segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

O SOCIAL E O POLÍTICO (2)




Rui Peralta, Luanda

I - Nos movimentos e revoltas populares dos últimos anos, ocorridos na América Latina e na Índia, podem ser detectadas organizações e estruturas mobilizadoras que superaram a divisão entre o social e o político. É o caso dos camponeses de Chiapas, no México, organizados no Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN). Defendem o seu território assediado pelo governo e pelas corporações do agronegócio e da mineração e salvaguardam a sua produção. Pelo caminho realizaram assembleias, procederam a consultas e estabeleceram as bases de um projecto anticapitalista, como projecto de nação, evitando desta forma participar nas eleições e inserirem-se no regime democrático, praticando no entanto o procedimento democrático nas regiões por eles ocupadas.

Isto não implica o descarte da participação eleitoral, nem da intervenção parlamentar, mas sim um marcar de posição de força que deve ser efectuada antes da participação eleitoral e parlamentar, demonstrando que o capital näo é a única força extraparlamentar e obrigando-o a uma tomada de posição num campo de batalha que já não é escolhido pelo capital e onde os cenários já não são os elaborados pelos seus encenadores. Esta posição não foi apenas assumida pelos camponeses de Chiapas e o seu EZLN. Foi também a dos cocaleros do Chapare, pelos indígenas de Omasuyo, pelas populações de El Alto e mais centenas de exemplos da Bolívia, que optaram pelo cenário eleitoral mas sem delegarem a formulação do seu programa nem a sua representação.

II - O exemplo boliviano é impar nesta questão. A intervenção eleitoral neste país realizou-se sobre a base de um enorme movimento social dos povos indígenas, maioritários no país, num cenário de confrontação violenta, onde estradas foram cortadas, fazendas ocupadas, cidades bloqueadas, o parlamento foi cercado, o movimento grevista alastrou-se por todo o país e existiram choques violentos com a polícia e o exército, que apresentaram sintomas de desagregação. Esta intensa batalha terminou com a imposição, pela primeira vez em meio milénio, de um presidente aymara, Evo Morales. Este foi um processo eleitoral que o Capital não conseguiu controlar e que representou uma enorme conquista popular, que se estendeu nas lutas pela divisão e recuperação de terras e pela defesa da soberania sobre os recursos naturais.

Como explica o Vice-presidente García Linera: "El primer componente central del "evismo" es una estrategia de lucha por el poder fundada en los movimientos sociales. Esto marca una ruptura con las estrategias previas que ha conocido nuestra historia política y buena parte de la historia política continental y mundial. Anteriormente, las estrategias de los sectores subalternos estaban construidas a la manera de una vanguardia política cohesionada que lograba aglutinar en su base social a estos movimientos (...) En otros se trató de una vanguardia política democrática-legal o armada que lograba arrastrar o empalmarse con movimientos sociales que la catapultaban (...) El "evismo" modificó ese debate, al plantearse la posibilidad de que el acceso al poder sea obra de los propios movimientos sociales" (Álvaro García Linera, Vice-presidente boliviano; Los fundamentos del "evismo", Revista DEF n° 9, Argentina, Maio, 2006).

Na Bolívia, desde a guerra da água em Cochabamba, afirmava-se um movimento que não separava as questões sociais das políticas, porque desconhecia a tradição europeia do braço sindical / braço político (o movimento iniciado em Cochabamba desconhecia esta questão, mas não o movimento mineiro, que nas insurreições mineiras dos anos cinquenta e sessenta do século passado foi vitimado por esta divisão, o mesmo se podendo dizer do falhanço das negociações entre o Exército de Libertação Nacional, liderado pelo Che e o Partido Comunista Boliviano).

III - A participação dos povos indígenas nas lutas nacionais não divide os seus programas em mínimo e máximo. Essa é uma divisão tradicional das correntes socialistas urbanas que a herdaram da social-democracia europeia do século XIX e que foi aplicada á letra pelos partidos comunistas no século XX e ainda na actualidade. Ao dividir-se em sindicato e partido a acção proletária, faccionava-se o programa em mínimo, que abarcava as reivindicações possíveis de obter sob o jugo do Capital, adjudicadas ao sindicato e geridas nas instituições burguesas e em máximo, o tal programa que conduziria ao socialismo, sempre mencionado nos discursos de aniversário do partido e que seria construído em data incerta e longínqua (os amanhãs que cantam, sempre cantados em coros desafinados e que eram sempre amanhãs, mas nunca hoje. Alias nos casos em que os amanhãs que cantam foram transformados em hoje cantado, a realidade revelou-se tão alienante como o capitalismo e anunciadora de um depois de amanhã catastrófico).

Na Índia os maoistas forneceram cobertura política a um movimento que eles, efectivamente não controlam e que os obriga a uma praxis politica e social que os afasta das suas deambulações ideológicas. Aliás, foi por terem compreendido quão nefasta é esta falsa divisão entre o social e o político, que a sua implementação nas zonas insurrectas foi conseguida e a sua presença aceite pelas comunidades da cintura florestal. Mas o mesmo näo se passa na estrutura urbana da organização maoista indiana, que mantém o seu aparelho tradicional assente nesta falsa dicotomia. O resultado revela-se desastroso nas zonas urbanas, permitindo que o governo do capitalismo BRICS indiano controlo em absoluto os meios de informação e propaganda e que a oligarquia assuma, nas cidades, o controlo da rebelião, impedindo a comunicação entre as organizações urbanas e as regiões insurrectas (por exemplo os trabalhadores das minas, como as suas organizações estão controladas pelo capital, no sentido em que aceitam as regras do jogo, apesar de trabalharem na cintura florestal, que é simultaneamente a cintura mineira, não participam na insurreição).

IV - No Equador o processo eleitoral que levou Correia á presidência foi consequência de um movimento popular, fortemente mobilizado, que já tinha provocado a derrocada de três presidentes e a cedência constante de uma burguesia em decomposição. O mesmo passou-se na Venezuela, com a chegada de Chávez á presidência e com a sua consolidação, afirmada no dia em que uma tentativa de golpe de estado tentou derrubá-lo, o que provocou um movimento dos bairros pobres, cujos moradores ocuparam as ruas, cercaram o Palácio de Miraflores e derrotaram o golpe, repondo o presidente Hugo Chávez.

No Brasil (um dos motores mundiais do capitalismo BRICS, tal como a India) o Movimento dos Sem Terra (MST), em 2005, realizou uma Marcha Nacional pela Reforma Agrária, percorrendo duzentos quilómetros, de Goiânia a Brasília, com o objectivo de apresentar ao governo do Partido dos Trabalhadores (PT), liderado por Lula da Silva, um programa económico contrário á orientação neoliberal imposta pelo governo. No mesmo ano coordenou, em diversos estados do Brasil, acções de movimentos sociais contra o modelo económico capitalista do governo, “demonstrando a capacidade dos movimentos de pensarem mais além das balizas específicas de reivindicação”, conforme o comunicado do MST em 06 de Janeiro de 2006.

O MST é independente da Central Unitária de Trabalhadores (CUT) e do PT, opõe-se á orientação governamental que favorece os monopólios agroindustriais e luta pela reforma agraria, eternamente prometida pelo PT e formalmente decretada na Constituição, mas escamoteada pelos negócios efectuados com as grandes corporações agroindustriais. É um movimento responsável pelas ocupações de fazendas e terras em vários estados brasileiros, que nasceu das reivindicações do proletariado rural e é hoje uma das estruturas organizativas mais combativas e um incontornável ponto de referência. Eis um bom exemplo da força extraparlamentar do proletariado.

Também no Uruguai as organizações sociais e os militantes políticos quebraram a falsa divisão durante os movimentos pela defesa da água, plebiscitando e aprovando uma reforma da constituição, em Outubro de 2004, que impedia a privatização da água. Embora este movimento näo tivesse tido continuidade e fosse dissolvido nesse amplo imbróglio pantanoso que é a Frente Ampla, esta importante experiencia, que pela primeira vez no mundo impõe que uma Constituição expresse a proibição de privatização de um bem vital, revela a necessidade dos movimentos assumirem-se politicamente de forma autónoma, demonstrando o nefasto que é delegarem as suas competências a partidos de esquerda, sujeitos ao capital, porque beneficiários da lei de ferro da circulação das elites no capitalismo, efectivado, no seu elemento político, pelo regime democrático.

Oito anos passaram-se até que em 2012, um novo e importante movimento contra a actividade mineira em céu aberto e pela defesa da terra e dos recursos naturais, surgiu no cenário social e político do Uruguai. Este movimento realizou três grandes marchas nacionais, a ultima em Outubro de 2012. Enquanto isso a Frente Ampla apoia as corporações mineiras e a esquerda que não se revê nesta Frente, permanece alheada dos movimentos populares, debatendo as formas de participar no próximo processo eleitoral…

Na Argentina, mais especificamente na província de La Rioja, as populações do Vale de Famatina – um paraíso produtor de azeitonas – confrontam-se, desde 2006, com a corporação mineira Barrick Gold, devido ao projecto mineiro desta corporação no Vale de Famatina, que se for avante, irá destruir os glaciares e envenenar as águas dos degelos. As populações do Vale, às quais se juntaram as populações vizinhas de Chilecito, Pituil e Campana, lançaram-se contra este projecto, bloqueando os caminhos e impedindo que as multinacionais instalem-se na Cordilheira dos Andes. Enquanto isso as populações de Andalgalá, em Catamarca, bloquearam as vias para os nevados de Aconquija, nos Andes, contra o projecto mineiro da Água Rica. Estas populações adquiriram experiência nas lutas contra a mineira Alumbrera, desde 1997, um empreendimento de extração de ouro, que revelou-se destrutivo do ecossistema, afectando as actividades rurais da região e obrigando á deslocalização de populações.

Também em Chubut, em Dezembro de 2012, as lutas das populações pelo seus direitos ambientais, obrigaram a suspender os planos mineiros do governo provincial. Muitos mais exemplos de lutas ocorreram e desenvolvem-se nestas cordilheiras, impondo uma lei de defesa dos glaciares e periferias glaciares, que os parlamentares argentinos trataram de amenizar o seu impacto, criando não uma lei, mas uma manta de retalhos, um documento amorfo e incongruente. De qualquer forma este foi um momento de triunfo dos movimentos e das assembleias populares argentinas, que assumiram as questões políticas sem intervenção dos partidos parlamentares.

V - Estes são apenas alguns exemplos de movimentos, que batalham em todo o mundo, embora quase todos os exemplos aqui apresentados, tivessem origem na América Latina (sendo a única excepção a Índia e mesmo neste exemplo, apenas foi focada, de forma ligeira, a questão da luta armada na cintura florestal). A especial incidência na América Latina (que näo deve desfocar o tema, nem nos deve fazer esquecer os exemplos registados noutros continentes e a norte do continente americano, que serão motivo de abordagem na terceira parte deste texto) é motivada pelo facto de esta região viver um momento histórico de implicações mundiais. A deslocação do centro financeiro mundial, ainda para parte incerta e a redefinição das novas periferias, no âmbito da geoeconomia capitalista, por um lado e os processos emancipatórios e revolucionários levados a cabo na América Latina e Caribe, säo a razão principal deste enfoque.

Nesta região existem, segundo o Mapa de conflito mineiros do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), mais de 173 projectos empresariais de mineração a céu aberto, onde intervêm 244 empresas. Estas explorações estão em conflito com mais de 200 comunidades indígenas afectadas. Os seis países com maiores populações indígenas agredidas por estes projectos são a Argentina, com 39 comunidades, o Brasil e o Chile, com 34 cada, o Peru, Com 22 e a Colômbia com 20. As causas principais de conflicto säo a expulsão e desapropriação de terras, a violação de direitos ambientais, a contaminação de águas e solos, a inundação de terras, contaminações diversas das produções agrícolas, ameaças ás populações, publicidade enganosa e dolo. A isto á que somar os conflitos provocados pela expansão do agronegócio, as reivindicações camponesas, já históricas, os levantamentos dos trabalhadores mineiros, a luta armada na Colômbia e outras lutas antioligárquicas de carácter urbano, com raízes históricas nesta região.

As variantes de transcender o social e de não aceitar os espaços estanques do social e do político, começam a sentir-se com frequência. A consciência de que os espaços parlamentares não são mais do que teatros de sombras, onde o capital manipula a luminosidade e a qualidade da sombra, é hoje, mais do que nunca, assumida pondo em causa este acordo tácito, que aprisiona a acção proletária ao capital.

As agroindústrias e as mineiras a céu aberto, propriedade na sua maioria de transnacionais, contaminam e destroem a biodiversidade, afectam as comunidades indígenas, provocam os trabalhadores rurais sul-americanos, centro-americanos e caribenhos e são responsáveis pelo empobrecimento das áreas rurais e cinturas florestais do continente. Dos dez países com maior biodiversidade cinco estão na América Latina: o Brasil, a Colômbia, o Equador, o México e o Peru. Todo o ecossistema está gravemente ameaçado e só uma radical reforma agrária, que impeça a privatização da terra e da água e que defenda o ar que todos nós, á escala mundial, respiramos, pode deter este cenário de depredação no continente americano.

Relacionado

Sem comentários:

Mais lidas da semana