Daniel Oliveira –
Expresso, opinião, em Blogues
Várias vezes me
perguntei da utilidade do nosso semipresidencialismo bastante mitigado e já
relativamente distante da versão francesa. Apesar de ser mais entusiasta do
parlamentarismo, como a forma mais evoluída e democrática de governo de um
povo, por conter em si as contradições da sociedade, reconheço que, em tempos
com os que vivemos, em que o estado de emergência nacional é potenciador de
todos os abusos de um executivo, a existência de um Presidente da República
poderia ser muito útil. Tendo a legitimidade do voto direto e não estando
diretamente envolvido na governação, o Presidente poderia ser fundamental como
regulador da democracia.
Cabe ao Presidente
garantir o regular funcionamento das instituições, impedir abusos de uma
maioria, fazer cumprir o espírito e a letra da Constituição e interpretar o
sentimento dos cidadãos. Muito teria que fazer por estes dias. Porque o regular
funcionamento das instituições e a Constituição são desafiados diariamente,
porque os abusos têm sido mais do que muitos, porque a coesão social é
dinamitada, porque a economia do País é devastada, porque o património do
Estado é desbaratado e porque, como indicam todas as sondagens, o sentimento
generalizado de revolta põe em causa a credibilidade da própria democracia.
Os poderes do
Presidente não são muitos. Mas são alguns. Uns bem práticos, outros simbólicos.
Mas todos eles dependem não apenas da existência do cargo, mas do peso político
e moral do detentor desse cargo. Com Cavaco Silva, temos três problemas de
partida: o Chefe de Estado tem medo de usar os seus poderes, é incapaz de ser
consequente com o que é evidente ser o sentimento nacional e tem enormes
fragilidades políticas e éticas.
Como tem defendido
a generalidade dos constitucionalistas, a inconstitucionalidade deste orçamento
de Estado quase não é motivo de debate. Poucas leis aprovadas no Parlamento - e
o orçamento é uma lei - foram tão evidentemente inconstitucionais. E, no
entanto, ela foi promulgada e apenas será pedida a sua fiscalização sucessiva.
O que quer dizer que, quando e se for declarada a sua inconstitucionalidade,
está criado um problema grave à vida política portuguesa. Maior do que aquele
que seria criado com a sua fiscalização preventiva, que obrigaria a maioria
parlamentar a corrigir imediatamente as suas opções orçamentais. Assistiremos a
um episódio semelhante ao do Orçamento anterior. A declaração de
inconstitucionalidade acabará por ser usada como argumento para agravar ainda
mais algumas medidas. Porque o Presidente não teve a coragem de assumir as
responsabilidades do cargo que ocupa.
Mas o problema é
ainda maior. Pela primeira vez, desde que elegemos diretamente o Presidente da
República, este é, segundo todos os estudos de opinião, um dos agentes
políticos mais impopulares do País. Mais do que todos os líderes dos partidos
da oposição e do que o líder do segundo partido do governo. Pior do que ele, só
mesmo o primeiro-ministro. E isto retira-lhe quase todo o espaço de manobra.
O momento em que a
fragilidade do Presidente passou a ser evidente foi quando Cavaco Silva fez as
tristes declarações que fez sobre as suas reformas. Pedro Passos Coelho tem
consciência disto. E usou a fragilidade do Presidente. Ontem, para se referir à
provável inconstitucionalidade da lei do orçamento, decidiu concentrar-se nas reformas
mais altas, como se fosse este o assunto fundamental em debate. Não vou aqui
discutir as falsidades e absurdos que disse, que apenas tornam mais evidente a
sua profunda ignorância sobre quase tudo o que envolva políticas de Estado, incluindo
o funcionamento da nossa segurança social. Fico-me pela questão política.
Marcelo Rebelo de Sousa notou que se tratava de uma "canelada" em
Cavaco Silva. E foi disso mesmo que se tratou.
Na verdade, as
declarações de Cavaco sobre as suas reformas tornaram evidente a sua
incapacidade de compreender os sentimentos mais profundos dos portugueses. E um
Presidente com esta limitação pode ter todos os poderes que nunca os usará com
eficácia. Apesar da imagem de homem simples que vem do povo, Cavaco está, como
se viu então, a léguas da realidade nacional. E falta-lhe a argúcia política
para a conseguir interpretar realidades que lhe sejam distantes. E falta-lhe a
autoridade política e moral que o cargo, pelas suas características, exige.
Está, por isso, vulnerável a qualquer ataque que venha do governo. E um
Presidente vulnerável aos ataques de quem deve fiscalizar é uma inutilidade.
Na verdade, apesar
de todas as minhas dúvidas em relação ao sistema semipresidencial, nunca as
condições políticas foram tão favoráveis a que elas se dissipassem. E nunca o
político que ocupou o lugar foi tão desadequado para cumprir esse papel. Vivemos,
na política portuguesa, uma tempestade perfeita. No governo, no maior partido
da oposição e na Presidência da República estão os homens errados no pior dos
momentos. Como dois deles foram eleitos por nós, só nós próprios podemos ser
responsabilizados por este erro de casting.
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