Manuel Maria
Carrilho – Diário de Notícias, opinião
Uma inédita
decomposição política avança na Europa - eis a lição a tirar das eleições
italianas do último fim de semana. Uma decomposição que se desdobra por três
vertentes de um repúdio perigosamente convergente: o da incapacidade das suas
elites políticas, o das derivas da União Europeia e o das políticas de
austeridade.
Os resultados
eleitorais são impressivos: eles mostram que um tecnocrata como Mario Monti,
primeiro-ministro cessante endeusado pela Alemanha, pelos mercados e pelas
oligarquias financeiras europeias, não consegue, ao fim de um ano e meio de um
acolchoado exercício tecnocrático das suas funções, mais do que uns magros 10%
dos votos.
Que um político
como Silvio Berlusconi, desgastado e descredibilizado por anos e anos de
continuado nepotismo, de escândalos de toda a ordem e de bazófias sem fim,
ainda merece a preferência, senão mesmo a confiança, de cerca de um terço do
eleitorado.
Que o líder da
esquerda, Pier Luigi Bersani, para quem há três meses se antecipava um passeio
eleitoral triunfal, só conseguiu ultrapassar Berlusconi por algumas décimas,
ganhando à tangente na Câmara dos Deputados, mas não no Senado, ficando aqui
dependente dos votos de Monti, mas também - porque estes não bastam para chegar
à maioria - dos votos de Beppe Grillo.
E, por fim, que um
cómico como Beppe Grillo consegue um quarto dos votos dos italianos prometendo
uma subvenção mensal universal de mil euros, anunciando a semana de trabalho de
20 horas, recusando fazer um único debate político com os adversários, escolhendo
os candidatos do seu partido, o "MoVimento 5 Estrelas" (que não tem
estrutura nem sede), mais ou menos por sorteio na Net, entre anónimos sem
qualquer experiência política (e elegeu 108 deputados e 54 senadores!...) e
prometendo fazer um referendo sobre a Europa e o euro.
O impasse político
a que estes resultados conduziram traduz bem mais do que uma divisão ideológica
entre os cidadãos italianos. Ele traduz sobretudo uma fadiga que parece
desesperada, e que pode ser terminal, com o regime democrático. E também uma
desorientação e uma impotência, que na verdade se revelam patéticas, face aos
problemas da sociedade atual. Foi por isso que a campanha eleitoral, mais do
que entre ideias e propostas, se fez entre o riso e a cólera, entre gargalhadas
e impropérios.
A decomposição
política em curso tem indiscutivelmente características bem específicas em
Itália, que têm a ver tanto com as particularidades da sua história - que não
são poucas -, como com as idiossincrasias dos seus principais protagonistas, que
- de Berlusconi a Grillo, de Monti a Bersani - não são pequenas.
Ela tem, antes do
mais, a ver com o conhecido lastro berlusconiano e o seu carrossel de
enormidades políticas. Mas ela também tem a ver com o enorme fracasso da ilusão
tecnocrática representada por Mario Monti, que acabou por se revelar tão fugaz
no tempo como ineficaz nos resultados. Nomeadamente, Monti revelou-se incapaz
de enfrentar o endividamento italiano, que ronda os dois biliões de euros, 127%
do PIB, e que aumentou cem mil milhões durante o seu consulado. Ele seguiu uma
estratégia que muitos consideram suicida, que consistiu em apostar na renovação
da dívida a prazos cada vez mais curtos. Resta agora saber se a Itália
conseguirá encontrar os 400 mil milhões de euros de que precisa já em 2013!
Mas a esquerda
também tem grandes responsabilidades no processo de decomposição em curso. Não
só porque passou duas vezes pelo poder e não conseguiu legislar contra os
conflitos de interesse na política, mantendo assim as portas abertas ao regresso
do berlusconismo. Mas também devido às graves insuficiências da proposta
política alternativa apresentada pelo Partido Democrático e pelos seus aliados
de esquerda, que acreditou demais nas potencialidades do mero rotativismo para
chegar ao poder.
Abriu-se assim,
imprudentemente, caminho a um incendiário ativismo basista, que com o talento
histriónico de Beppe Grillo ofereceu aos eleitores um novo tipo de
militantismo, agora antipolítico. Um militantismo habilmente construído em
torno do ressentimento permanente de todos contra todos, da rejeição total de
qualquer forma de responsabilidade política, tudo sempre caldeado por umas
galhofadas desopilantes.
Custa a crer, mas
foi esta a "ideologia" frustre que Beppe Grillo impôs como uma grelha
verosímil de leitura da sociedade, ao mesmo tempo que fazia dela uma mola
imparável da sua própria afirmação política. Com ela, o "MoVimento 5
Estrelas" tornou-se - se considerarmos apenas os partidos, e não as
coligações - o partido mais votado nestas eleições para a Câmara dos Deputados.
Algo que tem sido escamoteado, mas que revela bem a dimensão verdadeiramente
implosiva do impasse político italiano, situação em que as elites políticas têm
uma imensa responsabilidade.
Mas a decomposição
política não se fica por Itália: ela alastra por todo o continente europeu,
dando forma a transformações de fundo que nos aproximam - se nada for feito -
do desastre. Há pois lições a tirar, com urgência e lucidez, do impasse
italiano. Até porque, como dizia o general Douglas Mac-Arthur, todas as grandes
derrotas se podem resumir a duas palavras: tarde demais.
E isto vale para
toda a União Europeia, a começar por Portugal, que nesta semana de avaliação da
troika vive justamente sob o pesado espectro deste diagnóstico, deste "too
late" que é sempre a outra face de uma dogmática e prolongada negação da
realidade - a que está bem na altura de pôr um termo.
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