam nos cortes das reformas, mas também para quê? Atendendo ao parco número dos que as recebem…Pelo menos aqui, nas Terras do Espirito Santo, não precisamos de criar fantasmas estatísticos, como acontece na Europa do Euro para justificar os cortes sociais nas reformas e aumentar o tempo de vida de trabalho. Aqui morremos antes. Pelo menos por enquanto. Não que a nossa vida vá melhorar substancialmente e passemos a durar mais anos (aqui só sobe a taxa de crescimento económico, a taxa de longevidade sobe mais devagarinho, a conta gotas), mas a vida dos europeus vai (se a correlação de forças na guerra de classes não mudar) piorar substancialmente, implicando uma vida mais curta.

Mas a velhice é sempre perturbadora. Torna-se mais perturbante quando, para além de todos os problemas de decadência física e mental que a acompanham, vivemos em países onde os sistemas de protecção social não funcionam, ou são inexistentes. O bom senso aconselha a uma vida austera, que nos permita poupar uns tostões para uma velhice minimamente condigna. Mas o bom senso, uma prerrogativa dos medianamente ricos, ou dos ricos cuidadosos, não entra nos preceitos culturais dos novos-ricos, dos sempre pobres, dos novos-pobres, dos aldrabões, dos camanguistas, das damas que procuram marido abastado e perdem-se com amantes tesos, dos que gostam de viver o presente, dos que não pensam no dia de amanhã, enfim, uma imensa lista que comporta os sectores maioritários da humanidade, que não pratica, por razões culturais, o bom senso. Quando a esse factor juntamos um sistema social criado e desenvolvido na cultura da vida fácil, na política do enriquecimento rápido, um sistema que funciona no entretanto e nas estimativas, a coisa torna-se trágica e o fim é triste. Viver numa sociedade em que o bom senso é quase crime ou ilusão eternamente adiada, é um suicídio lento, que ultrapassa em muito a indiferença objectiva do suicídio camusiano, ou do suicídio honrado e libertador do Zen, ou dos velhos comerciantes que ficavam sem dinheiro para cobrir as dívidas. É um suicídio inconsciente, apresentado como morte natural, suportado por um sadismo que domina no subconsciente dos que se podem tratar, dos que fazem tratamentos às verrugas e que dormem descansados e contentes pelo seu sucesso. É como se a sociedade comportasse uma cultura masochista, ciente do futuro incerto, consciente da tragédia final, que se esforça por permanentemente toldar os sentidos e viver na ilusão do momento presente. É o ficar agradecido por acordar vivo e a mexer todas as pontinhas do corpo. Com alguma sorte os miúdos vão cuidar de nós. A filha é boazuda e vai casar-se com um tipo bem posicionado, ou vai ser amante ou segunda, terceira, quarta esposa de uma figura. O rapaz até é esperto e vai tirar um canudo, ou vai cair no goto de uma qualquer matrona que sempre lhe dará a mão nos momentos cruciais, e se a coisa for bem-feita e o rapaz bem apetrechado, a matrona dá-lhe a mão de uma das filhas, para o ter sempre por perto.

É como vivêssemos todos num universo sem futuro. E sem futuro não há razão para haver esperança. Se calhar vai ser a próxima linha da frente. O combate pelo futuro…

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