Rui Peralta, Luanda
Equador
I - A chegada de
Rafael Correa á presidência do governo equatoriano, em 2006, foi o início de
uma particular revolução. Logo após assumir as suas funções. Correa formou uma
Assembleia Constituinte, corpo institucional responsável pela elaboração de uma
nova Magna Carta. A Assembleia Constituinte, presidida por Alberto Acostal, na
cidade de Montecristi, finalizou as suas tarefas em 2008, entrando a
Constituição em vigor em Outubro desse ano, após um referendo popular, que votou
maioritariamente pela sua aprovação.
A nova Constituição
do Equador incorpora alguns conceitos inovadores que pressupõem uma revolução
mundial nas questões ambientais. Temas como os Direitos da Natureza e novos
conceitos de cidadania, no sentido de ampliação da sua participação e tomadas
de decisão, além da relação entre a cidadania e o meio ambiente. Conceitos como
o Bem Viver e processos como o da Revolução Cidadã tornaram-se parte do léxico
popular e institucional da sociedade equatoriana.
II - A Natureza
como sujeito de direito pleno…é esta uma consequência de todo este processo. A
Constituição equatoriana prevê que qualquer pessoa ou colectivo pode assumir a
defesa destes direitos, pelo que amplia o processo de decisão sobre qualquer
questão relacionada com a Natureza. Mas o elemento mais revelador da
profundidade desta nova cultura politica que se instala na sociedade
equatoriana é o Bem Viver, concepção derivada da união entre as comunidades
humanas e a Natureza, comunhão realizada através da participação na vida
politica e social e do aumento da capacidade decisória. A Mãe Terra, nesta nova
praxis democrática, é um superorganismo vivo, articulador do físico, do
químico, do biológico e do ecológico, de forma interdependente, um sujeito
pleno de dignidade e direito.
O antropocentrismo,
no entanto, continua dominante, prevalecendo nas ideias sobre o progresso e
considerando a Natureza como uma fonte de recursos exploráveis. É nesta batalha
entre os defensores só antropocentrismo e a cosmovisão da Revolução Cidadã, que
serve de fundo a uma imensa plateia de deserdados em busca da solução para o
seu mal e dores. É neste sentido que a conceptualização de Natureza, realizada
pela Revolução Cidadã deve ser revisada e reinterpretada, para que näo seja
colocada em causa a existência da espécie humana, das restantes espécies
animais e vegetais e do próprio planeta, como entidade geológica.
III - Ao reconhecer
os Direitos da Natureza e ao incorporá-los na Constituição de 2008, o Equador
deu um importante passo em frente, rumo a uma nova cultura politica a uma
sociedade do Bem Viver. A aplicação do texto constitucional, apesar das
dificuldades inerentes á sua implementação, prossegue a bom ritmo, mesmo que
originando polemica e obrigando a profundas discussões politicas, económicas e
estratégicas.
Algumas das
políticas adoptadas pelo Governo equatoriano no sector extractivo contradizem
os valores apresentados no texto constitucional e säo portadoras do fetiche do
crescimento continuo, próprio do desenvolvimentismo característico do
capitalismo BRICS. Apesar dos instrumentos e ferramentas necessárias e
disponíveis, o paradigma ainda näo foi alterado, pelo que torna-se necessário
uma cada vez mais acerba discussão em torno das políticas de desenvolvimento e
sobre a revalorização do património natural.
Neste sentido
encontra-se em aberto um diálogo critico na sociedade equatoriana sobre um
modelo pós-extractivista, que abandone as prácticas do actual extrativismo
predador e implemente um extrativismo indispensável, que aproveite os recursos
estritamente necessários para nutrir a qualidade de vida. Esta transição
requere tempo e tem de ser acompanhada pelo desenvolvimento de outros sector
produtivos, requerendo o abandono da condição de exportador primário, que
caracteriza a actual actividades exportadora. Diminuir a importação de produtos
finais e exportar produtos acabados ou semiacabados é um passo importante e
necessário para a realização deste novo paradigma.
IV - A complexidade
das exigências desse processo inclui um papel de maior importância na
participação, de visões pluridimensionais da economia e de sistemas múltiplos
de valoração. Assumem, neste modelo, um papel predominante os povos indígenas e
as suas comunidades, reforçados por processos de decisão autónoma, tendo em
conta o seu conhecimento do meio e a importância das suas cosmovisões.
É natural que
durante o actual período de transição possam surgir hesitações e retornos a
velhas práticas e remédios desenvolvimentistas. Elas estão patentes nas
políticas de ampliação das reservas petrolíferas, que esquecem os compromissos
ecológicos em nome de uma simplista formulação desenvolvimentista de caracter
classista e unilateral.
É nesta dicotomia
entre a Velha Forma de Estar e o Bem Viver, que as forças em contradição
estabelecem as suas alianças e definem as suas estratégias. É na resolução
desta contradição que o futuro do Equador será resolvido. Entre a armadilha do
capitalismo BRICS e a alternativa do Bem Viver, a opção equatoriana será sempre
uma consequência do motor da História: a luta de classes.
Bolívia
I - Pela primeira
vez desde a sua fundação, em 1825, a Bolívia tem um presidente indígena e
ensaia a construção de uma sociedade de iguais, respeitando os diferentes
etnemas e antropemas de um Estado Plurinacional e de uma sociedade
pluridimensional. Mas esta Plurinacionalidade e pluridimensionalidade é a nova
Bolívia. A outra, a velha Bolívia, era uma só nação, um idioma e uma religião,
era a Bolívia unidimensional, um país fundado sem os povos indígenas, contra as
nações indígenas, um Estado sem nação, composto por nações sem Estado.
As lutas dos povos
indígenas, as reivindicações populares, a guerra de classes, criaram esta nova
Bolívia pluridimensional, este Estado Plurinacional em construção, composto por
36 culturas, 36 idiomas e 36 formas de ver e de estar no mundo. Esta fase de
transição - do unidimensional Estado Colonial para o pluridimensional Estado
Plurinacional – é um profundo e radical processo de descolonização.
II - O Estado Colonial Boliviano é um Estado que
reproduz-se de forma permanente e por inércia, mediante dois eixos fundamentais
(e fundacionais): Racismo e Patriarcado.
O elemento racista
do Estado Colonial Boliviano emana da sua estrutura institucional. Enquanto
estratégia de Estado o racismo é disseminado através de um extenso processo de
desculturação dos povos indígenas, como condição prévia da incorporação na vida
nacional. Por sua vez o patriarcado está patente na forma como a mulher é,
também, incorporada na vida nacional. A ela compete-lhe um papel secundário,
passivo e näo participativo nas decisões, determinado pelo seu sexo. Seja de
origem europeia, seja indígena, seja mestiça, o papel da mulher é comum e
subalternizado, em toda a sociedade boliviana.
A acção cultural
descolonizadora é exercida sobre estes dois eixos do Estado Colonial e que
abrangem toda a sociedade boliviana: a educação, o aparelho administrativo e o
aparelho repressivo do estado, a estrutura jurídica, enfim, a descolonização é
uma desmontagem das instituições do Estado Colonial e da sociedade boliviana e
o elemento transformador dessa realidade.
Mas este processo
de descolonização vai acabar por tornar-se um elemento identitário e
profundamente reacionário e mesmo fascizante (é bom não esquecer que o fascismo
parte da mesma premissa teórica e baseia a sua acção no elemento cultural
identitário) se näo for acompanhada de um processo de socialização da produção.
Caso contrário o elemento identitário nacional sobrepõe-se a todos os outros e
o processo de refundação do estado-nação (contraposto ao modelo socializante do
Estado Plurinacional) assente agora no novo elemento nacional que conseguir
tornar-se dominante (ou seja nas camadas que tornarem-se preponderantes nas
relações de troca e apropriarem-se dos meios de produção) será retomado pelas
bases de desenvolvimento do capitalismo.
III - O elemento
identitário, se não for inserido num processo revolucionário que socialize a
produção, torna-se um perigoso factor condicionante e contrarrevolucionário,
mesmo que em contradição com o imperialismo. É o caso presente do
fundamentalismo islâmico e foi o caso do fascismo e dos movimentos
nacionalistas da primeira metade do seculo XX (näo esqueçamos que o nazismo
tinha como base fundacional uma cosmovisão: a Ariana, de raiz indo-europeia).
Quando autores como
Fausto Reinaga declaram: “Queres ser livre? Tira Cristo e Marx do teu cérebro e
serás livre”, näo estão a descolonizar coisa alguma. Falam pela boca dos
factores reprimidos pelo colonialismo, mas cujo ensejo não é um processo real
de libertação, de apropriação dos meios produtivos e de reapropriação dos
recursos, mas sim da sua apropriação privada. É uma elite nacional em potência,
contrária às dinâmicas sociais da contradição de classes, que detinha o seu
domínio nas sociedades pré-coloniais e cuja decadência foi acentuada pelas
novas tecnologias introduzidas pelo colonialismo.
O cristianismo foi
um elemento introduzido pelo colonialismo, era a ideologia do colono, mas foi
também um factor de consciência social nas sociedades colonizadas (dai a sua
prevalência actual em Africa, América Latina e mesmo em algumas regiões e
franjas asiáticas). A hierarquia católica ou os pastores reformadores
espelhavam as contradições sociais da sua origem cultural e se alguns valores
foram assimilados pelas camadas mais pobres das sociedades colonizadas, foi
porque existiu um elo criado pela identificação de interesses.
Já em relação ao
marxismo, esta näo é uma ideologia introduzida pelo colonialismo, mas sim uma
consequência do desenvolvimento global do capitalismo: o proletariado. Por
muito que possa chocar á sensível elite socialista indígena boliviana, o
proletariado existe, a guerra de classes existe e o capitalismo é global, tal
como o proletariado e a guerra de classes. Não são elementos nacionais ou
culturais nem cosmovisões. Será que os teóricos bolivianos pretendem limpar a
Historia do movimento operário boliviano, as grandes insurreições mineiras ou a
guerrilha do ELN, comandado pelo Che?
Cristianismo e
marxismo foram as formas ideológicas manifestadas por diferentes épocas e
sectores sociais, perante a incorporação da Bolívia na globalização (tal como o
actual processo transformador em curso). Pretender a libertação pela lavagem de
memoria histórica, lavando da praxis os arquétipos da mundialização, não é um
processo de libertação nem tem nada de emancipador, antes pelo contrario, é um
enunciado profundamente reacionário e conservador, próprio das elites
asfixiadas pelos processos coloniais, que espreitam o melhor momento para
fazerem sentir as suas reivindicações e reassumirem o seu papel na globalização
capitalista.
IV - Não basta,
portanto, que o radical (porque vai á raiz da questão) processo de
transformação em curso na Bolívia seja descolonizador e destruidor dos dois
eixos fundamentais do Estado Colonial: o racismo e o patriarcado. Ele tem de
ser um processo de socialização da vida económica, particularmente do cerne da
questão capitalista, tem de socializar os meios de produção, ou seja a produção
tem ser apropriada pelo proletariado.
Só este elemento
transformador, a socialização, o elemento socialista, pode efectivamente
representar a real transformação descolonizadora, pois é ele que vai destruir o
factor efectivamente importante no capitalismo (porque criado, introduzido e
por ele implantado nas sociedades humanas): a alienação.
Fundamental neste
processo revolucionário em curso na Bolívia, é a nova Constituição. Assim como
todas as acções, levadas a cabo no seio das instituições governamentais, pela
igualdade de direitos e de tratamento do género e dos povos indígenas.
É um novo paradigma
que é necessário assumir. E nisso a sociedade boliviana näo é conduzida por
nenhum processo original. Todas as sociedades, a nível mundial, estão na
posição de assumirem o seu destino e o seu papel no processo de globalização.
Assumir ou näo os novos paradigmas é uma questão de tornarem-se relevantes ou
periféricas, na grande conjuntura global. Mas os novos paradigmas crescem e
desenvolvem-se e tornam-se paradigmáticos, na sociedade capitalista e no
processo de globalização do capital, ou seja na sua reprodução.
E isto é necessário
lembrar a alguns deslumbrados socialistas bolivianos. O novo paradigma näo é só
a Mãe Terra, que assenta raízes nas cosmovisões andinas. Esse é um elemento
fundamental no novo paradigma (a nível global, näo apenas nacional ou regional)
mas os novos paradigmas continuam a transportar (e com o mesmo nível de
importância) os elementos clássicos da divisão de trabalho e da acumulação de
capital e da contradição social fundamental do capitalismo e da sua realidade
social: a guerra de classes.
E como a única
realidade total do capitalismo é a realidade económica (é esse, meus caríssimos
e descolonizadores socialistas da Bolívia, o elemento que o vosso deslumbramento
vos impede de cosmovisionar) os factores alienantes dessa realidade estão
também presentes nos novos paradigmas. A economia como realidade total,
representa o triunfo cultural da burguesia, que impos ao mundo a sua cosmovisão
global de classe. E esse triunfo domina pela alienação, um complexo processo
transversal aos etnemas e antropemas, que nos leva a procurar dinheiro todos os
dias, a ver no trabalho a razão da existência, a procurarmos a fuga á realidade
(a religião as drogas, as mitologias das cosmovisões quando se afastam das
praxis socioculturais) e á subjugação do Eu, reflectido na despersonalização e
no abandono da individualidade (as modas, os comportamento correctos, a
inserção nas maiorias amorfas).
V - Já Aristóteles
apontava o Bem Viver como alternativa. Ele chamava-lhe Vida Boa, que na sua cosmovisão
representava a verdadeira finalidade da sociedade humana. E näo me venham
chamar eurocêntrico (até porque näo condiz com as minhas raízes afrojudaicas).
É apenas a constatação de que os sonhos dos homens e as suas tentativas de
transformação do mundo (a sua acção) é um conceito universal, ou seja global. E
este, meus amigos, companheiros e camaradas socialistas da Bolívia e do Mundo,
é o primeiro paradigma da globalização: a solidariedade.
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