Rui Peralta, Luanda
I - Nos movimentos
e revoltas populares dos últimos anos, ocorridos na América Latina e na Índia,
podem ser detectadas organizações e estruturas mobilizadoras que superaram a
divisão entre o social e o político. É o caso dos camponeses de Chiapas, no
México, organizados no Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN).
Defendem o seu território assediado pelo governo e pelas corporações do
agronegócio e da mineração e salvaguardam a sua produção. Pelo caminho
realizaram assembleias, procederam a consultas e estabeleceram as bases de um
projecto anticapitalista, como projecto de nação, evitando desta forma
participar nas eleições e inserirem-se no regime democrático, praticando no
entanto o procedimento democrático nas regiões por eles ocupadas.
Isto não implica o
descarte da participação eleitoral, nem da intervenção parlamentar, mas sim um
marcar de posição de força que deve ser efectuada antes da participação
eleitoral e parlamentar, demonstrando que o capital näo é a única força
extraparlamentar e obrigando-o a uma tomada de posição num campo de batalha que
já não é escolhido pelo capital e onde os cenários já não são os elaborados
pelos seus encenadores. Esta posição não foi apenas assumida pelos camponeses
de Chiapas e o seu EZLN. Foi também a dos cocaleros do Chapare, pelos indígenas
de Omasuyo, pelas populações de El Alto e mais centenas de exemplos da Bolívia,
que optaram pelo cenário eleitoral mas sem delegarem a formulação do seu
programa nem a sua representação.
II - O exemplo
boliviano é impar nesta questão. A intervenção eleitoral neste país realizou-se
sobre a base de um enorme movimento social dos povos indígenas, maioritários no
país, num cenário de confrontação violenta, onde estradas foram cortadas,
fazendas ocupadas, cidades bloqueadas, o parlamento foi cercado, o movimento
grevista alastrou-se por todo o país e existiram choques violentos com a
polícia e o exército, que apresentaram sintomas de desagregação. Esta intensa
batalha terminou com a imposição, pela primeira vez em meio milénio, de um
presidente aymara, Evo Morales. Este foi um processo eleitoral que o Capital não
conseguiu controlar e que representou uma enorme conquista popular, que se
estendeu nas lutas pela divisão e recuperação de terras e pela defesa da
soberania sobre os recursos naturais.
Como explica o
Vice-presidente García Linera: "El primer componente central del
"evismo" es una estrategia de lucha por el poder fundada en los
movimientos sociales. Esto marca una ruptura con las estrategias previas que ha
conocido nuestra historia política y buena parte de la historia política
continental y mundial. Anteriormente, las estrategias de los sectores
subalternos estaban construidas a la manera de una vanguardia política cohesionada
que lograba aglutinar en su base social a estos movimientos (...) En otros se
trató de una vanguardia política democrática-legal o armada que lograba
arrastrar o empalmarse con movimientos sociales que la catapultaban (...) El
"evismo" modificó ese debate, al plantearse la posibilidad de que el
acceso al poder sea obra de los propios movimientos sociales" (Álvaro
García Linera, Vice-presidente boliviano; Los fundamentos del
"evismo", Revista DEF n° 9, Argentina, Maio, 2006).
Na Bolívia, desde a
guerra da água em Cochabamba, afirmava-se um movimento que não separava as
questões sociais das políticas, porque desconhecia a tradição europeia do braço
sindical / braço político (o movimento iniciado em Cochabamba desconhecia esta
questão, mas não o movimento mineiro, que nas insurreições mineiras dos anos
cinquenta e sessenta do século passado foi vitimado por esta divisão, o mesmo
se podendo dizer do falhanço das negociações entre o Exército de Libertação
Nacional, liderado pelo Che e o Partido Comunista Boliviano).
III - A
participação dos povos indígenas nas lutas nacionais não divide os seus
programas em mínimo e máximo. Essa é uma divisão tradicional das correntes
socialistas urbanas que a herdaram da social-democracia europeia do século XIX
e que foi aplicada á letra pelos partidos comunistas no século XX e ainda na
actualidade. Ao dividir-se em sindicato e partido a acção proletária,
faccionava-se o programa em mínimo, que abarcava as reivindicações possíveis de
obter sob o jugo do Capital, adjudicadas ao sindicato e geridas nas
instituições burguesas e em máximo, o tal programa que conduziria ao
socialismo, sempre mencionado nos discursos de aniversário do partido e que
seria construído em data incerta e longínqua (os amanhãs que cantam, sempre
cantados em coros desafinados e que eram sempre amanhãs, mas nunca hoje. Alias
nos casos em que os amanhãs que cantam foram transformados em hoje cantado, a
realidade revelou-se tão alienante como o capitalismo e anunciadora de um
depois de amanhã catastrófico).
Na Índia os
maoistas forneceram cobertura política a um movimento que eles, efectivamente não
controlam e que os obriga a uma praxis politica e social que os afasta das suas
deambulações ideológicas. Aliás, foi por terem compreendido quão nefasta é esta
falsa divisão entre o social e o político, que a sua implementação nas zonas
insurrectas foi conseguida e a sua presença aceite pelas comunidades da cintura
florestal. Mas o mesmo näo se passa na estrutura urbana da organização maoista
indiana, que mantém o seu aparelho tradicional assente nesta falsa dicotomia. O
resultado revela-se desastroso nas zonas urbanas, permitindo que o governo do
capitalismo BRICS indiano controlo em absoluto os meios de informação e
propaganda e que a oligarquia assuma, nas cidades, o controlo da rebelião,
impedindo a comunicação entre as organizações urbanas e as regiões insurrectas
(por exemplo os trabalhadores das minas, como as suas organizações estão
controladas pelo capital, no sentido em que aceitam as regras do jogo, apesar
de trabalharem na cintura florestal, que é simultaneamente a cintura mineira, não
participam na insurreição).
IV - No Equador o
processo eleitoral que levou Correia á presidência foi consequência de um
movimento popular, fortemente mobilizado, que já tinha provocado a derrocada de
três presidentes e a cedência constante de uma burguesia em decomposição. O
mesmo passou-se na Venezuela, com a chegada de Chávez á presidência e com a sua
consolidação, afirmada no dia em que uma tentativa de golpe de estado tentou
derrubá-lo, o que provocou um movimento dos bairros pobres, cujos moradores
ocuparam as ruas, cercaram o Palácio de Miraflores e derrotaram o golpe,
repondo o presidente Hugo Chávez.
No Brasil (um dos
motores mundiais do capitalismo BRICS, tal como a India) o Movimento dos Sem
Terra (MST), em 2005, realizou uma Marcha Nacional pela Reforma Agrária,
percorrendo duzentos quilómetros, de Goiânia a Brasília, com o objectivo de
apresentar ao governo do Partido dos Trabalhadores (PT), liderado por Lula da
Silva, um programa económico contrário á orientação neoliberal imposta pelo
governo. No mesmo ano coordenou, em diversos estados do Brasil, acções de
movimentos sociais contra o modelo económico capitalista do governo, “demonstrando
a capacidade dos movimentos de pensarem mais além das balizas específicas de
reivindicação”, conforme o comunicado do MST em 06 de Janeiro de 2006.
O MST é
independente da Central Unitária de Trabalhadores (CUT) e do PT, opõe-se á
orientação governamental que favorece os monopólios agroindustriais e luta pela
reforma agraria, eternamente prometida pelo PT e formalmente decretada na
Constituição, mas escamoteada pelos negócios efectuados com as grandes
corporações agroindustriais. É um movimento responsável pelas ocupações de
fazendas e terras em vários estados brasileiros, que nasceu das reivindicações
do proletariado rural e é hoje uma das estruturas organizativas mais combativas
e um incontornável ponto de referência. Eis um bom exemplo da força
extraparlamentar do proletariado.
Também no Uruguai
as organizações sociais e os militantes políticos quebraram a falsa divisão
durante os movimentos pela defesa da água, plebiscitando e aprovando uma
reforma da constituição, em Outubro de 2004, que impedia a privatização da
água. Embora este movimento näo tivesse tido continuidade e fosse dissolvido
nesse amplo imbróglio pantanoso que é a Frente Ampla, esta importante
experiencia, que pela primeira vez no mundo impõe que uma Constituição expresse
a proibição de privatização de um bem vital, revela a necessidade dos
movimentos assumirem-se politicamente de forma autónoma, demonstrando o nefasto
que é delegarem as suas competências a partidos de esquerda, sujeitos ao
capital, porque beneficiários da lei de ferro da circulação das elites no
capitalismo, efectivado, no seu elemento político, pelo regime democrático.
Oito anos
passaram-se até que em 2012, um novo e importante movimento contra a actividade
mineira em céu aberto e pela defesa da terra e dos recursos naturais, surgiu no
cenário social e político do Uruguai. Este movimento realizou três grandes
marchas nacionais, a ultima em Outubro de 2012. Enquanto isso a Frente Ampla
apoia as corporações mineiras e a esquerda que não se revê nesta Frente,
permanece alheada dos movimentos populares, debatendo as formas de participar
no próximo processo eleitoral…
Na Argentina, mais
especificamente na província de La Rioja, as populações do Vale de Famatina –
um paraíso produtor de azeitonas – confrontam-se, desde 2006, com a corporação
mineira Barrick Gold, devido ao projecto mineiro desta corporação no Vale de
Famatina, que se for avante, irá destruir os glaciares e envenenar as águas dos
degelos. As populações do Vale, às quais se juntaram as populações vizinhas de
Chilecito, Pituil e Campana, lançaram-se contra este projecto, bloqueando os
caminhos e impedindo que as multinacionais instalem-se na Cordilheira dos
Andes. Enquanto isso as populações de Andalgalá, em Catamarca, bloquearam as
vias para os nevados de Aconquija, nos Andes, contra o projecto mineiro da Água
Rica. Estas populações adquiriram experiência nas lutas contra a mineira
Alumbrera, desde 1997, um empreendimento de extração de ouro, que revelou-se
destrutivo do ecossistema, afectando as actividades rurais da região e obrigando
á deslocalização de populações.
Também em Chubut,
em Dezembro de 2012, as lutas das populações pelo seus direitos ambientais,
obrigaram a suspender os planos mineiros do governo provincial. Muitos mais
exemplos de lutas ocorreram e desenvolvem-se nestas cordilheiras, impondo uma
lei de defesa dos glaciares e periferias glaciares, que os parlamentares
argentinos trataram de amenizar o seu impacto, criando não uma lei, mas uma
manta de retalhos, um documento amorfo e incongruente. De qualquer forma este
foi um momento de triunfo dos movimentos e das assembleias populares
argentinas, que assumiram as questões políticas sem intervenção dos partidos
parlamentares.
V - Estes são
apenas alguns exemplos de movimentos, que batalham em todo o mundo, embora
quase todos os exemplos aqui apresentados, tivessem origem na América Latina
(sendo a única excepção a Índia e mesmo neste exemplo, apenas foi focada, de
forma ligeira, a questão da luta armada na cintura florestal). A especial
incidência na América Latina (que näo deve desfocar o tema, nem nos deve fazer
esquecer os exemplos registados noutros continentes e a norte do continente
americano, que serão motivo de abordagem na terceira parte deste texto) é
motivada pelo facto de esta região viver um momento histórico de implicações
mundiais. A deslocação do centro financeiro mundial, ainda para parte incerta e
a redefinição das novas periferias, no âmbito da geoeconomia capitalista, por
um lado e os processos emancipatórios e revolucionários levados a cabo na
América Latina e Caribe, säo a razão principal deste enfoque.
Nesta região
existem, segundo o Mapa de conflito mineiros do Programa das Nações Unidas para
o Desenvolvimento (PNUD), mais de 173 projectos empresariais de mineração a céu
aberto, onde intervêm 244 empresas. Estas explorações estão em conflito com
mais de 200 comunidades indígenas afectadas. Os seis países com maiores
populações indígenas agredidas por estes projectos são a Argentina, com 39
comunidades, o Brasil e o Chile, com 34 cada, o Peru, Com 22 e a Colômbia com
20. As causas principais de conflicto säo a expulsão e desapropriação de
terras, a violação de direitos ambientais, a contaminação de águas e solos, a
inundação de terras, contaminações diversas das produções agrícolas, ameaças ás
populações, publicidade enganosa e dolo. A isto á que somar os conflitos
provocados pela expansão do agronegócio, as reivindicações camponesas, já
históricas, os levantamentos dos trabalhadores mineiros, a luta armada na
Colômbia e outras lutas antioligárquicas de carácter urbano, com raízes
históricas nesta região.
As variantes de
transcender o social e de não aceitar os espaços estanques do social e do
político, começam a sentir-se com frequência. A consciência de que os espaços
parlamentares não são mais do que teatros de sombras, onde o capital manipula a
luminosidade e a qualidade da sombra, é hoje, mais do que nunca, assumida pondo
em causa este acordo tácito, que aprisiona a acção proletária ao capital.
As agroindústrias e
as mineiras a céu aberto, propriedade na sua maioria de transnacionais,
contaminam e destroem a biodiversidade, afectam as comunidades indígenas,
provocam os trabalhadores rurais sul-americanos, centro-americanos e caribenhos
e são responsáveis pelo empobrecimento das áreas rurais e cinturas florestais
do continente. Dos dez países com maior biodiversidade cinco estão na América
Latina: o Brasil, a Colômbia, o Equador, o México e o Peru. Todo o ecossistema
está gravemente ameaçado e só uma radical reforma agrária, que impeça a
privatização da terra e da água e que defenda o ar que todos nós, á escala
mundial, respiramos, pode deter este cenário de depredação no continente
americano.
Relacionado
Sem comentários:
Enviar um comentário