quarta-feira, 4 de julho de 2012

Brasil - Kucinski: “MÍDIA HOMOGÉNEA, CONSERVADORA E NEOLIBERAL”




Larissa Cabral - Desacato, com foto

Homogênea, conservadora e neoliberal são alguns adjetivos que o jornalista, escritor e ex-professor da USP, Bernardo Kucinski usou para descrever a mídia brasileira. Em passagem por Florianópolis, além de dar aulas sobre Jornalismo e suas especializações e caminhar na praia do Campeche, ele também afirmou que há uma preguiça geral na leitura e consumo das produções jornalísticas, no Brasil, e que vivemos em uma cultura essencialmente autoritária.

Sem papas na língua, Kucinski falou sobre Jornalismo Econômico e Jornalismo Político, criticando o modo de produção e consumo atuais, e sobre a possibilidade (ou não) de ser fazer algo diferente e divergir das coberturas tradicionais.

“Na minha idade eu já não tenho medo do que eu falo, entende?”

Desacato: Em certa ocasião, você afirmou que não existe Jornalismo Político no Brasil. Como isso se sustenta?

Bernardo Kucinski: Foi uma frase um pouco precipitada. Não é que não existe, mas ele é pouco profissional. Temos alguns repórteres, mas há poucos analistas políticos. Não é como no tempo da ditadura, quando tínhamos o Carlos Castelo Branco, que produzia uma coluna política que era referencial, todo mundo ia ler. Atualmente, a maioria dos analistas com mais acesso ao poder, com mais fontes, que conhecem mais as elites, são colunistas de economia, que de vez em quando falam de política, mas, não são aqueles analistas referenciais. Então, quase não existe. Além do mais, é uma cobertura pouco profissional por ser muito promíscua com os próprios interesses políticos.

O motivo disso é o próprio sistema político brasileiro, no qual a mídia é parte do próprio bloco de poder e não uma instituição independente, que tenta fazer a mediação entre os grupos e as forças em jogo. Ela é parte do próprio bloco de poder tradicional, característica demarcadora da mídia na América Latina.

Além disso, existe um sistema capilar de poder, através dos meios de comunicação, que o pessoal chama de coronelismo eletrônico, uma associação com a velha ideia dos coroneis da República Velha, que formavam um sistema de poder. Atualmente, tem-se os políticos regionais como donos de emissoras de rádio, repetidoras de televisão e jornais. Quando não são donos diretos, eles têm laranjas ou familiares. São mais de cem. Então, esses sistemas regionais de domínio político, que usam também a mídia, se articulam com o sistema nacional. Nessa configuração, fica muito difícil para um jornalista fazer um trabalho de Jornalismo Político, minimamente independente.

Há um outro problema, que é nosso sistema eleitoral, basicamente corrupto na sua essência. Temos eleições de dois em dois anos e com isso, vêm as campanhas. Nas campanhas, os políticos contratam assessorias e, em geral, vão pagar esse serviço depois que são eleitos, através da contratação dessas assessorias para prestar serviços ao governo.

O espaço que temos para fazer Jornalismo Político autêntico, independe, é muito pequeno e a maior parte dele fica na superfície dos fatos, futricas, pequenas brigas, entre outros. É um Jornalismo mais tático do que estratégico.

D: Quais as consequências para sociedade, diante desse cenário?

B. K: A sociedade conta com uma cobertura toda viciada e é claro que a consequencia é ruim, mas isso se deve, em parte, pois nossa estrutura política inteira está ruim. Você não conseguiria mudar o jornalismo, sem mudar a própria maneira de se fazer política. Atualmente, estou convencido de que há um foco de anti-democracia, no nosso sistema político. Acredito que ele precisa ser modificado profundamente em relação a questões como financiamento de campanha, emendas no Congresso, entre outros. Todos esses mecânismos tinham que ser eliminados.

A sociedade percebe que os mecanismos estão deteriorados e o tratamento que a mídia dá agrava essa percepção e, como não se oferece muita alternativa, as pessoas estão enfadadas da política, estão enojadas. Isso é muito perigoso porque você começa a querer de volta a ditadura, por exemplo. Os partidos não têm ideologia e isso não é só no Brasil. Em outros países, esse fenômeno também está acontecendo: fisiologismo, financiamento ilegal de campanha. Há casos na França, em Israel, na Grã Bretanha, entre outros.

D: Para você, quais são as principais características da mídia tradicional brasileira?

B. K: É uma mídia, do ponto de vista técnico, moderna; graficamente, avançada e contemporânea, tanto os tabloides quanto os standard. É uma mídia, ideologicamente, homegênea demais, sem pluralismo. Todos os jornais apresentam as mesmas posições. É como se existisse um super editor, dependendo sempre as mesmas posições conservadoras, neoliberais, são contra a intervenção do Estado na economia, são contra a ampliação de programas sociais.

É uma mídia de cultura ainda oligárquica, muito mais homogênea do que já foi antigamente, quando havia jornais mais republicanos, mais católicos e hoje você não vê nada disso. Trata-se de uma mídia de pequena circulação, se compararmos com o tamanho da população. O Brasil não deve vender, imagino, mais do que 10 milhões de jornais diários, juntando todas as publicações existentes. Numa população de 200 milhões de habitantes, isso é muito pouco. Se você pegar os três jornais de referência nacional, devem somar 1 milhão de exemplares apenas. É uma pequena elite que lê esses jornais.

D: Como a população brasileira consome o conteúdo produzido pelas mídias tradicionais do Brasil? Existe, afinal, leitura crítica?

B. K: Você sabe como a qualidade do conteúdo é ruim, né? As pessoas nem percebe direito o que estão lendo. Lêem por cima, lêem somente aquela matéria que interessa. Até há coisas bem escritas, mas tem muito besteirol no meio. Isso é um fenômeno antigo, todos deixam passar, não só o editor. Se o leitor reclamasse, no dia seguinte não aconteceria mais, haveria um processo de correção, mas, o leitor também deixa passar. Todos deixam. Há uma preguiça geral na leitura, é um fingimento. Na internet, já não está dando para fazer isso, pois, se você escreve uma besteira, já vem uma saraivada de intervenções.

D: De modo geral, qual é a linha editorial que segue a cobertura brasileira sobre outros países?

B. K: Em primeiro lugar, acredito que temos poucos correspondentes estrangeiros. Um dos motivos é porque é caro, mas também porque, no geral, a gente tem uma espécie de resíduo de mentalidade colonial, segundo o qual o que os Estados Unidos falam do mundo, a gente também fala. A gente só repete o que eles falam ou os franceses ou os ingleses. Temos alguns correspondentes estrangeiros experientes. O Estadão tem alguns, a Folha talvez tenha um ou dois. E há também alguns jovens freelancers, que os jornais contratam em certos momentos para ter uma cobertura local, onde a situação é quente. Mas, é uma geração menos experiente.

O que prevalece na nossa cobertura dos assuntos internacionais é a visão das agências de notícias internacionais, que é a visão dos outros e por isso, acabamos negligenciando toda aquela parte do mundo que eles também negligenciam. Então, a gente não conhece quase nada da América Latina, por exemplo. Eu estive há pouco tempo em El Salvador. Ninguém conhece El Salvador, nem eu conhecia. Recebemos muitas informações desnecessária sobre o cotidiano de outros países como EUA ou os da Europa, se o Obama tomou café da manhã ou não tomou, coisas que não interessam.

Há um desequilíbrio muito grave do noticiário porque a gente fica na dependência da visão que eles têm do mundo e não da nossa. Nós nunca tivemos uma boa reportagem sobre como era o regime da Líbia, assim como sobre a situação da Venezuela, somente aqueles artigos atacando o Chávez, que é o que os americanos fazem. Outro dia, eu quis saber como era a economia na Venezuela, o que é esse projeto econômico que eles falam, de socialismo bolivariano e não havia nenhuma informação na nossa imprensa. Então, tive que pegar de fora. A imprensa tradicional acompanha a Argentina, mais ou menos regularmente, e fica um pouco de olho no Chávez, no Evo Morales, mas não é uma cobertura substantiva.

D: Você afirmou que o Jornalismo Econômico brasileiro é muito focado nas previsões, sem análise de conjuntura, do acúmulo histórico. O que a sociedade perde com isso?

B.K: O Jornalismo Economico é forte também porque faz parte desse neoliberalismo valorizar o econômico, tudo é mercantilizado e analisado com o critério de se vai dar lucro ou não. De modo geral, é muito conservador e entabula disussões sobre como resolver problemas sempre sob uma ótica conservadora, de acordo com a qual o Estado tem que gastar menos, usando categorias que não interessam ao grande público.

O principal problema que eu vejo é a confusão sobre quem é o leitor. Temos jornais de leitura geral, mas com matérias que só quem tem empresas ou quem é do banco que vai se interessar. Há excesso no uso de jargões porque acham que quem vai ler entende de economia e, na verdade, poucos leitores realmente entendem.

Para fazermos um Jornalismo Econômico diferente, precisamos, antes de tudo, querer fazer. Se eu fosse desenvolver um projeto para um jornal de circulação geral, eu faria uma separação bem nítida de matérias para o grande público e matérias para o empresariado. Mas, mesmo nas materias para o empresariado, eu usaria uma linguagem que qualquer pessoa pudesse entender. Para fazer isso, o jornalista precisa entender muito do assunto, pois quando a gente não entende, não consegue simplificar.

No espaço para o grande público, eu abordaria assuntos como economia doméstica, poupança, moradia, custo de vida, defesa do consumidor e também sobre os dilemas econômicos que o país enfrenta para auxiliar a sociedade a se posicionar como cidadão. Na parte direcionada ao empresariado, eu trataria de temas relacionados ao processo de tomada de decisão, ao Congresso, mudanças na regulamentação, cenário mundial, essas coisas.

D: Qual é a relevância de se fazer um Jornalismo Economico de qualidade? É um segmento estratégico?

B. K: Eu acredito que não podemos entender a política sem entender a economia porque trata-se de interesses economicos, que vão se manifestar através da política. Então, é importante que as pessoas entendam quais são as grandes opções econômicas, quais são os grandes movimentos nessa área. Temos que saber isso para decidir em quem votar, quando chegar a hora.

D: É possível desenvolver uma boa bagagem na acadêmia e continuar aprendendo ao longo da carreira?

B. K: Nos cursos de jornalismo, não dá para aprender, só se os cursos mudassem de estrutura. Eu acho até que importante estimular os estudantes a fazerem um curso de Economia, de Sociologia, de História, de Antropolgia e, em cima disso, fazer um mini-curso de Jornalismo, focando na teoria do Jornalismo e, principalmente, na ética. Do jeito que os cursos de Jornalismo são estruturados, você sai de lá sem dominar nenhuma área do conhecimento suficientemente.

Você pode aprender na prática e dá pra aprender, devagarinho, aproveitando para crescer com cada matéria, paulatinamente. Ler é muito importante, mas também tem que gostar. Na economia, por exemplo, se não gostar, não adianta. É como na matemática: se você não gosta, não tem jeito.

D: Quem determina os critérios de pauta e de linha editorial, atualmente, nos veículos mais tradicionais do Brasil, na sua opinião?

B. K: Acredito que há várias forças que atuam no processo de agendamento, um processo muito difuso. Mas, predomina cada vez mais o agendamento por parte das pessoas interessadas em ocupar o espaço, não parte do interesse do Jornalismo. São demandas que chegam prontas, como no caso dos releases, empresas querendo promover eventos.

Há um processo de agendamento muito interessante que são os prêmios. Na área da Economia, por exemplo, há mais de 20. Então, os jornalistas são induzidos a escrever matérias para ganhar prêmios, matérias grandes, em geral. São vários os mecanismos para ocupar espaço na mídia. Os bancos, muitas vezes, apresentam relatórios supostamente neutros, mas que são para ocupar espaço na mídia. Os governos também são grandes agendadores naturais. São vários os processos de agendamento, mas poucos deles são originários da reunião de pauta da redação.

D: Qual é a opinião sobre a comunicação dos governos com a sociedade? É a melhor forma?

B. K: Eu tenho experiência com o governo Lula e acho que se comunicava muito mal. A comunicação ainda era muito precária em relação à dimensão do Brasil, e à importância e complexidade que é o aparelho de Estado brasileiro também por conta das características do sistema de poder. Os ministérios são de diferentes partidos políticos, então não há unidade na comunicação, no comando e no discurso, e não há procedimentos internos para definir o que comunicar. Creio que não mudou muito, não.

Era também uma comunicação pouco formal e acredito que os governos tem obrigação formal de comunicar. Tem que ser ritualístico, formalístico, tem que dar coletivas sobre o que é de interesse público. Aqui, as vezes tem, às vezes não tem. Uma hora vazam pra uma emissora, outra hora pra outra. O repórter tem o direito de procurar a exclusiva, o furo, mas o Estado tem o dever de informar através de todos por igual e com a informação mais plena possível.

D: Você também afirmou que o jornalista crítico ele é hostilizado pelo sistema. Quem é hostil? De onde vem esse sentimento? E como esse jornalista que diverge consegue se sustentar no meio?

B.K: Hostilizar é uma palavra um pouco forte, mas o jornalista que é crítico, do contra, tem um espaço muito limitado porque ele vai ferir o discurso única sobre determinados assuntos. Todo mundo diz que é assim e ele vai lá e diz que é assado, então, ele até pode dizer e alguns jornais, às vezes, até gostam de ter um profissional assim para demonstrar pluralismo. Mas, o jornalista não pode errar, tem que ser mais cuidadoso.

Na verdade, o que acontece também é que as redações são divididas horizontalmente no Brasil, você tem a massa de jornalisas na base, que nem é mais massa atualmente, são uns gatos pingados, e você tem a elite dirigente. Então, a elite dirigente tem a lealdade com os donos, por isso que recebem os cargos de confiança. Um jornalista que tenha a espinha muito rígida não chega a ser dirigente porque os proprietários gostam de ter os dirigentes em que possam confiar certa maleabilidade, em uma hora crítica e não tenham rigidez de princípios.

D: Você também afirmou que o brasileiro é um fingidor, envergonha em frente ao sistema. O que diz dizer com isso?

B.K: Quis dizer que o nosso jornalismo sobrevive numa cultura autoritária e que vem de anos de ditadura e isso não reflete apenas no regime político, mas as relações também são autoritárias na redação, nas famílias. Numa cultura liberal, a divergência é considerada necessária. O contraditório é importante porque faz parte do processo de se chegar à melhor solução e à verdade. Numa cultura autoritária, o contraditório é visto como algo negativo, prejudicial. Muitos jornalistas brasileiros, que tem altíssima consciencia política, na cultura autoritária, eles viram fingidores, não acreditam em nada do que estão escrevendo.

D: Como inserir esse discurso contraditório e ao mesmo tempo descontruir a imagem estigmatizada e pejorativa que grande parte da população tem dele?

B.K: É difícil. Essa estigmatização já faz parte desse autoritarismo, essa coisa de já botar um rótulo. Mas, de fato, no campo da esquerda, o discurso também é autoritário, como também observamos entre muitos ambientalistas, por exemplo.

D: Como figura a ética, no cenário brasileiro?

B.K: A ética está pouco presente, os abusos são muito grades, todos os dias: acusões baseadas em ilações, poucos fatos e provas, acusões sem que o acusado seja ouvido, muito jornalismo de dossiê, denuncismo. Além do mais, falta respeito às pessoas, às famílias. A ética tá mal na foto.

* Bernardo Kucinski foi militante estudantil durante o regime militar, preso e exilado; trabalhou como assessor da Presidência da República, durante o primeiro mandato de Luís Inácio Lula da Silva. Com uma tese sobre a imprensa alternativa no Brasil entre 1964 e 1980, obteve grau de doutor em Ciências da Comunicação pela USP. Ainda ganhou o Prêmio Jabuti de Literatura, em 1997, escreveu para o The Guardian , Carta Maior, Gazeta Mercantil e Airline Business.

Para mais informações sobre o entrevistado, clique aqui.

Foto: Paulo Pepe

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