sábado, 26 de maio de 2012

A AMPLA CIDADE



Rui Peralta

Da Síria e do desespero

O desespero dos desesperados. Este é um estado de espirito que atravessa esta “nave espacial Terra ” (no dizer de Buckminster Fuller). O desespero que toma forma em indignação, depois em esperança (como se partíssemos á conquista de um Paraíso), em que tudo á nossa volta é uma possibilidade vertiginosa e depois a queda na realidade, (muitas vezes o regresso ao Inferno) e aos poucos, de forma indiferente, apática, transforma-se de novo em desespero. Vou falar, hoje, de um exemplo deste processo que nos conduz do desespero á esperança e daí a uma incógnita. Vou aproveitar a peregrinação de Chris Two, da qual vou relatar a sua passagem pelo Oriente do Paraíso para falar da Síria (pela segunda vez, pois já tinha referido a Síria na coluna Bosque em Flor, Teerão via Damasco, publicado no Pagina Global em 17/05/2012). Mas primeiro o relato de Chris Two.

O Oriente do Paraíso é uma região vasta, caracterizada por uma paisagem variável, algumas vezes transformista, que engloba montanhas altíssimas, prados verdejantes, selvas, lagos, rios e oceanos. Chris e o Anjo começaram a sua Peregrinação aos Paraísos do Oriente entrando pelos Paraísos de Leite e Mel, também conhecidos pelos Paraísos do Profeta de Alá. A luxuosa antecâmara deste Paraíso era uma enorme pérola, oca, com uma bela mulher em cada canto, prontas a serem possuídas pelos crentes bem-aventurados. Daqui as almas seguem por vias diferentes. Umas, as almas mais puras, vão para o Celestial Paraíso das Mil e Uma Noites, cujo caminho é por uma montanha de grande altitude que no cume tem uma ponte sobre um profundo abismo. Passando a ponte, as almas entregam-se aos prazeres sexuais e aos jogos eróticos. As almas de ambos os géneros estão em igual número. Chris e o Anjo pernoitaram neste Paraíso de delícias eróticas.

No dia seguinte visitaram o Celestial Paraíso dos Paraísos, uma região deslumbrante, onde os tapetes voadores transportam as almas recém-chegadas, levadas para pequenos e frescos bosques, nas proximidades de prados luxuriantes e bebem licores refrescantes. Os rios são de mel e de leite, as virgens usam vestidos com decotes sedutores, os jardins são compostos pelas mais exóticas e belas plantas e flores, vinhos e perfumes estonteantes, incenso dos mais variados odores e aromas, frutos de extrema doçura e sumarentos, aves multicolores, música celestial e muita, muita sensualidade. Mais de 72 virgens, jovens de olhos escuros, aguardam o mais simples dos crentes. Cada momento de prazer dura mais de mil anos e as faculdades masculinas são aumentadas cerca de 200 vezes. Também as almas crentes das mulheres têm lugar aqui, embora o Profeta não especifique as companhias masculinas das eleitas, para não despertar o ciúme dos seus antigos maridos e assim possam manter a eternidade do seu casamento.

Chris e o Anjo pernoitaram várias noites neste Paraíso, a convite do Arcanjo Gabriel, antes de partirem para o Paraíso do Grande Oriente. Este é um Paraíso formado por 4 pisos. O primeiro piso é para as almas virtuosas. O segundo é reservado para os que morreram em serviço da causa pública. O terceiro é para as almas apaixonadas, que morreram de amor. O quarto piso é para os teólogos. Este foi o último Paraíso visitado por Chris e o Anjo. Existem mais de 800 Paraísos nesta região celestial a Oriente do Paraíso, só que todos eles estão vedados, pelo que o Anjo não levou Chris a visitá-los.

Na área dos paraísos vedados estão os Paraísos da Núbia. Alguns destes paraísos estão localizados nas mais díspares regiões como, por exemplo, o dos antigos egípcios que está no Sol, para o caso das almas mais virtuosas, ou nas diferentes constelações zodiacais conforme o grau de virtude. Sobre os Paraísos da Núbia o Anjo explicou: “Os Paraísos da Núbia são exclusivos e identitários o que os leva a vedar a entrada a quem não pertença á identidade a qual esse Paraíso é destinado. São conjuntos de pequenos Paraísos, em muitos casos de pequenas ilhotas, havendo alguns que os designam por Paraísos Arquipelágicos ou o Arquipélago dos Paraísos. Outra das características é a sua baixa densidade populacional. Muitas das almas africanas entram diretamente no Paraíso Cristão, a Ocidente, ou nos Paraísos do Leite e do Mel ou mesmo no Paraíso das Mil e Uma Noites, a Oriente.”

A viagem ao Paraíso havia chegado ao fim. Chris e o Anjo voltaram para casa.

O relato da peregrinação de Chris Two não termina aqui, (a um Paraíso corresponde um Inferno e falta a visita aos Infernos) mas por hoje já chega. Vou então falar sobre alguns casos de desespero e respectivas esperanças e incógnitas dos desesperados. Começo pela Síria.

Uma das palavras de ordem da elite dominante na Síria era: “Nosso presidente para a eternidade”. Havia, como há sempre, os bajuladores mais extremistas que alteravam o slogan, terminando-o com um “mais além da eternidade” (faz-me lembrar aqueles bonecos em que havia um, tipo astronauta, que dizia: “Para o infinito e mais além!”). É claro que este slogan foi nos tempos em que reinava a tranquilidade típica dos regimes burocráticos, policiais, que nascem dos compromissos internos de vária ordem, mas que cumprido o seu papel histórico de integração e consolidação da soberania nacional tornam-se estorvos á soberania popular. Quando as perturbações do descontentamento começaram (e não estou a falar em que classes sociais esse descontentamento começou), o slogan anti-situacionista roubava a eternidade ao slogan do regime e contrapunha: “Liberdade para a eternidade, queiras ou não, Assad!”. Quando a situação deteriorou-se o slogan dos partidários de Assad mudou perigosamente para: “Al-Assad ou nada!” o que deixava o país num vazio, entregue á espiral de violência e quebrava as alianças estabelecidas entre as diversas forças, que de uma forma ou outra, permitiam a existência do status quo sírio. É que quando um regime institucional coloca as coisas nestes termos, em que nada ficará se existir uma mudança, mesmo que requerida pela soberania popular, está a criar um vazio politico, não deixando outra solução que não seja a confrontação directa.

Mas o que contribui mais para o desespero do povo sírio é o facto das suas aspirações legitimas estarem a ser aproveitadas pelos que não querem outra coisa senão o contrário do amplo movimento de protesto. É assim que surgem os abutres do costume a tentar aproveitar a ocasião, estabelecendo organizações fantoches e transportando a Síria para uma situação de conflito armado, destruidor das infraestruturas e causador do enfraquecimento e empobrecimento geral da grande nação Síria, abrindo as portas á ingerência imperialista, naquilo que é uma fotocópia da forma como se destruiu a Líbia. Este é o maior desespero do povo sírio. Das classes medias (até aqui beneficiadas pelo regime, mas que precisam de uma abertura para ascender directamente ao poder e aumentar os seus rendimentos, avançando na liberalização económica) e dos trabalhadores e classes desfavorecidas (que desejam uma mudança no sentido de uma sociedade de maior justiça social, condição que o actual regime já não tem condições para satisfazer).

Pelo comportamento típico, pequeno-burguês da oposição síria, que não se consegue entender, nem mesmo em questões tão elementares como a questão do referendo constitucional, que foi uma excelente oportunidade perdida e que deixou os trabalhadores e os mais desfavorecidos na expectativa de manter a sua aliança com o regime, podemos ver que este movimento é conduzido pelos interesses das classes que até aqui beneficiaram do regime, em termos económicos, mas que chegaram a um ponto em que sentem necessidade de mudança. Só que nunca o conseguirão enquanto não reforçarem as bases populares deste movimento.

Salama Kayleh, um intelectual árabe de esquerda, de origem palestiniana, com 57 anos de idade, descreve o regime de Assad como a maior máfia da região. Responsável por uma publicação de esquerda, produzida em Damasco, Kayleh foi detido pela polícia politica Síria porque a publicação da qual ele é responsável ter publicado um artigo intitulado: “Para libertar a Palestina…queremos que caia o regime!” Preso, torturado e deportado para a Jordânia, Salama Kayleh é um exemplo da grande centrifugação social que se vive na Síria e que passa as fronteiras deste país, levando a tomadas de posição directas, no Líbano (onde existem escaramuças constantes entre facções libanesas pró e contra Assad, para além de confrontos entre os refugiados sírios centrados no território libanês) e na Palestina, onde a questão da queda de Assad é vista como a perda de uma aliado, por uns e de remoção de um obstáculo que impede um confronto directo com Israel, por outros.

Este é um momento de indefinição politica para os trabalhadores sírios. Parte dos seus dirigentes políticos e sindicais preferem manter uma aliança com o Partido Baas de Assad, para tirar proveito do seu enfraquecimento e impor políticas populares. Esta posição é tão válida como a contrária, defendida por outros líderes sindicais e políticos, como Salema Kayleh, que incorporam o movimento de protesto. Só que ambas as posições comportam riscos. Ë que o movimento de protesto está minado pelas incorporações reacionárias árabes e fundamentalistas islâmicas, que pretendem, no quadro das novas alianças imperialistas, um estabelecimento de um estado teocrático, que dominará numa Síria dividida, permitindo um assalto imperialista ao Irão. Por outro lado, as forças populares não são suficientemente fortes para impor a sua vontade á elite burocrática e á burguesia nacional dominante, representadas por Assad. Enquanto esta indecisão prosseguir, o desespero das indefinições prevalecerá, levando á destruição por putrefacçäo da sociedade síria.

A força politica mais importante da oposição é o Conselho Nacional Sírio (CNS), força reconhecida pela Liga Árabe e pela OTAN. O CNS não é uma identidade coesa. Os seus dirigentes passam o tempo em discussão interna ou com o perigoso Exercito Livre Sírio (ELS), uma organização armada onde se encontram, maioritariamente, as forças reacionárias islâmicas e militares dissidentes do regime. O CNS é composto pelo Irmandade Muçulmana, pelo Partido do Povo (uma dissidência importante do Bureau Politico do Partido Comunista Sírio), as duas principais organizações e depois por uma miríade de pequenos partidos políticos laicos, religiosos, social-democratas, trotskistas, maoistas, liberais, etc.

Alheio ao CNS, o movimento estudantil ocupou a Universidade de Alepo, denominando-a Universidade da Revolução e recebendo o comité de observadores da ONU, que visitou o campus universitário. Mas se o movimento estudantil aparece como força motora da oposição a Assad, em contrapartida as forças sindicais limitam-se a observar as movimentações do CNS onde têm alguns dos seus dirigentes, membros do Partido do Povo e das tentativas de assumir a transição levadas a cabo pelo Baas (que tem uma importante componente sindical) e do que resta do Partido Comunista Sírio, que formam, com outros partidos (como o Partido Nacional Social e o Partido Nacional Democrático Nasser) a Frente Nacional Progressista (FNP), suporte político de Assad.

Numa tentativa de reconciliação a FNP apostou o trunfo do referendo á nova Constituição e ganhou pontos, pois a participação popular ao referendo foi elevada e maioritária, o que legitimou o governo de Assad e que constituiu uma cedência importante, mal aproveitada pelo CNS e que o isolou em grandes sectores da sociedade síria. De qualquer das formas um facto há a salientar: os sírios não querem ver o seu país destruído e opõem-se fortemente á agressão imperialista. Se a luta imperialista vai prosseguir com ou sem a clique de Assad, isso é outra questão, mas que só ao Povo Sírio cabe determinar e não aos USA, UE, OTAN ou Liga Árabe. E esse é também um acto de oposição e que está para além da vontade de Assad ou dos imperialistas. Chama-se Soberania Popular. Fora dela reina o desespero.

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