Está caladinho
José Manuel Pureza – Diário de Notícias, opinião
Primeiro facto: um tribunal deliberou mandar apagar do blogue dos Precários Inflexíveis os comentários a um post que relatavam experiências pessoais de relacionamento laboral com duas empresas que evidenciam grosseiras violações das leis do trabalho por parte desses empregadores. O tribunal não cuidou de diligenciar no sentido de serem apurados os factos relatados que, se se confirmarem, são ilegalidades graves. A verdade ou falsidade dos relatos não importou ao tribunal. Não, a pedido de uma das empresas, o tribunal entendeu que a denúncia das ilegalidades era difamação e que o que realmente importa defender é a honra de uma entidade acusada reiteradamente, por quem nela trabalhou, de desonrar as suas obrigações legais. Daí ao silenciamento foi um passo.
Segundo facto: o reitor de uma universidade pública afirmou, em reação a uma ação de protesto de estudantes contra os cortes no financiamento do ensino superior, que "se estivéssemos seis meses todos calados, não criássemos mais problemas do que os que já existem e deixássemos as coisas correr, daqui a seis meses, trabalhando, veríamos que as coisas até evoluíram melhor do que o que pensámos". O argumento do referido reitor é que "já chega o problema que temos, que é tão grave e estamos todos os dias a inventar novos números, coisas depressivas, os economistas a fazer previsões catastróficas que depois não se confirmam".
Não falemos, pois, do desemprego, nem da precariedade nem da perda dramática de valor dos salários e das pensões. Não falemos das entregas das casas aos bancos por incapacidade de pagamento dos empréstimos pelas famílias nem das falências em catadupa. Não falemos da subtração de dois meses de ordenado aos funcionários públicos, nem da subida em flecha das taxas moderadoras nem da emigração da geração jovem mais qualificada que o País já teve. Tudo realidades que só se agravaram porque demos crédito às previsões catastrofistas dos economistas, claro. Tivéssemos tido a lucidez de calar a nossa indignação - sempre precipitada e má conselheira - e nada disto teria acontecido. Não falemos, pois, do coiso, porque o coiso é uma invenção depressiva que desaparece se estivermos calados e concentrados no que realmente temos de fazer, que é trabalhar e não fazer política nem discutir o que não é da nossa conta.
E nem pensar em falar de empresários sem escrúpulos que surfam a onda da entronização do trabalho precário e da facilitação dos despedimentos para rasga- rem a lei, viverem da fraude e mandarem os mais elementares direitos de quem para eles trabalha às malvas. Isso não é depressivo, é injurioso. Ainda se falássemos dos pobres que vivem na preguiça ou dos grevistas que só querem privilégios...
Falemos, pois, do país positivo. Falemos do grande esforço que o Governo está a fazer para nos tirar da crise (ups, perdão, escapou-se-me a palavra depressiva...), falemos do acerto das políticas que estão a dar força à economia, falemos da retoma à vista, falemos da disponibilidade tão generosa dos jovens para ajudar em campanhas de angariação de comida e roupa para os pobres. Falemos de inovação, de empreendedorismo, de mobilidade, de gestão estratégica e de competitividade, sobretudo de competitividade.
Façamos isto durante seis meses. Suspendam-se os debates no Parlamento, nos jornais e onde quer que seja. A única exceção é para o futebol, e mesmo essa só a respeito da equipa de todos nós, onde não há clubites nem divisões. Um dia acordaremos e estará tudo ótimo. A chanceler falará ao país e confirmará que assim é.
*Título PG
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