quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

ENTRE O RISO E A CÓLERA




Manuel Maria Carrilho – Diário de Notícias, opinião

Uma inédita decomposição política avança na Europa - eis a lição a tirar das eleições italianas do último fim de semana. Uma decomposição que se desdobra por três vertentes de um repúdio perigosamente convergente: o da incapacidade das suas elites políticas, o das derivas da União Europeia e o das políticas de austeridade.

Os resultados eleitorais são impressivos: eles mostram que um tecnocrata como Mario Monti, primeiro-ministro cessante endeusado pela Alemanha, pelos mercados e pelas oligarquias financeiras europeias, não consegue, ao fim de um ano e meio de um acolchoado exercício tecnocrático das suas funções, mais do que uns magros 10% dos votos.

Que um político como Silvio Berlusconi, desgastado e descredibilizado por anos e anos de continuado nepotismo, de escândalos de toda a ordem e de bazófias sem fim, ainda merece a preferência, senão mesmo a confiança, de cerca de um terço do eleitorado.

Que o líder da esquerda, Pier Luigi Bersani, para quem há três meses se antecipava um passeio eleitoral triunfal, só conseguiu ultrapassar Berlusconi por algumas décimas, ganhando à tangente na Câmara dos Deputados, mas não no Senado, ficando aqui dependente dos votos de Monti, mas também - porque estes não bastam para chegar à maioria - dos votos de Beppe Grillo.

E, por fim, que um cómico como Beppe Grillo consegue um quarto dos votos dos italianos prometendo uma subvenção mensal universal de mil euros, anunciando a semana de trabalho de 20 horas, recusando fazer um único debate político com os adversários, escolhendo os candidatos do seu partido, o "MoVimento 5 Estrelas" (que não tem estrutura nem sede), mais ou menos por sorteio na Net, entre anónimos sem qualquer experiência política (e elegeu 108 deputados e 54 senadores!...) e prometendo fazer um referendo sobre a Europa e o euro.

O impasse político a que estes resultados conduziram traduz bem mais do que uma divisão ideológica entre os cidadãos italianos. Ele traduz sobretudo uma fadiga que parece desesperada, e que pode ser terminal, com o regime democrático. E também uma desorientação e uma impotência, que na verdade se revelam patéticas, face aos problemas da sociedade atual. Foi por isso que a campanha eleitoral, mais do que entre ideias e propostas, se fez entre o riso e a cólera, entre gargalhadas e impropérios.

A decomposição política em curso tem indiscutivelmente características bem específicas em Itália, que têm a ver tanto com as particularidades da sua história - que não são poucas -, como com as idiossincrasias dos seus principais protagonistas, que - de Berlusconi a Grillo, de Monti a Bersani - não são pequenas.

Ela tem, antes do mais, a ver com o conhecido lastro berlusconiano e o seu carrossel de enormidades políticas. Mas ela também tem a ver com o enorme fracasso da ilusão tecnocrática representada por Mario Monti, que acabou por se revelar tão fugaz no tempo como ineficaz nos resultados. Nomeadamente, Monti revelou-se incapaz de enfrentar o endividamento italiano, que ronda os dois biliões de euros, 127% do PIB, e que aumentou cem mil milhões durante o seu consulado. Ele seguiu uma estratégia que muitos consideram suicida, que consistiu em apostar na renovação da dívida a prazos cada vez mais curtos. Resta agora saber se a Itália conseguirá encontrar os 400 mil milhões de euros de que precisa já em 2013!

Mas a esquerda também tem grandes responsabilidades no processo de decomposição em curso. Não só porque passou duas vezes pelo poder e não conseguiu legislar contra os conflitos de interesse na política, mantendo assim as portas abertas ao regresso do berlusconismo. Mas também devido às graves insuficiências da proposta política alternativa apresentada pelo Partido Democrático e pelos seus aliados de esquerda, que acreditou demais nas potencialidades do mero rotativismo para chegar ao poder.

Abriu-se assim, imprudentemente, caminho a um incendiário ativismo basista, que com o talento histriónico de Beppe Grillo ofereceu aos eleitores um novo tipo de militantismo, agora antipolítico. Um militantismo habilmente construído em torno do ressentimento permanente de todos contra todos, da rejeição total de qualquer forma de responsabilidade política, tudo sempre caldeado por umas galhofadas desopilantes.

Custa a crer, mas foi esta a "ideologia" frustre que Beppe Grillo impôs como uma grelha verosímil de leitura da sociedade, ao mesmo tempo que fazia dela uma mola imparável da sua própria afirmação política. Com ela, o "MoVimento 5 Estrelas" tornou-se - se considerarmos apenas os partidos, e não as coligações - o partido mais votado nestas eleições para a Câmara dos Deputados. Algo que tem sido escamoteado, mas que revela bem a dimensão verdadeiramente implosiva do impasse político italiano, situação em que as elites políticas têm uma imensa responsabilidade.

Mas a decomposição política não se fica por Itália: ela alastra por todo o continente europeu, dando forma a transformações de fundo que nos aproximam - se nada for feito - do desastre. Há pois lições a tirar, com urgência e lucidez, do impasse italiano. Até porque, como dizia o general Douglas Mac-Arthur, todas as grandes derrotas se podem resumir a duas palavras: tarde demais.

E isto vale para toda a União Europeia, a começar por Portugal, que nesta semana de avaliação da troika vive justamente sob o pesado espectro deste diagnóstico, deste "too late" que é sempre a outra face de uma dogmática e prolongada negação da realidade - a que está bem na altura de pôr um termo.

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