FINANCIAL
TIMES, LONDRES – Presseurop – imagem Alex
Ballaman
A troca de carne de
bovino por cavalo é um sinal aparatoso de que foi atingido o limite em matéria
de esforços para reduzir os preços. Embora uma maior certificação de origem dos
produtos implique custos, os danos à reputação de cadeias de supermercados que
não a fazem podem sair ainda mais caros. Excertos.
Desde Sweeney Todd que não havia tanta incerteza
sobre o que exatamente contém a carne processada para alimentação humana. Desta
vez, não são os clientes do diabólico barbeiro de Fleet Street, mas cavalos
romenos.
Uma vez que a carne
de cavalo é mais magra do que a de bovino de baixa qualidade e contém mais
ácidos gordos ómega 3, pode tratar-se de um caso raro de adulteração que faz
com que a comida seja mais saudável. Ainda assim, não é abonatório para a
cadeia de abastecimentos em que supermercados e restaurantes obtêm os seus
alimentos processados. Se não conseguem detetar cavalo, o que mais deixam
passar?
No segmento mais
alto do mercado, em que fornecedores de carne orgânica propagandeiam a origem
dos seus produtos e uma pessoa quase sabe o nome próprio do animal que está a
comer, a troca de vaca por cavalo é inconcebível. Mas no patamar mais barato,
apertado por preços tremendos e pela crescente procura de carne por parte da
China e das economias em desenvolvimento, acabam por ir dar à panela algumas
coisas inesperadas.
Fabricantes na
falência
Isto não pode
continuar. A indústria automóvel dos EUA debateu-se, em tempos, com uma
situação semelhante com os fornecedores – espremeu-os tanto que o produto
deteriorou-se e os fabricantes foram à falência. Por mais complicado que seja
forjar relações com os fornecedores, num mundo em que os clientes exigem preços
baixos, a indústria de alimentos não tem grandes alternativas.
Sob alguns aspetos,
a concentração da produção e distribuição das últimas décadas, com o comércio
tradicional a ser substituído por supermercados fornecidos por empresas
transformadoras de alimentos, foi um bom negócio para o consumidor médio. Elevou
o nível básico de qualidade – o conteúdo das salsichas e tortas de carne
britânicas na década de 1970 não deixam dúvidas – e deu uma bitola aos preços.
O preço dos
alimentos no comércio tradicional caiu em termos reais em duas décadas, até
2007. Não só os preços dos bens de consumo eram baixos, como os supermercados
ainda baixaram os custos através das compras a redes de fornecedores –
produtores, processadores de alimentos e comerciantes – que têm de competir por
cada encomenda.
Isto mudou em
2007-2008, com o primeiro de vários choques de preços de bens de consumo. O uso
de produtos agrícolas norte-americanos para biodiesel fez subir os preços do
milho e dos óleos de palma e de canola, e os mercados sentiram a pressão da
crescente procura de carne pelos países em desenvolvimento. O consumo de carne
per capita na China quadruplicou desde 1960.
Abastecimento sob
extrema tensão
O ramo
agroalimentar ficou com uma longa e complexa cadeia de abastecimento
transnacional sob extrema tensão. É aí que entram os cavalos. Neste caso, os
cavalos romenos parecem ter acabado em lasanha de “vaca” e outros
produtos, nos supermercados franceses e do Reino Unido, por via de um
comerciante cipriota e uma distribuidora francesa.
Os supermercados
deitam as mãos à cabeça, insistindo que não fazem ideia de como isso aconteceu.
Mas fizeram-se deliberadamente cegos às suas cadeias de abastecimentos – não
sabiam nada dos cavalos, porque também não sabem nada das vacas. Delegam isso
nos fornecedores de primeira linha, que delegam nos fornecedores de segunda
linha, etc.
"Os
retalhistas não têm grande informação e as relações limitam-se a
transações", diz Sion Roberts, membro da empresa de consultoria European Food and Farming Partnerships.
"Qualquer dos seus fornecedores pode estar sob grave pressão financeira
sem que o retalhista tenha disso conhecimento."
E nem querem saber,
visto que os supermercados – tal como as empresas de genética que produzem
sementes e fertilizantes – foram os únicos a salvaguardar as suas margens de
lucro nos últimos anos. O aperto dá-se a meio da cadeia, entre os responsáveis
pelo processamento de alimentos e os agricultores.
Volatilidade dos
preços
"O agricultor
sujeita-se aos preços, sem grande poder no mercado", diz Justin Sherrard,
um estratega global do grupo financeiro cooperativo Rabobank, que considera que
os fornecedores de alimentos precisam de criar laços mais fortes. "Há um
limite para o que se consegue obter ao espremer repetidamente os
fornecedores."
A troca de carne de
bovino por cavalo é um sinal aparatoso de que se atingiu o limite. Embora
poucas pessoas pareçam estar preocupadas por terem comido carne de cavalo – nem
têm razões para isso –, os devotos judeus ou muçulmanos têm todo o direito de
ficar indignados se carne de vaca for substituída por porco.
O comércio local de
produtos agrícolas – muitas vezes através de concurso em plataformas digitais –
é uma maneira altamente eficiente de reduzir custos. Mas não promove em nada a
qualidade, nem melhora o rendimento, e torna difícil aos fornecedores e
produtores investirem no longo prazo. Estão constantemente sujeitos à
volatilidade dos preços, disputando encomendas uma a uma.
A indústria
automobilística dos Estados Unidos foi apanhada nessa armadilha antes da crise
de 2008 e isso levou à falência da Chrysler e da General Motors. Os fabricantes
pressionavam constantemente os fornecedores a baixar os preços, a fim de
reduzir custos; e acabaram a vender barato carros de baixa qualidade.
Tónica na inovação
e na qualidade
Pelo contrário, os
fabricantes japoneses, como a Toyota e a Honda mantêm um relacionamento mais
cooperante, de longo prazo, com os fornecedores, pondo a tónica na inovação e na
qualidade e não numa ditadura de preços baixos. As empresas norte-americanas
acabaram por ter que seguir o seu exemplo.
É difícil passar de
um ciclo vicioso de redução de custos e diluição da qualidade para um círculo
virtuoso de cooperação e inovação, especialmente quando o dinheiro não abunda.
Alguns clientes pagam pela certificação de origem e abastecimento direto de
produtores selecionados; para a maioria, isso é um luxo.
No entanto, é
possível uma mudança, mesmo no mercado mais vasto. A imagem da cadeia McDonalds
foi manchada por revelações de baixa qualidade de processamento de carne no Fast Food Nation de Eric Schlosser, em
2003. Agora, abastece-se de toda a carne de vaca dos seus restaurantes
britânicos diretamente em 17 500 produtores de gado da Irlanda e do Reino
Unido, com contratos de longo prazo. Muitas outras empresas do ramo alimentar
estão a adotar medidas semelhantes.
Dados os riscos em
termos de reputação que os supermercados e cadeias de restaurantes enfrentam ao
deixar tais assuntos nas mãos do acaso – ou de fornecedores de carne anónima –,
parece tratar-se de um bom investimento.
OPINIÃO
A lasanha de cavalo
é igual aos créditos tóxicos
O que é que a crise
dos “subprimes” [créditos tóxicos do setor imobiliário] e o caso da carne de
cavalo têm em comum? São ambos uma consequência nefasta, mas lógica, da
globalização" e da falta de regulamentação a nível internacional. O jornal NRC
Handelsbladconstata que, nos dois setores, a autorregulação falhou e levou a
"excessos":
Dos 55 mil
regulamentos agrícolas da UE, 30 mil dizem respeito à segurança alimentar
[...], mas são difíceis de aplicar. Os políticos querem que agricultores,
fabricantes e distribuidores atuem por iniciativa própria, de modo a que tudo
respeite a lei, porque podem receber uma visita da inspeção a qualquer momento.
É, portanto, no seu próprio interesse. Esta autorregulação era também desejável
no setor bancário. Os políticos responsáveis pela desregulamentação e
internacionalização das finanças, em 1980 e 1990, também pretendiam que o setor
se autorregulasse. Quando se aperceberam que a situação levou a excessos, era tarde
de mais [...], o sistema não foi bem pensado, os riscos foram subestimados.
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