Luísa Melo – TVI24
Um povo com gritos calados à força, com lágrimas já secas de tanto uso e a teimar no português. Um país de fé, que sempre fez pela vida
Ao pensar em Timor do pós-referendo e antes de ser oficialmente independente podia reter-me para sempre na família com quatro filhos que me oferecia insistentemente o seu almoço. «Comemos todos um bocado menos». E à noite? A pergunta meia inquieta, quase incrédula, perante a enormidade dos destroços de uma pequena casa queimada agora reduzida a uma chapa de zinco por cima de um palanque onde todos dormiam. «Logo se vê».
Seria redutor dizer que Timor podia caber só nisto, até porque nesse mesmo dia vi o perdão. Ali, em Manatuto, a população perdoou os membros das milícias Mahadomi que lhes destruíram casas, animais, estradas, o sistema de rega, que agrediram família e amigos. Pediram desculpa, foram reintegrados e agora ajudavam a reconstruir o que tinham destruído.
Um povo com gritos calados à força, com lágrimas já secas de tanto uso e a teimar no português, nas bandeiras portuguesas enterradas no jardim e nas imagens de calendário de Nossa Senhora de Fátima coladas nas paredes. Nunca deixaram de rezar. Nunca perderam a fé, mesmo quando tudo se foi. Filhos, casa, marido.
Lá, naquele Timor Lorosae, onde por aqueles tempos contentores de plástico cheios de água faziam as vezes de frigoríficos; onde se procurava com um telefone satélite nas mãos o sinal necessário para enviar um texto; onde fora de Díli as casas de banho eram um buraco no chão, onde os «estrangeiros» iam fazendo negócio com os «estrangeiros», a preços de dólar; onde o restaurante sensação era uma casa queimada, toda negra, sem teto; onde Sérgio Vieira de Mello, vestido de branco, indicava o caminho... Lá, nesse Timor, as frases de Xanana, continuavam a ser lei e a ser repetidas. «Nós somos diferentes dos indonésios. Somos o que somos e devemos isso aos 400 anos de colonização portuguesa».
«Portugal não veio com armas, mas com uma cruz. São 450 anos da nossa história», proclamava bem alto Domingos Doutel Soares. Candidato a professor do ensino básico depois de décadas na resistência, nas Falintil, nas montanhas e na cidade; depois de detenções, torturas e rapto da família. Portugueses, dizia, «ensinem-me a ensinar».
No início do ano 2000, nos navios de guerra australianos estacionados ao largo da costa de Díli dançava-se o «Mambo Nº5», comprava-se água «Evian» a preços absurdos, jogava-se bilhar e «arrendar» um quarto «no barco» custava cerca de 200 euros por noite. Cá fora, num país onde apenas as estrelas e a lua iluminavam os caminhos, comia-se noodles, bebia-se cerveja e tuasabe a qualquer hora, homens e mulheres mascavam tabaco e os jovens obrigados pelo antigo ocupante a regressar para um país sem emprego, com futuro incerto e com uma língua que não falavam nem queriam, vagueavam, bebiam, passeavam sem qualquer brilho nos olhos. Uns depositavam toda a esperança em Portugal, outros não acreditavam em nada.
Vi catanas no ar, vi abraços amigos, vi meninos a cantar, vi os mais velhos a desenterrar palavras proibidas, vi o salve-se quem puder num momento de pânico em Batugade, vi mulheres vergadas pelo peso da lenha que carregam até locais de venda, ouvi os risinhos das adolescentes (são todos iguais, não é?), vi cadáveres (já ossadas) serem desenterrados em Oecussi, vi um crocodilo que comia gente, vi o isolamento de famílias que vivem no meio de nada, vi a fome, a fé, a indiferença, a morte em vida, vi a alegria sôfrega do reencontro de famílias separadas por uma fronteira e ouvi gritos em forma de insultos de pró-indonésios: «A culpa disto tudo é vossa. Nós estávamos bem assim». E até soube bem ouvir.
E volto à família de quatro filhos. «Obrigada, tenho comida. Não é preciso. Comam vocês». E tinha. Nesse dia duas jornalistas dividiram e devoraram às quatro da tarde um croissant folhado com dois dias e uma lata de atum. E não soube a pouco.
Seria redutor dizer que Timor podia caber só nisto, até porque nesse mesmo dia vi o perdão. Ali, em Manatuto, a população perdoou os membros das milícias Mahadomi que lhes destruíram casas, animais, estradas, o sistema de rega, que agrediram família e amigos. Pediram desculpa, foram reintegrados e agora ajudavam a reconstruir o que tinham destruído.
Um povo com gritos calados à força, com lágrimas já secas de tanto uso e a teimar no português, nas bandeiras portuguesas enterradas no jardim e nas imagens de calendário de Nossa Senhora de Fátima coladas nas paredes. Nunca deixaram de rezar. Nunca perderam a fé, mesmo quando tudo se foi. Filhos, casa, marido.
Lá, naquele Timor Lorosae, onde por aqueles tempos contentores de plástico cheios de água faziam as vezes de frigoríficos; onde se procurava com um telefone satélite nas mãos o sinal necessário para enviar um texto; onde fora de Díli as casas de banho eram um buraco no chão, onde os «estrangeiros» iam fazendo negócio com os «estrangeiros», a preços de dólar; onde o restaurante sensação era uma casa queimada, toda negra, sem teto; onde Sérgio Vieira de Mello, vestido de branco, indicava o caminho... Lá, nesse Timor, as frases de Xanana, continuavam a ser lei e a ser repetidas. «Nós somos diferentes dos indonésios. Somos o que somos e devemos isso aos 400 anos de colonização portuguesa».
«Portugal não veio com armas, mas com uma cruz. São 450 anos da nossa história», proclamava bem alto Domingos Doutel Soares. Candidato a professor do ensino básico depois de décadas na resistência, nas Falintil, nas montanhas e na cidade; depois de detenções, torturas e rapto da família. Portugueses, dizia, «ensinem-me a ensinar».
No início do ano 2000, nos navios de guerra australianos estacionados ao largo da costa de Díli dançava-se o «Mambo Nº5», comprava-se água «Evian» a preços absurdos, jogava-se bilhar e «arrendar» um quarto «no barco» custava cerca de 200 euros por noite. Cá fora, num país onde apenas as estrelas e a lua iluminavam os caminhos, comia-se noodles, bebia-se cerveja e tuasabe a qualquer hora, homens e mulheres mascavam tabaco e os jovens obrigados pelo antigo ocupante a regressar para um país sem emprego, com futuro incerto e com uma língua que não falavam nem queriam, vagueavam, bebiam, passeavam sem qualquer brilho nos olhos. Uns depositavam toda a esperança em Portugal, outros não acreditavam em nada.
Vi catanas no ar, vi abraços amigos, vi meninos a cantar, vi os mais velhos a desenterrar palavras proibidas, vi o salve-se quem puder num momento de pânico em Batugade, vi mulheres vergadas pelo peso da lenha que carregam até locais de venda, ouvi os risinhos das adolescentes (são todos iguais, não é?), vi cadáveres (já ossadas) serem desenterrados em Oecussi, vi um crocodilo que comia gente, vi o isolamento de famílias que vivem no meio de nada, vi a fome, a fé, a indiferença, a morte em vida, vi a alegria sôfrega do reencontro de famílias separadas por uma fronteira e ouvi gritos em forma de insultos de pró-indonésios: «A culpa disto tudo é vossa. Nós estávamos bem assim». E até soube bem ouvir.
E volto à família de quatro filhos. «Obrigada, tenho comida. Não é preciso. Comam vocês». E tinha. Nesse dia duas jornalistas dividiram e devoraram às quatro da tarde um croissant folhado com dois dias e uma lata de atum. E não soube a pouco.
2 comentários:
Fotografia de David Dare Parker.
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