José Manuel Pureza –
Diário de Notícias, opinião
Em quem podemos
confiar? Esta pergunta é a indignação do tempo presente sob a forma
interrogativa. Ela dá voz a uma das dimensões mais angustiantes daquilo a que
chamamos crise: a perda, um atrás do outro, de todos os suportes de confiança
que davam o mínimo imprescindível de previsibilidade e de estabilidade às
nossas vidas. A confiança é uma das principais vítimas desta crise. Dizem-nos
que agora é assim, que tem mesmo que ser assim. São loucos.
Pode um reformado
confiar num Governo que lhe nega a reforma para a qual descontou durante uma
vida inteira de trabalho? Que confiança pode um trabalhador ter num Estado que,
contra todas as leis - as dos códigos e as do bom senso - decide de um momento
para o outro retirar--lhe dois meses de salário? Os fins justificam os meios,
dizem-nos: se "cumprir as metas" colide com os poucos direitos de
quem pouco tem, pois afastem-se os direitos e ignorem-se as garantias dadas.
Mas de novo irrompe a pergunta: em quem podemos confiar se as metas que
justificam a súbita alteração das nossas vidas são todas rasgadas e foram todas
mal calculadas? Dizem-nos que confiemos porque nos mudam as vidas para diminuir
a dívida, só que a dívida cresce cada vez mais - em quem podemos confiar?
Não é certamente no
FMI. E não é por má vontade ideológica, é mesmo por incompetência deles. O FMI
estimava que o efeito de um corte na despesa pública ou de um aumento dos
impostos de um euro geraria um impacto negativo de cerca de 0,5 euros no PIB.
Fez todas as contas nessa base, destruiu as nossas vidas nessa base, trouxe
para a troika os seus modelos de formatação das economias nessa base. Mas agora
estima que esse impacto negativo esteja entre 0,9 e 1,7 euros, algo entre o
dobro ou o triplo da base das suas contas.
Talvez valha a pena
lembrar que o erro do modelo teórico do FMI relativamente aos multiplicadores
orçamentais já vem dos anos oitenta. E que todos os programas de ajustamento
estrutural desde então aplicados na Ásia, na África, na América Latina e agora
na Europa se fundamentaram nesse mesmíssimo modelo que está errado, destruindo
vidas e economias. E vale a pena sobretudo lembrar que depois de o FMI ter
batido em retirada do Brasil ou da Argentina, o crescimento destas economias
atingiu taxas extraordinárias. Enganasse-me eu na soma das pontuações do exame
de um aluno e teria de corrigir a nota, ficando sujeito a processo disciplinar.
Enganasse-se o funcionário bancário na contagem das notas de um depósito e
teria de repor a diferença do seu próprio bolso. Pois exijamos ao FMI a mesma
responsabilidade. Enganou-se nas contas? Pois então reponha tudo o que por sua
incompetência e irresponsabilidade destruiu.
O que está diante
de nós é muito simples: por cada euro poupado pela austeridade perdem-se entre
90 e 170 cêntimos, e eles vão ter de ser recuperados. A troika responderá: mais
austeridade porque não é o modelo que está errado, é a realidade que é teimosa.
Teimosos, criminosamente teimosos, são os que sabem que a sua prescrição está
errada e mesmo assim insistem em sujeitar sociedades inteiras a ela. Que pelo
meio fiquem milhões de vidas destruídas é um efeito tão colateral como as
vítimas de uma bomba de fragmentação no Afeganistão. Em quem podemos confiar?
Eu confio em quem
me diz a verdade. E sei que, se agora já não há quem discorde de que a
renegociação da dívida é um imperativo e que a austeridade destruirá a
economia, houve quem sempre o tenha afirmado e quem o catalogasse de
irresponsável. Estes últimos defendiam o rigor das contas do FMI. Não são gente
confiável.
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