José Ramos-Horta**
«Os artigos 13.º e 159.º da nossa Constituição determinam que o tétum e o português são as nossas línguas oficiais e a língua indonésia e inglês são línguas de trabalho. Será possível atitude mais aberta e pragmática do que esta?», defende o ex-Presidente de Timor-Leste, José Ramos-Horta, neste texto publicado no jornal português Público de 22/04/2012.
De quando em vez, um jornalista ou académico opina sobre a escolha de línguas oficiais feita por Timor-Leste. Victor R. Savage, professor associado de Geografia na Universidade Nacional de Singapura, escrevia recentemente: “A actual eleição presidencial em Timor-Leste trouxe visibilidade internacional a este Estado marginalizado do Sudeste Asiático”.
Já nos chamaram “estado frágil” e “estado falhado”, mas “estado marginalizado” é um novo título que acaba de nos ser concedido. Savage prosseguia, proporcionando-nos a sua opinião académica sobre o que é, em Timor-Leste, uma questão simples — as línguas.
Os artigos 13.º e 159.º da nossa Constituição determinam que o tétum e o português são as nossas línguas oficiais e a língua indonésia e inglês são línguas de trabalho. Será possível atitude mais aberta e pragmática do que esta?
A liderança e o povo timorenses, embora ilhéus, têm uma mentalidade voltada para o exterior, aberta a influências culturais, aprendendo e absorvendo o bom (e o mau) que vemos, ouvimos e lemos sobre o mundo. Estamos entre os povos mais poliglotas do mundo. Uma grande percentagem entre nós usa três a cinco idiomas — uma língua local materna, tétum, indonésio, português e inglês.
Aconselho sempre os jovens a terem uma atitude aberta à informação, ao conhecimento de outras culturas e a aprenderem tantas línguas quanto possível. Exorto-os a não terem a atitude provinciana do australiano médio, ou do americano ou britânico, que dominam apenas o inglês.
O número de jovens timorenses a familiarizarem-se com o inglês é crescente. Estima-se que a língua inglesa é entendida por 31,4%. Tem-me impressionado também o número de jovens com alguma fluência em espanhol, coreano, japonês ou chinês, após apenas meses de aprendizagem.
O Censo Nacional de 2010 apurou que cerca de 90% da população usa tétum diariamente. Uns 35% são utilizadores fluentes do indonésio e 23,5% falam, lêem e escrevem português. Este é um número impressionante, quando nos lembramos que menos de 5% dos timorenses dizia compreender português, em 2002.
No seu comentário, Savage pôs em questão a sensatez da política linguística de Timor-Leste, sugerindo que devíamos optar pelo inglês, em vez do tétum e do português, ignorando o facto de a nossa constituição proporcionar a utilização do inglês e do indonésio como línguas de trabalho.
Savage afirma, erradamente, que embora o tétum seja língua oficial, “no terreno, tem-se a impressão de que está a ser dada prioridade ao português por ser a língua de comunicação da elite política e social — em suma, uma língua elitista em Timor-Leste. Uma política da língua como esta envolve desafios únicos”.
É óbvio que ou Savage ainda não foi a Timor-Leste ou foi lá de passagem — no estilo aterra e descola. As sessões do nosso Parlamento Nacional, do Conselho de Ministros, seminários e conferências, etc.são maioritariamente realizadas em tétum.
A Resistência Timorense, o Governo e a Igreja Católica contribuíram mais do que ninguém para a generalização e modernização do tétum. O facto de o tétum ser hoje falado por perto de 90% é um grande indicador do nosso êxito na construção nacional. Mas o tétum está ainda a caminho de se tornar uma língua plenamente funcional, perante os desafios da modernidade. Milhares de termos foram tomados de empréstimo do português, alguns do indonésio e do inglês, e creio que o tétum precisa de mais 10/20 anos para se tornar uma língua dinâmica e rica. A língua indonésia também adoptou centenas de palavras do português, em resultado da longa presença colonial no Sudeste Asiático.
Mais 10 anos e teremos metade da nossa população a dominar a língua portuguesa, uma versão local do português, com vivacidade tropical e musicalidade própria, como o português falado no Rio ou em Luanda. O tétum terá o mesmo encanto e colorido, mas estará mais apetrechado para responder a desafios da abertura do país ao mundo.
Como outros anglófilos, Savage parece acarinhar a visão simplista do inglês a abrir, por si, as Portas do Céu a um Timor-Leste pobre, resolvendo problemas sociais e económicos. E, sendo o inglês a chave do futuro de Timor-Leste, presumo que será também o caminho da fortuna para os outros países pobres.
Inversamente, nesta linha de raciocínio, aquele académico quererá fazer crer que foi o inglês que catapultou nações como o Japão, Coreia, Alemanha, Itália, França para o estatuto de grandes potências industriais? E como explicar a emergência do Brasil, falante do português, como potência económica global, tomando à velha Inglaterra o lugar de sexta economia mundial? E como explicar o actual estatuto de “estado frágil” atribuído a Estados insulares do Pacífico ou africanos que no passado foram administrados pelo Reino Unido e adoptaram o inglês como língua oficial desde as suas independências?
E os nossos irmãos aborígenes australianos, cuja expectativa média de vida à nascença é 10 anos mais baixa do que em Timor-Leste? Não deveriam eles estar muito melhor, após serem colonizados por falantes do inglês durante mais de 200 anos?
Contrariamente à afirmação do académico de Singapura, segundo a qual a nossa decisão de não usar o indonésio teve origem na sensibilidade política da questão, eu afirmo que não temos ressentimentos no que respeita à língua e às culturas da Indonésia.
Eu defendi até que deveremos dar ao indonésio o estatuto de língua oficial, após a necessária avaliação de custos e disponibilidade de professores. 35% do nosso povo fala indonésio, mas nos grupos etários dos 5-10 anos, especialmente em zonas rurais, aquela percentagem é muito menor.
Embora com respeito pelo que parece ser o grande conhecimento do académico sobre a Indonésia e estando reconhecido pelos seus alvitres, Timor-Leste e a República Indonésia desfrutam de relações exemplares em todos os campos, graças à visão dos líderes dos nossos dois países, optando por uma abordagem pragmática, olhando para o futuro.
Timor-Leste é desde 2005 membro activo do Fórum regional da ASEAN e participou ao longo dos últimos 10 anos em todas as reuniões ministeriais da ASEAN, que reúne os restantes países da nossa região natural e à qual esperamos aderir em breve. Abrimos já embaixadas em cinco Estados da ASEAN e, até 2013, vamos abri-las nos cinco Estados-membros restantes. Temos também representação ao nível de embaixada em Seul, Tóquio e Pequim. Há, por outro lado, 20 embaixadas estrangeiras em Díli. Timor-Leste acolhe a presença de grande número de organizações internacionais.
Embora reconhecido a Richard Savage por nos indicar generosamente caminhos para sairmos da “marginalização regional”, atrevo-me a desafiar visões anglo-saxónicas centradas na ideia de que o mundo seria um lugar melhor se nos rendêssemos todos ao inglês.
Os nossos irmãos na Papuásia-Nova Guiné, Libéria, Zimbabué, Suazilândia, para referir apenas um pequeno grupo de Estados da Comunidade Britânica, podem, aliás, rejeitar o pressuposto. E franceses,alemães, italianos, suecos poderão discordar também.
O inglês é uma língua importante, quase incontournable, se quisermos aceder a informação científica e tecnológica, ao comércio internacional ou mercados financeiros. Mas o facto de um idioma ter utilidade regional ou global não conduz inevitavelmente à conclusão de devermos abandonar as raízes históricas e culturais e fazê-lo língua oficial.
E ainda que fôssemos persuadidos, por Savage e outros académicos, da “superioridade” da língua inglesa,adoptando-a como língua oficial, enfrentar-se-iam desafios quanto a recursos financeiros e humanos exigidos para pôr em prática tal política.
De novo, perguntaria aos meus irmãos da Papuásia-Nova Guiné, Libéria, Suazilândia, Zimbabué, África do Sul, etc., se, após a sua experiência de uso do inglês há muitas gerações, essa língua, dir-se-ia milagrosa, os libertou de conflitos sociais e da pobreza.
A sua resposta poderia bem ser: “O inglês é muito útil, dá-nos acesso a informação indispensável ao desenvolvimento, mas em si mesma não é um atalho da pobreza para a prosperidade. Basta ver a situação em que nos encontramos, após gerações de administração pelo Reino Unido e de pertença à Comunidade Britânica.”
Admito que nem todos somos tão práticos como os nossos irmãos de Singapura. Confesso que somos, na maioria, algo românticos, temos uma perspectiva histórica, porque temos uma longa história, nem sempre nos orientamos exclusivamente pela mentalidade comercial e prática ao estilo de Singapura. Significa isto estarmos condenados a um progresso lento, apenas por termos uma sociedade multilingue e uma cultura multifacetada, vibrante e colorida, que nos inclina a desfrutar mais frequentemente a beleza da vida? Tenho a certeza que não.
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