sábado, 25 de agosto de 2012

DR. BORGES, MR. SACHS

 

Nuno Saraiva – Diário de Notícias, opinião
 
Foi há pouco menos de três meses. António Borges, privatizador-geral da República (PGR), abriu a boca para falar da "urgência" em reduzir salários. Perante o clamor gerado por tamanha alarvidade, lá veio a terreiro dizer que não disse o que tinha dito e que jamais defenderia uma política de empobrecimento. O que é facto é que ela aí está.
 
Esta forma de intervenção, "em defesa da destruição do que existe para, a posteriori, criar riqueza para os amigos", é típica dos homens da Goldman Sachs, como muito bem descreve Marc Roche, o jornalista francês autor do livro O Banco: Como o Goldman Sachs Dirige o Mundo.
 
E aquilo a que assistimos quinta-feira passada foi, mais uma vez, a verbalização da doutrina messiânica de Lloyd Blankfein, o homem que dirige o banco que, dizem as más-línguas, estará por detrás da atual crise financeira que abala o mundo: "Eu faço o trabalho de Deus."
 
Bizarra e incompreensivelmente, coube ao consultor do primeiro-ministro ser porta-voz das intenções do Governo - ou será de Deus? - para a RTP. Disse o Dr. Borges, ou melhor, o Mr. Sachs, que o que está em cima da mesa é o encerramento do Canal 2 e a concessão de tudo o resto - televisão e rádios públicas - por um período de 15 a 20 anos, ao operador privado "que der mais dinheiro". Não importa quem, nem de onde vem, desde que pague bem.
 
O Governo, que declarou guerra às parcerias público-privadas (PPP), parece preparar-se agora para, ele próprio, criar uma espécie de PPP comprometendo o Estado com o pagamento, a quem adquira a concessão, de uma renda de 140 milhões de euros por ano resultantes da taxa do audiovisual cobrada a todos os portugueses na fatura de eletricidade.
 
Mas o Dr. Borges, ou melhor, o Mr. Sachs, que, ao que consta, ainda não faz parte do Governo, disse mais. Garantiu aos potenciais interessados que terão total liberdade para despedir se entenderem que a RTP tem trabalhadores a mais, lançando assim o sobressalto na televisão e rádios públicas.
 
O "atraente" plano, na boca do Dr. Borges e de uma fonte do gabinete do ministro que tutela a RTP, é, antes de mais, uma flagrante violação do Programa Eleitoral do PSD e do Programa de Governo. O que neste capítulo foi prometido e está sufragado pelos eleitores é, concorde-se ou não, a alienação de um dos canais da RTP. Mas, já estamos habituados, que se lixem as promessas.
 
Em Portugal, existe uma cultura de que todos os governos são culpados, de que pelo facto de se tratar de uma empresa pública não tem de ser bem gerida. Esta é uma premissa absolutamente inaceitável. E este é o paradigma que é urgente alterar. Se se considera que a RTP custa dinheiro a mais - e admito que assim possa ser -, pois que se imponha uma gestão austera e profissional. Nunca esquecendo que quem escolhe as administrações da RTP e da RDP são os governos.
 
O que está em causa em tudo isto é saber se queremos manter um Serviço Público de rádio e televisão, em sinal aberto, ou se, pelo contrário, queremos ser pioneiros na Europa na aberração de acabar com este património que é, antes de tudo o mais, uma obrigação de qualquer Estado civilizado.
 
O Serviço Público de televisão existe, entre outras coisas, para garantir o pluralismo, os equilíbrios regionais, a difusão e preservação da língua, a divulgação cultural, a própria democracia. Isto para já não falar na memória coletiva de mais de 50 anos contida no arquivo histórico de valor incalculável que é propriedade de todos nós. Tudo isto é, naturalmente, da responsabilidade dos Estados.
 
Por definição, o Serviço Público não deve ser concorrencial e, por consequência, não pode reger-se por critérios de audiências mas sim de interesse público. O que contraria, naturalmente, a justificação do Dr. Borges, ou melhor, do Mr. Sachs, para encerrar a RTP 2 porque "é um serviço muito caro com uma audiência muito pequena". Por exemplo, o que a RTP fez nos últimos Jogos Olímpicos foi verdadeiro Serviço Público e de qualidade. Goste-se ou não, o que a RTP faz todos os anos com o Natal dos Hospitais é Serviço Público. Por mais desinteressantes que possam ser, a transmissão integral dos debates quinzenais na Assembleia da República é Serviço Público. Os programas infantis, todos os dias de manhã, são Serviço Público. A informação séria, rigorosa e de qualidade - não que a dos outros canais não o seja - é Serviço Público. E por aí adiante.
 
Como é óbvio, nenhum concessionário ficará com a RTP se não for para ter lucro, ficando refém de um contrato de Serviço Público. E o lucro só existe se houver audiências. Se este modelo avançar, que ninguém tenha dúvidas: jamais assistiremos a partidas vibrantes de ténis de mesa, a finais entusiasmantes de K-2, a teatro português na televisão e a tantas outras manifestações que não são de massas e, por isso, não geram audiências.
 
Resta pois saber o que motivou mais esta intervenção do Dr. Borges. Se foi apenas para testar a ideia na opinião pública, é grave; se se tratou de um anúncio formal feito por um funcionário que não faz parte do Governo, é muito grave; se a ideia era retirar do debate público os números assustadores da execução orçamental, é ainda pior, porque não se brinca com coisas sérias. Seja porque for, só resta parafrasear Almada Negreiros: cale-se o Borges, cale-se Pim!
 
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