Em porcentagens
absolutas, o vencedor é a centro-esquerda do Partido Democrático, mas os
números desenham um futuro nebuloso. A Itália é, no momento, um país
ingovernável. A Câmara de Deputados é da coalizão de centro-esquerda, mas o
Senado pertence a Berlusconi. Isso trava praticamente todas as decisões que um
futuro governo possa tomar. Todos os caminhos que restam são instáveis: formar
um governo estável parece um milagre. O artigo é de Eduardo Febbro, direto de
Roma.
Eduardo Febbro –
Carta Maior
Roma - A Itália
colocou um pé na fronteira da ingovernabilidade. Ao final das eleições
legislativas realizadas domingo e segunda-feira, o Partido Democrático,
movimento de centro-esquerda liderado por Luigi Bersani, ganhou as eleições,
mas não o poder. A direita ressuscitada de Silvio Berlusconi e a poderosa
emergência de uma força política contestadora que cresceu fora dos esquemas
tradicionais da prática política deixaram a tímida esquerda italiana com uma
escassa maioria para governar. Ninguém sabe hoje quem estará no poder amanhã. A
centro-esquerda de Pier Luigi Bersani obteve 29,75% dos votos na Câmara de
Deputados. Com isso, consegue o abono de 55% das cadeiras em jogo que o sistema
outorga ao ganhador. No entanto, o caminho para o governo tropeça no Senado,
onde o Povo da Liberdade, do patético Silvio Berlusconi, em coalizão com a
racista Liga do Norte, faz sombra ao PD com 28,96% dos votos. Logo em seguida
vem o Movimento Cinco Estrelas, do comediante genovês Beppe Grillo, que obteve
25,5% na Câmara de Deputados e 23,7% no Senado. O atual presidente do Conselho
italiano, Mario Monti, ficou distante com cerca de 11% dos votos e perde assim
muitas possibilidades de respaldar a centroesquerda em um futuro governo de
coalizão.
As eleições não resolveram o dilema italiano e muitos prognosticaram
segunda-feira à noite um retorno às urnas para dirimir a incerteza. As duas
maiores surpresas desse pleito foram protagonizadas pelo movimento Cinco
Estrelas e por Silvio Berlusconi. O primeiro porque conseguiu atrair centenas
de milhares de eleitores enojados com o sistema político. O segundo é,
indiscutivelmente, a potência eleitoral que Berlusconi ainda detém. Após vinte
anos de escândalos de toda índole e há apenas alguns meses de ter deixado o
país à beira do abismo moral e financeiro, Berlusconi, segue sendo o árbitro da
política nacional. Pior ainda, não é improvável que seja ele quem consiga
governar. Acossado pela justiça, com denúncias de conteúdo sexual e acusações
de corrupção, Berlusconi sai das urnas com um êxito angustiante. As pessoas
seguem acreditando em que as enganou e as manipulou como ninguém. Entre a
oferta da centro-direta apresentada por Mario Monti e a direita escandalosa do
“Cavaleiro”, a Itália preferiu o último.
Em porcentagens absolutas, o vencedor é a centro-esquerda do Partido
Democrático, mas os números desenham um futuro nebuloso. A Itália é, no
momento, um país ingovernável. A Câmara de Deputados é da coalizão de
centro-esquerda, mas o Senado pertence a Berlusconi. Isso trava praticamente
todas as decisões que um futuro governo possa tomar. Todos os caminhos que
restam são instáveis: formar um governo estável parece um milagre. Pode-se
também pensar em um acordo entre Bersani e o movimento Cinco Estrelas, mas não
para governar e sim para mudar a lei dos partidos e, com uma legislação menos
diabólica como método, voltar a votar.
O grande herói da noite eleitoral é indiscutivelmente Beppe Grillo. Nela recai
um poder que abre um rombo na sólida frente dos partidos de governo italianos.
O comediante zombou daqueles que governam e desprezam a sociedade. A Itália
ingressou na noite de segunda-feira no seleto grupo de países europeus que, ao
cabo de processos eleitorais celebrados em plena crise, terminam com partidos
anti-sistema que obtém resultados parlamentares consequentes. O caminho foi
aberto pela Grécia no ano passado, quando o movimento da esquerda radical
Syriza, dirigido por Alexis Tsipras, esteve a ponto de formar o governo e
depois, nas novas eleições realizadas em maio, obteve cerca de 20% dos votos.
Syriza ficou como a segunda força política da Grécia, na frente do histórico e
corrompido partido socialista grego, Pasok.
Quase simultaneamente, na França, a Frente de Esquerda, de Jean-Luc Mélenchon
protagonizou uma penetração eleitoral espetacular par uma formação praticamente
nova e em cujo interior há desde socialistas dissidentes, anarquistas
libertários, ecologistas e comunistas. De uma maneira distinta, mas com um
resultado mais espetacular, a Itália entrou na dissidência política. O
movimento Cinco Estrelas, liderado pelo humorista Beppe Grillo, se içou a
níveis desafiadores frente a uma casta política que funciona como esses
sistemas de irrigação automática: só vive para si mesma, para preservar suas
prerrogativas e benefícios. Cinco Estrelas rompeu o esquema. Beppe Grillo
estragou a festa dos partidos de governo: o Partido Democrático, de Luigi
Bersani, e o Povo da Liberdade, do sobrevivente de todas as batalhas e golpes
baixos nos últimos 20 anos, o ex-presidente do Conselho Silvio Berlusconi. Esse
movimento é uma mistura ousada, uma espécie de “bíblia junto al calefón”, como diz
a letra do célebre tango. Se perguntarem a qualquer italiano que decidiu votar
neste partido que se define como uma “comunidade”, sua resposta é inequívoca:
porque quero que as coisas mudem.
A mudança é, nas sociedades ocidentais, como a irrenunciável aspiração human ao
amor. Algo desejado com uma permanência física e metafísica e sempre postergado
por essa tendência à incrustação e ao imobilismo que caracteriza os partidos
uma vez que se instalam no poder. Contestadora, aberta e declaradamente anti-sistema,
Cinco Estrelas é exatamente igual ao slogan com o qual lançou sua campanha: “o
Tsunami tour”. Um tsunami cuja verdadeira capacidade de ação e de construção
ainda está por se ver. Disparatado para alguns, populista para outros, Cinco
Estrelas, seja como for, é a demonstração de um cansaço infinito que se volta
contra a política neste século XXI, uma empresa insaciável de mentiras,
manipulações, enganos, uma indústria ao serviço de uma corporação de
engravatados e não ao povo que foi tentado com propostas que jamais se
cumpriram. A socialdemocracia moderada do presidente francês François Hollande
é uma prova amável disso: palavras, palavras, palavras.
Beppe Grillo ingresso por essa brecha de desencanto, de orfandade
representativa de uma sociedade onde 8 milhões de pessoas vivem com menos de
mil euros por mês – é um índice baixo na Europa – e onde um em cada três jovens
não tem trabalho. Força destruidora do sistema que se propõe reparar os
esquecimentos interessados da governabilidade acomodada e corrigir o sacrifício
a que o neoliberalismo europeu submete a milhões e milhões de indivíduos para
não perder as suas já grandiosas margens de lucro. Melhor um milhão de
desempregados a mais do que 3% de lucros a menos. Com um blog, uma conta no
twitter e sem jamais ter pisado num canal de televisão em um país onde os
políticos dão a vida para aparecer na frente das câmeras, Beppe Grillo
conquistou as massas. Há alguns anos, este humorista genovês organizou o
“Vaffanculo Day”, um dia de protesto global contra os políticos. Agora o
Vaffanculo passou dos protestos ás urnas e a Itália entrou em uma incerta
dissidência contra o sistema.
Tradução: Katarina Peixoto
Fotos: Ansa
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