Rui Peralta, Luanda
I - A crise em que
vivem as centrais operárias desde finais do século XX está relacionada com a
implementação do neoliberalismo na nova fase da globalização, fenómeno que
produziu em massa trabalhadores supérfluos e informais, o que debilitou os
níveis de sindicalização e de actividade sindical mundial. Mas este factor de “acumulação
flexível” (conceito de David Harvey in The Condition of Postmodernity; Basil
Blackwell Ltd. 1989) não é o único factor responsável pela actual crise sindical.
Existem razões mais profundas, históricas, que cruzam-se com os fenómenos
contemporâneos que originaram a acumulação flexível e que nesse cruzar de
fenómenos que atravessam as dinâmicas das sociedades, revelam-se funestos.
É este o caso do
paradigma da divisão entre “braço político” e “braço sindical” iniciado pela
social-democracia em finais do século XIX e que permaneceu nos partidos
operários, fossem reformistas, socialistas ou comunistas, até a actualidade. O
preço desta divisão sindicato / partido foi regido pela aceitação da actividade
parlamentar como o único âmbito, ou o principal campo de batalha entre trabalho
e capital. Esta divisão artificial entre o político e o sindical criou a ilusão
de que o “braço político” poderia representar, na sua acção legislativa, os
interesses dos trabalhadores, organizados em sindicatos, o “braço sindical”.
O resultado final
foi que o “braço político” subordinou os interesses do “braço sindical” ao
parlamento, ou seja, submeteu os interesses dos trabalhadores á mecânica das
instituições políticas do capitalismo e criou na consciência proletária
factores alienígenas á sua cultura política, como a representação (que existiam
nas assembleias proletárias, mas como factor operacional, sendo os
representantes proletários nas negociações com o patronato, sujeitos a um
apertado controlo e com mandatos temporalmente reduzidos) e a democracia (que
na cultura politica proletária existia não como regime, mas como procedimento).
Desta forma passaram as organizações proletárias a serem submetidas á
estratégia do capital e aos Jogos Capitalistas (sobre este ponto ler o
excelente trabalho de István Mészáros, Para Além do Capital).
II - Este paradigma em
nenhum momento projectou o “braço político” como impulsionador da luta proletária.
Pelo contrário. O seu papel limitou-se a manter as revindicações sociais dentro
dos limites do regime, de forma a nunca por em risco a acumulação de Capital.
Foram assim amputados os interesses do proletariado e confinada aos sindicatos
as lutas reivindicativas. Desta forma os representantes parlamentares do
proletariado impuseram aos seus representados a imposição vital do Capital: a
inadmissibilidade de numa sociedade democrática a existência de qualquer
actividade social que tivesse objectivos políticos.
As organizações
revolucionárias do século XX aceitaram, sem excepção, este modelo, limitando-se
algumas delas a criticarem o reformismo sindical ou o cretinismo parlamentar,
mas não compreendendo que ambas eram consequência da divisão sindicatos / partidos,
agora apenas dois vértices de um triângulo que se complementava com o
parlamento, o triângulo funcional do capitalismo. Foram assim os proletários
domesticados e nas suas acções näo iam além das reivindicações circunstanciais,
que não colocavam em causa a dominação do capital, circunscrevendo a actividade
das suas organizações ao parlamento e á aceitação das instituições burguesas e
às regras do jogo.
III - Na democracia
contemporânea (alguns chamam-na democracia burguesa, esquecendo-se de que a democracia
é a única forma natural da sociedade capitalista e da cultura politica
burguesa, por isso a falência do socialismo real) o Capital é a única força
extra – parlamentar, que não pode ser politicamente limitada, pois o Capital é
a única força responsável pelo controlo social e pelo metabolismo do
capitalismo, razão pela qual a única forma de representação política compatível
com o seu metabolismo é aquela que nega a possibilidade de contestar o poder
material do Capital.
Ao ser a única
força extra – parlamentar aceite, o Capital não teme as reformas decretadas no
interior da sua estrutura politica. O parlamento como último vértice do
triângulo funcional do sistema é o cenário de batalha mais inócuo, na guerra de
classes. É como deixar o inimigo escolher o campo de batalha, ficar com as
melhores colinas e com o melhor terreno. Esta situação agrava-se no actual
momento, em que o Capital não tem condições de conceder (bem pelo contrário,
necessita de cortá-los) benefícios mínimos, direitos, liberdades e garantias, á
classe oposta.
O poder extra –
parlamentar do Capital só pode ser enfrentado pela força da acção proletária,
naturalmente extra – parlamentar na sua essência. A destruição do domínio
social do Capital implicará o domínio social do Proletariado, pois ambos são as
únicas forças de domínios social, as únicas que actuam no domínio das
superestruturas culturais e as únicas que säo simultaneamente sociais e
politicas, logo, extra – parlamentares.
De um lado o
Capital e o regime democrático, do outro o Proletariado e o procedimento
democrático. De uma lado a manutenção da estrutura parlamentar baseada na
negociação (o espelho das assembleias de accionistas das empresas) do outro a
destruição do aparelho e a estrutura de assembleia, colocando o Estado apenas
como instrumento funcional provisório de domínio e criando as estruturas de uma
nova praxis politica.
IV - De todas as
temáticas da tradição proletária, é nas relações partidos / sindicatos /
parlamento que a interacção entre sujeito social sujeito político tem maior
realce, na perspectiva do conceito de social e politico na nova cultura
politica. Mas esta imposição entre social e politico é levantada a partir de
que lógica?
Quando Hegel
definiu a liberdade como consciência da necessidade, estava também a afirmar
que a política surge e inventa-se no social. Foi nas lutas contra a opressão
que a consciência da necessidade foi formulada e com ela a enunciação de novas
liberdades e formas de conquistá-las. A consciência politica proletária não
nasceu nas cúpulas das organizações que se sentavam no lado esquerdo dos
hemiciclos parlamentares, nem na cabeça dos autoproclamados grandes lideres
(outro factor alienígena á cultura proletária, o de liderança), mas sim na
praxis social. A política não é um produto da elucubração distanciada da
realidade, mas sim fruto da acção dos homens na transformação dessa mesma
realidade.
Na democracia a
existência do Estado como instituição que representa a garantia do interesse
geral, o que coloca o Estado como o Publico (Do Estado sou Eu, dos reis
absolutistas, passou-se ao Estado somos Nós, do regime democrático), gerou a
ilusão (gerada por outra ilusão, a do interesse geral) de que existe uma
relação de forças particular. Uma linguagem do conflito, onde os antagonismos
sociais se manifestam num jogo de alianças e contenção, de oposições e de
acordos. Para muitos, a luta de classes é ali expressa na forma de luta
política entre partidos.
Essa forma mediada
da luta política entre partidos, que muitos veem como a forma como a luta de
classes se comporta na esfera politica democrática é näo mais do que a forma
como o Capital encena o questionamento ao seu domínio e rejuvenesce
politicamente. Aceitar esta ilusão do interesse geral, do Estado democrático de
Direito, da sociedade pluralista, da democracia, é participar neste
rejuvenescimento das estruturas políticas do capital. O capitalismo é
caracterizado pela sua grande mobilidade orgânica, no sentido vertical e
horizontal. As elites circulam e quanto mais rapidamente circularem, mais
rapidamente se desenvolvem os novos ciclos de capital. Aceitar o cenário
democrático é participar neste aleatório e alienatório jogo de interesses,
representado nas dicotomias governo / oposição e esquerda / direita, figuras
retiradas daquela que é a esfera real de movimentação do capitalismo, a
económica (a esta dicotomias politicas ilusórias, correspondem as dicotomias
reais económicas do sucesso / insucesso, inovação / decadência, ou lucro versus
falência).
V - Podemos hoje
verificar, como os Estados criminalizam os protestos sociais (a repressão
efectuada na Europa ao movimento estudantil e novas formas de ocupação de ruas,
ou á criminalização das lutas pelas terras e pela reforma agrária, nas
periferias latino americanas, africanas e asiáticas e mesmo no centro do
capitalismo BRICS, como o caso do Brasil, da Índia e da África do Sul), a forma
como assassinam camponeses (América Latina, Ásia e África), como rotulam os
proletários como terroristas (Índia e Colômbia, por exemplo, embora possamos
recorrer á História recente e reanalisar os fenómenos da Alemanha e Japão, com
a Facão do Exercito Vermelho, ou na Itália, como as Brigadas Vermelhas, sem
esquecer os Panteras Negras nos USA, ou as formas de luta do proletariado
palestiniano, substancialmente diferentes da forma de condução da luta de
libertação nacional pelas burguesias árabes), enquanto em paralelo descriminam
formas de corrupção financeira e económica (veja-se a vergonha da exportação de
capitais, com especial incidência em África) e o nepotismo, que surge com cada
vez maior naturalidade á escala mundial (praticado á direita e á esquerda).
Este longo processo
de criminalização e descriminalização, praticados pelos globais estado de
direito, é consequência do processo em curso de movimentação dos centros
financeiros e de redefinição das periferias, uma fase complexa do metabolismo
capitalista, da sua mobilidade e flexibilidade, da sua renovação permanente e
do seu mecanismo de reengenharia á escala global. A complexidade destas fases é
enorme, global e pluridimensional. Novas fronteiras são traçadas, grupos
sociais são proletarizados, elites ascendem e grupos de poder desaparecem, Os
contractos sociais säo revistos, as constituições refeitas, a formalidade do
Direito é levada ao extremo e a realidade jurídica passa a assentar, á falta de
melhor e até á estabilização do processo, no contracto imposto pelas nova
realidades económicas.
VI - No campo proletário
surge um novo sujeito social-politico, que toma consciência das novas
realidades do campo de batalha, que redimensiona as suas necessidades e as
articula, não segundo o eixo da divisão do social e do político, mas de outra
forma, onde o social e o político tornam-se um só, näo pelo redimensionamento
do social, mas pela redefinição do político. Pela primeira vez em mais de um
seculo é compreendida a dimensão extraparlamentar do Capital, pela sua força
adversaria, o proletariado e pela primeira vez, no mesmo período de tempo, este
assume consciência de que, para alem do Capital, é a única força com a mesma
dimensão extra – parlamentar.
Ao readquirir esta
compreensão o proletariado está a levar a cabo uma imensa revolução cultural
que o liberta dos conceitos alienígenas de democracia e representatividade, que
o aprisionam no contexto parlamentar. Claro que estes conceitos não são ainda
assumidos em toda a sua plenitude, mas a experiencia que está em curso através
de movimentos como os Ocupas, a Revolução Cidadã no Equador, o processo
bolivariano na Venezuela, a nova Bolívia, os Sem Terra no Brasil, a insurreição
da cintura florestal na India, a longa experiencia da luta armada e de outras
formas de luta na Colômbia, os novos cibermovimentos, as novas culturas
alternativas, as movimentações dos povos indígenas na América Latina e na Asia,
o momento de radicalização vivida na luta de classes na Africa do Sul, os
movimentos eco-alternativos, a continuidade da Revolução Cubana, agora em fase
de livrar-se do seu empecilho burocrático e assumir de uma forma popular a sua
identidade socialista, enfim a actual pluridimensionalidade de organizações,
estratégias, formas de luta, reivindicações, protestos, processos
revolucionários em curso, é uma consequência da reapropriação da consciência da
nova cultura politica, onde a divisão social / politico é inexistente.
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