terça-feira, 29 de maio de 2012

A AMPLA CIDADE



Rui Peralta

O faraó e o sacerdote

A sociedade egípcia sempre foi vista como sendo estática, um pouco como as imagens gravadas nas pirâmides egípcias. Mas as aparências sempre iludem e tanto no passado como no presente o mundo egípcio sempre foi de uma dinâmica própria, especifica, coo todas as sociedades. No momento presente os egípcios vivem uma profunda agitação social e politica, uma inquietude social, um turbilhão interno, inserido no turbilhão global, que iniciou-se num centro em deslocação e espalhou-se às periferias imediatas. E, um pouco como acontece com os mecanismos das tempestades, as dinâmicas internas chocaram com as dinâmicas externas, atirando o Egipto para uma imensa tempestade.

A dinâmica da sociedade capitalista não é um mero efeito de subjectividade de uns em relação a outros. Os seus componentes sociais são categorias funcionais da mercadoria. Nela não pode haver uma classe de consciência (que não tem nada a ver com a consciência de classe) formada por uma das categorias, a qual tivesse o papel de pôr termo á sociedade de classes. A dinâmica da sociedade capitalista só pode ser quebrada destruindo as categorias de mercadoria. Só aí será iniciada a emancipação, passando da luta de classes, própria da dinâmica capitalista e que atinge a sua máxima expressão na sociedade democrática, aquela que é naturalmente capitalista, á guerra de classes, a expressão da nova relação de forças, já fora do quadro da dinâmica da mercadoria. Até lá as lutas são passos, umas vezes firmes, outras titubeantes, em busca de espaços de negociação e de alianças tácitas entre categorias de mercadoria.

E foi assim que os egípcios viram-se face a uma democratização (necessária e exigida pelas amplas camada populares) em que foram auxiliados por aqueles que eram os senhores do antigo faraó. Talvez por isso os egípcios sintam-se inquietos. É a inquietude da perplexidade. Mas vou interromper por breves instantes o assunto de hoje, o Egipto e as eleições, para continuar o relato da peregrinação de Chris Two.

O Anjo começou: “Conheceste o Paraíso, agora vou levar-te ao Inferno”. “Ir ao Inferno, Anjo, é perturbador”, disse Chris Two, demonstrando algum receio pela proposta do Anjo. “Denoto algum receio…” O Anjo acariciou-o e sorriu. “Não é receio” respondeu Chris á carícia do Anjo, continuando: “A ideia da existência de um Inferno é profundamente injusta, para com a noção de Deus. Os poderosos, os mentecaptos, os dementes, os que vivem da cobiça e da intriga, criaram, divulgaram e implementaram a marca Inferno. Serve-lhes os interesses e assenta como uma luva na noção que essa escumalha tem de Deus. Um Deus tirânico, Senhor dos Exércitos, impiedoso, paternalista, racista, classista, tenebroso…Assusta-os a ideia de um Deus que deixa a sua obra criadora em plena liberdade, consciente do livre arbítrio e do livre pensar, do valor crítico e autocrítico, um Deus que permite o erro, porque só o erro permite o ato de corrigir, noção base de aperfeiçoar, de criticar, de analisar…Um Deus fora-da-lei, porque as leis são dos Homens e para as sociedades dos Homens, porque para Deus o Homem está para além da Lei. É inconcebível para esses senhores um Deus que se reflete na praxis da Liberdade. Não! Isso nunca! Para eles só há um Deus! O tirano, o que coloca a lei acima do Homem, o que separa os povos e define as fronteiras, o que gera a diferença entre ricos e pobres, entre possuidores e desapossados, entre os que poupam porque têm em demasia e os que esbanjam, porque o dinheiro não chega para o pão, entre os que cultivam o trabalho, porque são patrões e os que não o cultivam, porque estão desempregados…e aí temos o Inferno…na Terra. A condição desumana, a ignorância, a indiferença, a distorção dos valores, a gula, enfim…Deus é Liberdade e habita no Homem. Todas as restantes patranhas são instrumentos de domínio, servem para enganar a fome e para a calar. Quando não resulta, sempre há o Inferno, para os que não se calam e proclamam, bem alto, a fome que sentem.”

O Anjo ouviu Chris em silêncio. Depois replicou: “Tens absoluta razão. Exceto num pormenor: e se Deus esquecesse? Falas na injustiça dos Homens mas e se o Inferno não for apenas esse mecanismo de domínio que tu tão bem descreveste? Já pensaste? O Inferno ser consequência de um esquecimento de Deus? E este ter passado a culpa para o Homem? E o Homem ter assumido essa culpa, até porque serve os interesses dos que querem exercer a Tirania e a exploração sobre os seus semelhantes? O Inferno começa na Terra e é vastíssimo, não se sabendo muito bem onde acaba, quais as suas fronteiras. Tem uma localização, um ponto de referência para as almas, mas faz-se sentir na vida, na Cidade dos Homens, através da infelicidade, da cegueira dos sentimentos, da guerra, da doença, da pobreza, da Tirania, do abuso, da violência…Seria uma lista extensa designar as manifestações do Inferno na vida dos Homens. Localiza-se por debaixo do Paraíso, mas não nas regiões celestiais. Para se chegar ao Inferno há que ficar em frente a Jerusalém e descer pelo Templo. Aliás tudo o que cai do Paraíso acaba no centro do Inferno, se atravessar o Templo. O sábio Alabar, viu o Inferno ao identificar o Paraíso na inversão de um sorriso. Descobriu o sábio que o Inferno umas vezes é um pântano, outras um deserto, outras terras vulcânicas. O ar cheira a enxofre e as almas condenadas têm um odor nauseabundo. É muito variável o Inferno, Chris. Para os escravos capturados em África, o Inferno era a embarcação dos negreiros. Este Inferno localizava-se no mar imenso. Para os judeus na II Guerra Mundial localizava-se em Auschwitz e outros campos de concentração. Para os Palestinianos situa-se em Gaza e nos campos de refugiados. Há de facto muitos Infernos criados pelos Homens, mas porque Deus esqueceu-se. E ao esquecer, foi esquecido” “Entendi. Mas diz-me uma coisa antes de partirmos: Inferno e Paraíso são interdependentes?” Perguntou Chris.

O Anjo sentou-se e respondeu-lhe: “Vou contar-te o que se passou com um amigo, chamado Raymond, há alguns anos. Raymond estava cansado, não tinha dormido bem nas últimas noites, acossado por insónias e pesadelos e recostou-se no sofá da sala, acabando por adormecer. Foi um sono profundo e reconfortante. Sonhou que tinha feito uma viagem pelo Paraíso. Na parte final do sonho um Anjo deu-lhe uma flor. Foi então que Raymond despertou. Ficou surpreso ao acordar pois nas suas mãos estava uma linda flor. Emocionado teve um ataque cardíaco e morreu. Quando a sua alma despertou estava no Inferno e um demónio ofereceu-lhe uma flor, igual á que lhe oferecera o anjo no Paraíso. Raymond, intrigado perguntou ao demónio que flor era aquela. O demónio respondeu: A flor da morte. O Inferno e o Paraíso necessitam um do outro, Chris. Alimentam-se mutuamente. Conheceremos o Bem sem termos perceção do Mal, ou vice-versa? Claro que não. Um não existe sem o outro.”

Chris refletiu prolongadamente, deitado na cama, preguiçosamente observando o Anjo. Depois, acariciando o rosto do Anjo perguntou: “Vamos?”

Vamos então voltar ao Egipto. Desde a queda de Mubarak os USA mostram-se nervosos e expectantes em relação ao seu anterior Estado agenciado, em que o Egipto se tinha convertido, de forma paulatina, após a morte de Nasser. Por várias razões, a começar por Israel, cujo governo mostra-se preocupado com o que vai acontecer ao tratado de paz em vigor entre os dois estados. Ainda no mês passado o Egipto cortou o envio de gás natural a Israel, aumentando o nervosismo sionista, que segue com particular atenção o percurso dos seus vizinhos desde que nas eleições legislativas de finais do ano passado, os candidatos islâmicos obtiveram uma campanha vitoriosa.

Parece que os USA optaram por seguir, em relação ao Egipto, uma política que pode ser designada por “pau de dois bicos”. O primeiro “bico do pau” consiste em ampliar os contactos e as relações com a Irmandade Muçulmana e o segundo “bico” foi a “produção” de um candidato amigável para com o Ocidente. Nasce assim a candidatura de Amir Musa, um ex-ministro das Relações Exteriores de um dos governos de Mubarak e que foi também Secretário-Geral da Liga Árabe, até ao ano passado.

Vistos que estão os “bicos”, passemos agora ao “pau”, composto por três elementos fundamentais: 1) impedir um candidato presidencial de consenso entre os islâmicos e as restantes forças que compunham o amplo movimento democrático de massas que fez cair o regime de Mubarak; 2) Fazer passar a imagem de que os USA apoiam o candidato mais capaz de solucionar os problemas económicos egípcios, mantendo a paz e o papel estratégico do Egipto na região; 3) restaurar a política externa da era Mubarak.

Quanto á Irmandade Muçulmana (IM), depois de um período em que negaram a participação nas eleições presidenciais, preferindo consolidar o seu poder politica após a vitória nas legislativas, acabaram por apresentar um candidato. No entanto este processo foi atribulado efeito de impasses e indecisões. Num primeiro momento a IM justificou a sua posição de ausentar-se nas eleições presidenciais, argumentando que não queriam perturbar o Ocidente, nem ter que enfrentar dificuldades ou sanções como aconteceu nos Territórios Palestinianos com o Hamas. Mas, os USA enviaram diversos sinais, em Fevereiro e Março, que não colocavam quaisquer objecções a um governo dirigido pela IM ou a um candidato presidencial do Partido Justiça e Liberdade (PJL), o braço político da IM. Tal bastou para que o Conselho Militar que governa o Egipto concedesse o perdão ao homem forte da IM, Jairat Al-Shater, condenado durante o regime de Mubarak, permitindo que a IM o apresentasse como candidato às eleições presidências. Mas a IM acabou por nomear uma figura menos carismática mas mais consensual e moderada, o Dr. Muhammad Mursi, dirigente do PJL.

Além de Musa e Mursi, concorreram Abdelmoneim Aboul Fotouh (um ex-IM), o nasserista Hamdin Sabahi (que conseguiu consensos com diversas forcas politicas laicas de esquerda), Jaled Ali, o ex-juiz Hisham Bastawisi e Abol Izz Al-Hariri, os três candidatos de uma esquerda dividida. Como a Comissão Eleitoral invalidou uma lei aprovada pelo parlamento, que impedia os antigos altos cargos do regime de Mubarak de concorrer às presidenciais, o General Ahmad Shafiq, o ultimo primeiro-ministro de Mubarak, apresentou-se á corrida eleitoral. De fora ficaram os salafistas, impedidos de apresentarem candidato pela Comissão Eleitoral e o General Oumar Suleiman. O ex-vice presidente de Mubarak, cuja candidatura foi também impedida pela Comissão Eleitoral.

Quanto aos USA, montaram na sua embaixada no Cairo uma sala de operações em ligação directa ao Departamento de Estado em Washington, onde fazem o acompanhamento ao processo eleitoral. Vários experts norte-americanos e europeus incorporaram-se á equipa eleitora de Musa, criando uma campanha agressiva. Musa foi também o único candidato visitado pelo senador John Kerry, o presidente do comité de relações exteriores do Senado norte-americano. Mas não foi suficiente. Os resultados ainda não oficiais revelaram que os dois candidatos que passaram á segunda volta foram Mursi (da IM) e Ahmad Shafiq o último primeiro-ministro de Mubarak.

Segundo parece votaram apenas 47% dos eleitores, o que revela uma fraca participação eleitora. Perante estes resultados aos norte-americanos resta-lhes o “segundo bico do pau”. Quanto a Shafiq é uma imprevisível possibilidade de descanso para os yankees. Ou não.

O problema é para o Povo. É que entre um faraó e um sacerdote, o diabo que escolha…

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